Até chegar a pandemia não se falava em “orçamento suplementar” (expressão do
atual Governo) ou “orçamento
retificativo” (expressão usual até que nos cansámos com os 8 do tempo da troika).
No tempo de Passos e de Portas, de cortes e aumento de impostos, a oposição,
liderada pelo PS, tentando corrigir tais políticas, apresentava propostas de
alteração aos orçamentos retificativos que os alteravam de forma significativa.
Agora, o Governo enviou aos deputados um parecer jurídico que aduz que a
oposição não pode apresentar propostas que “desvirtuem” o orçamento suplementar
ou que saiam das áreas em que o Governo quer mexer. Porém, o PS na oposição,
fez isso mesmo, insistindo em medidas como a baixa do IVA da restauração ou o
pagamento de subsídios que o Executivo adiava, como recordaram Marques Mendes e
Francisco Louçã nos seus espaços de comentário e, depois, deputados indignados
da esquerda à direita, considerando a posição do PS incoerente.
Em 2013, o cenário orçamental era catastrófico: o défice crescia e a
economia asfixiava, pelo que se sucediam as críticas ao programa de
ajustamento, até no seio do Governo, sobretudo pelo lado do CDS, que atirava contra
o Ministro Vítor Gaspar, prevendo-se desde o início a urgência de mais um
Orçamento Retificativo. A razão para corrigir mais um Orçamento e uma série de
previsões económicas prendia-se com a “degradação da situação económica” e com
o chumbo do Tribunal Constitucional relativo ao corte no subsídio de férias e
de Natal dos funcionários públicos e reformados e as contribuições sobre os
subsídios de desemprego e de doença, que abriram nas contas um buraco de 1300
milhões de euros. Assim, o Retificativo previa cortes na Segurança Social e Educação
e incluía os efeitos de medidas dirigidas à Função Pública, como o aumento do
horário semanal para 40 horas. E o PSD tentou uma aproximação ao PS para um
consenso. Mas os socialistas, irredutíveis, acusavam o Governo de
insensibilidade social e apresentaram uma série de propostas com impacto
significativo no Orçamento Retificativo.
O exemplo mais eloquente será o do IVA da restauração, que o PS quis baixar
de 23% para 13%. E, no texto que acompanhava a proposta, o PS enfatizava o “efeito
contraproducente” da taxa máxima e acusava o Governo de ir além da troika. Uma
proposta que o PSD, então pela voz do deputado Virgílio Macedo, lamentou que
não fosse acompanhada por medidas de compensação para evitar a perda de receita.
Os socialistas tentaram também que o subsídio de férias, cujo adiamento
causou muita polémica, fosse pago até dia 15 de julho desse ano e que o
subsídio social de desemprego fosse prorrogado em 6 meses. Porém, o
Retificativo seria aprovado sem que os partidos da maioria aceitassem alguma
proposta de alteração apresentada pela oposição (eram mais de 50 medidas).
O parecer encomendado pelo Governo ao Centro de Competências Jurídicas do Estado
visa: recordar a “norma-travão” inscrita na Constituição (CRP) e que supostamente veda aos deputados a aprovação de
leis que mexam na receita e na despesa fora do âmbito do Orçamento do Estado (OE) e impede o Parlamento de alterar aspetos do documento
que o Governo não tenha tomado a iniciativa de alterar, sob pena de o “desvirtuar”.
O parecer, discutido com os partidos por Duarte Cordeiro, Secretário de
Estado dos Assuntos Parlamentares, mereceu críticas de vários setores. Marques
Mendes, no dia 14, considerou-o ato “provocatório” e de “intromissão” no
trabalho parlamentar e Louçã escreveu, no Expresso,
que tudo não passa dum “jogo de intimidação”. O PSD falou de prática “pouco
democrática” e lembrou a atitude do PS, nos tempos do Governo PSD/CDS; o Bloco de
Esquerda frisou que o último Orçamento Retificativo é de 2013 e nenhum partido
se coibiu de lhe fazer propostas de alteração; o PCP avisou que a Assembleia
não pode ficar “limitada” na ação; o CDS recordou que o PS aprovou medidas que
aumentavam despesa no passado; e o PAN queixou-se de “intromissão” por parte do
Governo.
Questionado aquando da tomada de posse do novo Ministro das Finanças, Costa
classificou o parecer como uma espécie de auxiliar de memória para novos
parlamentares, dizendo:
“Como é sabido, há muitos anos que Portugal
não tinha orçamentos suplementares ou retificativos – desde que sou Primeiro-Ministro
é a primeira vez que acontece –, muitos dos deputados são novos e talvez
houvesse menos memória sobre qual é o quadro próprio inerente à elaboração de
orçamentos retificativos”.
E acrescentou que, mesmo no quadro de um Orçamento Retificativo, a lei-travão
prevalece.
***
O parecer que chegou aos deputados – solicitado formalmente, a 9 de junho,
ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, pedido por André Moz Caldas, Secretário
de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, e entregue três dias depois –
enuncia princípios como a “estabilidade e coerência da lei” para lembrar que os
deputados, tal como estabelece a norma-travão, do n.º 2 do art.º 167.º da CRP, “não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de
alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou
diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.
Não é novidade
que os deputados não possam fazer alterações que mexam significativamente na
receita e na despesa que ficam definidas em sede de OE, mas o Governo lembra-o
enquanto tenta aprovar o documento, frisando que a regra da estabilidade se
aplica também no contexto do Orçamento Suplementar, para mais quando é o
próprio Governo a propor uma subida significativa do défice para fazer face à
pandemia e à crise que chegou com ela.
Esta
posição é justificada por escritos, quer do Centro de Competências Jurídicas do
Estado como de juristas/constitucionalistas como Gomes Canotilho, Vital
Moreira, Jorge Miranda, Tiago Duarte ou Guilherme d’Oliveira Martins, para
concluir que “o entendimento da
doutrina dominante” é que “o poder de emenda parlamentar” se
encontra “sujeito a severas
limitações” e
que, se tal não sucedesse o Governo poderia estar sujeito a um “esvaziamento ou
depreciação”, dada a potencial “descaraterização” da sua iniciativa.
Mas este não é o único aviso
aos deputados. Boa parte do parecer dedica-se a endereçar outra questão
colocada pelo Governo: os
deputados também não poderão mexer em partes do
Orçamento do Estado que o Governo não tenha proposto alterar no
Orçamento Suplementar. Ou seja, as alterações terão de ficar limitadas aos
assuntos em que o Executivo quer mexer.
O parecer cita diversa
legislação para dizer que o OE é uma lei de valor reforçado e que fica vedada a “iniciativa originária dos deputados”, para
“garantir a estabilidade do plano financeiro anual gizado pelo Governo e aprovado
pelo Parlamento contra vicissitudes que o desequilibrem ou que lhe desconfigurem
a coerência. O acórdão 317/86 do Tribunal Constitucional é claro:
“Não
é de aceitar que, face a uma simples proposta de alteração do Orçamento, a AR
possa proceder a modificações orçamentais que não se inscrevem no âmbito da
proposta do Governo”.
Em cima da mesa está, pois, uma
proposta de Orçamento que prevê uma quebra de 9,1% das receitas para 86,6
mil milhões de euros e um aumento da despesa em mais 4,39 mil milhões face ao
OE apresentado em dezembro. Por isso, o Executivo quer travar o ímpeto dos
deputados de apresentar propostas mais despesistas que poderiam elevar a
fasquia do défice além dos 6,3% do PIB e da dívida pública acima dos 134,4%,
previstos no documento. E os
deputados ficam avisados com um recado do Governo transmitido a poucos dias de
começar a discussão da proposta de lei, que foi debatida e aprovada na
generalidade hoje, dia 17 de junho, seguindo-se a discussão na especialidade e a
votação final global (esta a 3 de julho).
***
Porém, há constitucionalistas a discordar da posição do Governo. Jorge Miranda e Bacelar Gouveia assentam em que o Orçamento
Suplementar tem estatuto idêntico ao do OE, pelo que os deputados podem propor aumentos de despesa. Para ambos
os constitucionalistas, aqui não se aplica a norma-travão inscrita no n.º 2
dado art.º 167.º da CRP.
Jorge Miranda observa:
“Quando há um Orçamento em vigor e há uma
lei qualquer, não orçamental, que aumente a despesa, não há menor dúvida de que
se trata de uma inconstitucionalidade. Agora se é um Orçamento
Suplementar, que tem a natureza de Orçamento, não vejo que haja aí qualquer
inconstitucionalidade. Os deputados, em face das mudanças ou das
vicissitudes económicas e financeiras, podem perfeitamente aumentar ou diminuir
as despesas. Um Orçamento Suplementar é ainda uma lei orçamental, não é uma lei
ordinária qualquer”.
“Não estou de acordo com o
Governo”, diz Bacelar Gouveia, justificando a
sua oposição com o facto de, neste caso, não se aplicar a norma-travão,
exclusiva para leis não orçamentais. Se assim não fosse, “então a Assembleia da
República nunca poderia fazer nada”. E prossegue:
“As regras determinam que a iniciativa é
sempre de fora, do Governo, mas, assim que entra, a entidade que delibera tem
todo o direito de aumentar ou diminuir a despesa como muito bem entender”.
O que o predito artigo da Constituição salvaguarda é, segundo Bacelar Gouveia, que “não o pode fazer fora do ambiente do
Orçamento, de forma avulsa”, mas, sendo o segundo processo
orçamental, é como se fosse um orçamento inicial”. E a norma não se pode
aplicar a iniciativas orçamentais, mesmo suplementares ou retificativas.
E o constitucionalista estranha o facto de o Governo querer limitar este
direito a um órgão da soberania, onde se decide o destino do país.
***
Para já, é de referir que o n.º 2 do predito art.º 167.º está mal aplicado:
aos deputados, em termos de iniciativa legislativa, cabe apresentar projetos de
lei (vd alíneas a e b, do art.º 156.º – poderes dos deputados); as propostas de lei são iniciativa do Governo (vd alínea d, do n.º 1 do art.º 197.º) ou das Regiões Autónomas (vd alínea f do n.º 1 do art.º 227.º); e a iniciativa de grupos de cidadãos é a petição,
que os deputados podem transformar ou não em projeto de lei. Não era, pois, necessário
falar de propostas aqui, já que o art.º 167.º refere todas as entidades que
podem ter iniciativa da lei ou do referendo, importando fazer a destrinça na aplicação
da norma.
Entendo que haja deputados novos que não tenham memória de retificativos ou
suplementares. No entanto, deveria ser a mesa do Parlamento a recordar determinadas
limitações aos poderes dos deputados e não o Governo. Por outro lado, ainda que
se aplicasse a norma-travão, a limitação da iniciativa diria respeito ao
aumento global da despesa ou à diminuição global da receita e não a nível
setorial. As normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente.
Aliás, já houve um caso de iniciativa dos deputados – o da volta às 35
horas de trabalho na Administração Pública – em que poderia em tese haver
aumento de despesa no mesmo ano económico, tendo o Chefe de Estado promulgado o
diploma aprovado e garantido que manteria a sua vigilância sobre a sua execução.
Não sei se e como o conseguiu.
Enfim, mais do que a discussão deste tipo de normas, importa a salvação da saúde
e da economia, sendo que o bem da comunidade deve ser a lei suprema.
2020.06.17 –
Louro de Carvalho
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