quarta-feira, 17 de junho de 2020

Os deputados podem alterar a proposta de lei do orçamento


Até chegar a pandemia não se falava em “orçamento suplementar” (expressão do atual Governo) ou “orçamento retificativo” (expressão usual até que nos cansámos com os 8 do tempo da troika).
No tempo de Passos e de Portas, de cortes e aumento de impostos, a oposição, liderada pelo PS, tentando corrigir tais políticas, apresentava propostas de alteração aos orçamentos retificativos que os alteravam de forma significativa. Agora, o Governo enviou aos deputados um parecer jurídico que aduz que a oposição não pode apresentar propostas que “desvirtuem” o orçamento suplementar ou que saiam das áreas em que o Governo quer mexer. Porém, o PS na oposição, fez isso mesmo, insistindo em medidas como a baixa do IVA da restauração ou o pagamento de subsídios que o Executivo adiava, como recordaram Marques Mendes e Francisco Louçã nos seus espaços de comentário e, depois, deputados indignados da esquerda à direita, considerando a posição do PS incoerente.
Em 2013, o cenário orçamental era catastrófico: o défice crescia e a economia asfixiava, pelo que se sucediam as críticas ao programa de ajustamento, até no seio do Governo, sobretudo pelo lado do CDS, que atirava contra o Ministro Vítor Gaspar, prevendo-se desde o início a urgência de mais um Orçamento Retificativo. A razão para corrigir mais um Orçamento e uma série de previsões económicas prendia-se com a “degradação da situação económica” e com o chumbo do Tribunal Constitucional relativo ao corte no subsídio de férias e de Natal dos funcionários públicos e reformados e as contribuições sobre os subsídios de desemprego e de doença, que abriram nas contas um buraco de 1300 milhões de euros. Assim, o Retificativo previa cortes na Segurança Social e Educação e incluía os efeitos de medidas dirigidas à Função Pública, como o aumento do horário semanal para 40 horas. E o PSD tentou uma aproximação ao PS para um consenso. Mas os socialistas, irredutíveis, acusavam o Governo de insensibilidade social e apresentaram uma série de propostas com impacto significativo no Orçamento Retificativo.
O exemplo mais eloquente será o do IVA da restauração, que o PS quis baixar de 23% para 13%. E, no texto que acompanhava a proposta, o PS enfatizava o “efeito contraproducente” da taxa máxima e acusava o Governo de ir além da troika. Uma proposta que o PSD, então pela voz do deputado Virgílio Macedo, lamentou que não fosse acompanhada por medidas de compensação para evitar a perda de receita.
Os socialistas tentaram também que o subsídio de férias, cujo adiamento causou muita polémica, fosse pago até dia 15 de julho desse ano e que o subsídio social de desemprego fosse prorrogado em 6 meses. Porém, o Retificativo seria aprovado sem que os partidos da maioria aceitassem alguma proposta de alteração apresentada pela oposição (eram mais de 50 medidas).
O parecer encomendado pelo Governo ao Centro de Competências Jurídicas do Estado visa: recordar a “norma-travão” inscrita na Constituição (CRP) e que supostamente veda aos deputados a aprovação de leis que mexam na receita e na despesa fora do âmbito do Orçamento do Estado (OE) e impede o Parlamento de alterar aspetos do documento que o Governo não tenha tomado a iniciativa de alterar, sob pena de o “desvirtuar”.
O parecer, discutido com os partidos por Duarte Cordeiro, Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, mereceu críticas de vários setores. Marques Mendes, no dia 14, considerou-o ato “provocatório” e de “intromissão” no trabalho parlamentar e Louçã escreveu, no Expresso, que tudo não passa dum “jogo de intimidação”. O PSD falou de prática “pouco democrática” e lembrou a atitude do PS, nos tempos do Governo PSD/CDS; o Bloco de Esquerda frisou que o último Orçamento Retificativo é de 2013 e nenhum partido se coibiu de lhe fazer propostas de alteração; o PCP avisou que a Assembleia não pode ficar “limitada” na ação; o CDS recordou que o PS aprovou medidas que aumentavam despesa no passado; e o PAN queixou-se de “intromissão” por parte do Governo.
Questionado aquando da tomada de posse do novo Ministro das Finanças, Costa classificou o parecer como uma espécie de auxiliar de memória para novos parlamentares, dizendo:
Como é sabido, há muitos anos que Portugal não tinha orçamentos suplementares ou retificativos – desde que sou Primeiro-Ministro é a primeira vez que acontece –, muitos dos deputados são novos e talvez houvesse menos memória sobre qual é o quadro próprio inerente à elaboração de orçamentos retificativos”.
E acrescentou que, mesmo no quadro de um Orçamento Retificativo, a lei-travão prevalece.
***
O parecer que chegou aos deputados – solicitado formalmente, a 9 de junho, ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, pedido por André Moz Caldas, Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, e entregue três dias depois – enuncia princípios como a “estabilidade e coerência da lei” para lembrar que os deputados, tal como estabelece a norma-travão, do n.º 2 do art.º 167.º da CRP, “não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
Não é novidade que os deputados não possam fazer alterações que mexam significativamente na receita e na despesa que ficam definidas em sede de OE, mas o Governo lembra-o enquanto tenta aprovar o documento, frisando que a regra da estabilidade se aplica também no contexto do Orçamento Suplementar, para mais quando é o próprio Governo a propor uma subida significativa do défice para fazer face à pandemia e à crise que chegou com ela.
Esta posição é justificada por escritos, quer do Centro de Competências Jurídicas do Estado como de juristas/constitucionalistas como Gomes Canotilho, Vital Moreira, Jorge Miranda, Tiago Duarte ou Guilherme d’Oliveira Martins, para concluir que “o entendimento da doutrina dominante” é que “o poder de emenda parlamentar” se encontra “sujeito a severas limitações” e que, se tal não sucedesse o Governo poderia estar sujeito a um “esvaziamento ou depreciação”, dada a potencial “descaraterização” da sua iniciativa.
Mas este não é o único aviso aos deputados. Boa parte do parecer dedica-se a endereçar outra questão colocada pelo Governo: os deputados também não poderão mexer em partes do Orçamento do Estado que o Governo não tenha proposto alterar no Orçamento Suplementar. Ou seja, as alterações terão de ficar limitadas aos assuntos em que o Executivo quer mexer.
O parecer cita diversa legislação para dizer que o OE é uma lei de valor reforçado e que fica vedada a “iniciativa originária dos deputados”, para “garantir a estabilidade do plano financeiro anual gizado pelo Governo e aprovado pelo Parlamento contra vicissitudes que o desequilibrem ou que lhe desconfigurem a coerência. O acórdão 317/86 do Tribunal Constitucional é claro:
Não é de aceitar que, face a uma simples proposta de alteração do Orçamento, a AR possa proceder a modificações orçamentais que não se inscrevem no âmbito da proposta do Governo”.
Em cima da mesa está, pois, uma proposta de Orçamento que prevê uma quebra de 9,1% das receitas para 86,6 mil milhões de euros e um aumento da despesa em mais 4,39 mil milhões face ao OE apresentado em dezembro. Por isso, o Executivo quer travar o ímpeto dos deputados de apresentar propostas mais despesistas que poderiam elevar a fasquia do défice além dos 6,3% do PIB e da dívida pública acima dos 134,4%, previstos no documento. E os deputados ficam avisados com um recado do Governo transmitido a poucos dias de começar a discussão da proposta de lei, que foi debatida e aprovada na generalidade hoje, dia 17 de junho, seguindo-se a discussão na especialidade e a votação final global (esta a 3 de julho).
***
Porém, há constitucionalistas a discordar da posição do Governo. Jorge Miranda e Bacelar Gouveia assentam em que o Orçamento Suplementar tem estatuto idêntico ao do OE, pelo que os deputados podem propor aumentos de despesa. Para ambos os constitucionalistas, aqui não se aplica a norma-travão inscrita no n.º 2 dado art.º 167.º da CRP.
Jorge Miranda observa:
Quando há um Orçamento em vigor e há uma lei qualquer, não orçamental, que aumente a despesa, não há menor dúvida de que se trata de uma inconstitucionalidade. Agora se é um Orçamento Suplementar, que tem a natureza de Orçamento, não vejo que haja aí qualquer inconstitucionalidade. Os deputados, em face das mudanças ou das vicissitudes económicas e financeiras, podem perfeitamente aumentar ou diminuir as despesas. Um Orçamento Suplementar é ainda uma lei orçamental, não é uma lei ordinária qualquer”.
Não estou de acordo com o Governo”, diz Bacelar Gouveia, justificando a sua oposição com o facto de, neste caso, não se aplicar a norma-travão, exclusiva para leis não orçamentais. Se assim não fosse, “então a Assembleia da República nunca poderia fazer nada”. E prossegue:
As regras determinam que a iniciativa é sempre de fora, do Governo, mas, assim que entra, a entidade que delibera tem todo o direito de aumentar ou diminuir a despesa como muito bem entender”.
O que o predito artigo da Constituição salvaguarda é, segundo Bacelar Gouveia, que “não o pode fazer fora do ambiente do Orçamento, de forma avulsa”, mas, sendo o segundo processo orçamental, é como se fosse um orçamento inicial”. E a norma não se pode aplicar a iniciativas orçamentais, mesmo suplementares ou retificativas. E o constitucionalista estranha o facto de o Governo querer limitar este direito a um órgão da soberania, onde se decide o destino do país.
***
Para já, é de referir que o n.º 2 do predito art.º 167.º está mal aplicado: aos deputados, em termos de iniciativa legislativa, cabe apresentar projetos de lei (vd alíneas a e b, do art.º 156.º – poderes dos deputados); as propostas de lei são iniciativa do Governo (vd alínea d, do n.º 1 do art.º 197.º) ou das Regiões Autónomas (vd alínea f do n.º 1 do art.º 227.º); e a iniciativa de grupos de cidadãos é a petição, que os deputados podem transformar ou não em projeto de lei. Não era, pois, necessário falar de propostas aqui, já que o art.º 167.º refere todas as entidades que podem ter iniciativa da lei ou do referendo, importando fazer a destrinça na aplicação da norma.
Entendo que haja deputados novos que não tenham memória de retificativos ou suplementares. No entanto, deveria ser a mesa do Parlamento a recordar determinadas limitações aos poderes dos deputados e não o Governo. Por outro lado, ainda que se aplicasse a norma-travão, a limitação da iniciativa diria respeito ao aumento global da despesa ou à diminuição global da receita e não a nível setorial. As normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente.
Aliás, já houve um caso de iniciativa dos deputados – o da volta às 35 horas de trabalho na Administração Pública – em que poderia em tese haver aumento de despesa no mesmo ano económico, tendo o Chefe de Estado promulgado o diploma aprovado e garantido que manteria a sua vigilância sobre a sua execução. Não sei se e como o conseguiu.
Enfim, mais do que a discussão deste tipo de normas, importa a salvação da saúde e da economia, sendo que o bem da comunidade deve ser a lei suprema.
2020.06.17 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário