quinta-feira, 18 de junho de 2020

Teletrabalho: destratamento dos docentes e desigualdade de alunos


A FENPROF (Federação Nacional dos Professores) resume os sentimentos dos professores em teletrabalho nesta frase que se prevê emblemática: “O ensino não é isto, nem nada que se pareça!” – cuja autoria é duma docente que participou num inquérito de opinião sobre o ensino à distância promovido por esta organização sindical.
O questionário contou com 3548 respostas validadas e recolhidas online. Dos professores, que responderam ao inquérito durante a 1.ª quinzena de maio, 96,1% lecionam no ensino público; 63,9%, são professores do 3.º Ciclo e Secundário; 20,2% do 2.º Ciclo; 18,1% do 1.º Ciclo; e 7,8% da educação pré-escolar. Há uma forte participação de professores e educadores com 50 ou mais anos de idade e com mais de 30 anos de serviço (o que reflete o envelhecimento da classe). Além das perguntas de pesquisa, para respostas de escolha múltipla, os inquiridos forneceram contributos e apreciações em perguntas para resposta aberta.
Os professores partilham o que sentem e pensam, como veem o ensino à distância e o que mais os preocupa. Há críticas à gestão do processo e preocupações quanto às desigualdades; emerge o desgaste e a exaustão; nota-se o excesso de trabalho imposto, sobretudo burocrático (“Aqueles que às aulas somam funções de direção de turma referem que são quase 24 sobre 24 horas no contacto com alunos, colegas e encarregados de educação”). Há queixas de desrespeito nos aspetos laborais, pelos limites legalmente fixados do horário de trabalho, do esquecimento das questões da carreira, do eclipse das medidas para rejuvenescer o corpo docente e da supina persistência da precariedade. As desigualdades aprofundaram-se, aos alunos com necessidades educativas especiais faltam apoios sem os quais as suas dificuldades aumentam e são muitos os que temem que, num contexto destes, a avaliação acabe por ser injusta.
Dos mais de 10 mil comentários, a FENPROF selecionou alguns pela sua “acutilância, clareza e objetividade”: “Por muita tecnologia que exista e se possa utilizar, nada substitui o ensino presencial”. “Para ensinar a pregar um prego é sempre preciso o martelo, o prego e sentir todo esse processo, mesmo que se magoe o dedo”. “A sobrecarga de trabalho é assustadora e doentia, como se os professores, por permanecerem em casa, tivessem de estar 24 horas disponíveis para a escola”. “A minha maior preocupação é com os alunos com dificuldade de aprendizagem que não são capazes de realizar os trabalhos de forma autónoma e, como grande parte dos pais estão a trabalhar, os alunos ficam sem suporte”. “O excesso de voluntarismo da nossa parte, professores, deixa a tutela descansada, apesar de desnorteada e alheada da realidade”. “Os elogios feitos agora aos docentes são despropositados, hipócritas, cínicos”. “A classe docente deu sempre o seu melhor, em todas as circunstâncias”. “O Ministério contou com os recursos de cada professor, sem que nada fizesse para resolver essa situação”. “Querem fazer flores com o material dos professores.”
O inquérito revela que 54,8% não tinham conseguido contactar com todos os seus alunos a meio do 3.º período e que, em alguns casos, foi estabelecido mais tarde tal contacto, mas sem que tal significasse uma participação regular na atividade letiva.
Ao arrepio das dificuldades inerentes à pandemia, 70,5% dos docentes lecionaram novos conteúdos, enquanto cerca de 30% se limitaram a reforçar conteúdos já trabalhados em sala de aula, e 47,8% irão avaliar novos conteúdos. E, considerando os défices que se verificarão no final do ano letivo, os professores têm como inevitável o esforço da sua superação e do reforço apoios pedagógicos aos alunos no próximo ano letivo. E, dos professores de Educação Especial inquiridos, 43,9% consideram adequadas as medidas de apoio aos alunos portadores de necessidades educativas especiais, 15,3% dizem ser não adequadas e 40,8% dizem desconhecer tais medidas, inferindo a FENPROF não ter havido qualquer descomprometimento dos professores, mas que o ensino à distância “não está em sintonia com a inclusão” e que, “sem surpresa, a distância escava fossos que dificultam o encontro”.
Assim, 93,5% dos professores referem que as desigualdades se agravaram e 92,9% dizem que é preciso superar défices no próximo ano letivo. E 65,1%, entendem que o ensino à distância tem um grau de exigência maior que o presencial, sobretudo pela necessidade de estabelecer contactos individualizados, por e-mail ou por telefone, após as sessões síncronas. A apreciação das emissões televisivas do #EstudoEmCasa é positiva: 43,9% dão “bom”, 8% “muito bom”, 40,5% “insuficiente” e 7,6% não têm opinião.
No âmbito do trabalho desenvolvido, os professores recorrem, regra geral, às plataformas digitais para trabalhar em grupo e ao e-mail para contactar os alunos, enviar literatura e documentos de apoio e reforço das aprendizagens, receber trabalhos, entre outros elementos importantes para a avaliação. Quanto a alunos de grupos etários mais baixos (até aos 12 anos) e alunos com problemáticas complexas e baixo nível de funcionamento autónomo, é necessário o acompanhamento informado e permanente por parte dum adulto, o que nem sempre acontece.
É de nota positiva o apoio das escolas, pais e encarregados de educação. Porém, a maioria dos professores desconhece os apoios dados pelas autarquias locais. Já em relação ao Ministério da Educação (ME), 60% dos professores e educadores sentem que não deu o apoio a que estava obrigado e que se exigia dos responsáveis, em particular do Ministro. Apenas 20% consideram ter sido adequado o apoio prestado pelo ME. E, nas respostas abertas, “muitos docentes” afirmam que “soaram a hipocrisia os elogios que ouviram dos governantes”.
A FENPROF sublinha dois tópicos que os docentes destacam: o desgaste e o cansaço pela adaptação a um modelo inédito de atividade, pela distância que não facilita o acompanhamento de todos os alunos, pelo “facto de a atividade profissional ter tomado conta de todas as horas do dia e, ao invadir a casa de cada professor, dificultar a sua indispensável e saudável separação da vida familiar; e o agravamento, por vezes perigoso, da desigualdade entre os alunos. E vinca a postura dos professores que foram, como sempre, “solidários com os alunos e colocaram ao seu serviço a casa, o computador, a Internet, o telemóvel e até a sua privacidade. Fizeram-no por terem percebido que a tutela não estava a fazer a sua parte. Limitava-se a emitir, em cascata, ordens, orientações, circulares, disposições, plataformas ou aplicações, ao passo que, em vez de, atempadamente, criar condições efetivas para o que designou por E@D, “deixou cada um à sua sorte e todos por sua conta”.
Por sua vez, a FNE (Federação Nacional da Educação) exige a clarificação do enquadramento legal das condições de trabalho que recorram às TIC na área da Educação, pois é essencial “um espaço de negociação e de diálogo social que vise o enquadramento destas situações” e uma forte intervenção sindical que proteja a “saúde e o bem-estar de todos os que coabitam nas nossas escolas”. Com efeito, o recurso às ferramentas e plataformas digitais deve ser “ocasional e complementar e não sistemático”. E, “se é verdade que estas ferramentas revelam algumas vantagens”, também é certo que “elas não são substitutivas da atividade letiva presencial”, para lá de poderem “dar origem à desregulação do tempo de trabalho, à sobreposição entre a vida profissional e a vida familiar e a uma maior intensidade de trabalho e consequente agravamento do desgaste físico e psíquico dos docentes” (refere a FNE em comunicado).
A FNE identifica várias linhas reivindicativas para o futuro próximo no âmbito do trabalho docente em contexto de teletrabalho. Refere que, neste processo, há um conjunto de fatores a ter em conta, como: o combate à desregulação do tempo de trabalho; a determinação do direito a desligar; a dotação de recursos indispensáveis ao teletrabalho e compensação dos gastos acrescidos associados; a defesa da saúde; o investimento na formação contínua para a utilização adequada das ferramentas digitais; a cibersegurança; a disciplinação de encarregados de educação e alunos; e a conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar. E enfatiza:   
O direito a desligar-se deve estar previsto e regulamentado, evitando-se dessa forma a tendência para a instalação de culturas de trabalho caracterizadas pela intensidade autoimposta e pela disponibilidade constante. (…) As condições de defesa da saúde devem constituir outro aspeto essencial a regulamentar, em áreas como a organização do seu trabalho e do seu local de trabalho, devendo ser garantido o acompanhamento de avaliações e gestão dos riscos psicossociais, tal como o stresse.”.
Além disso, a FNE defende a abertura duma linha de atendimento e aconselhamento sobre os cuidados básicos a nível de saúde em contexto de teletrabalho, a criação dum portal sobre recursos educativos online por parte do ME, a criação de mecanismos que permitam a partilha de boas práticas, a compensação pelo exercício da função docente em teletrabalho e a publicação de guias práticos para professores, alunos, pais e encarregados de educação.
O ensino à distância não pode ser perpetuado nem ser a norma, segundo a FENPROF. E, caso se mantenha no início do próximo ano letivo, esse cenário tem de estar previsto no despacho normativo de organização do ano letivo e ser alvo de discussão que envolva toda a comunidade escolar. O ensino à distância não pode ser uma alternativa permanente, como defendem as várias organizações sindicais que representam a classe docente.
Para Mário Nogueira, secretário-geral da FENPROF, o ensino à distância, até como confirmam os resultados do inquérito realizado, “cava fossos muito fundos de desigualdades” e põe em causa a própria Constituição na defesa de uma escola pública promotora de igualdade de oportunidades. Ora, se “este foi um ano de exceção”, já “o próximo vai ser um ano em que também se vai refletir muito do que se passou agora”.
Sobre o pacote de 400 milhões de euros, anunciado pelo Governo, no âmbito do Orçamento Suplementar, para apoiar a Escola Digital, o dirigente sindical acentua que é bem-vindo se for para atualizar o parque tecnológico e para a formação dos docentes nas TIC. Porém, sustenta que, “se for para eternizar o ensino à distância e não apenas para o ter preparado para eventuais situações excecionais que surjam, então será dinheiro mal gasto”.
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Todos reconhecemos as vantagens dum ensino à distância em situação excecional ou em complementaridade com o ensino presencial. Porém, torná-lo único ou preponderante é, como sentimos e referem ilustres peritos em educação, um desvio à socialização e à eficácia educativa da escola, que não pode limitar-se a debitar conteúdos e a fazer avaliações sumativas, nem pode ser encarada como mera oficina laboral. Será que da abstrusa pretensão da escola a tempo inteiro se quer passar à escola hiperminimalista?
2020.06.18 – Louro de Carvalho

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