Que os
cidadãos portugueses são portadores dum comportamento cívico e exemplar diz-se
em tempo de eleições como se diz em tempo da epidemia que deu lugar a
confinamento no quadro do estado de emergência e a desconfinamento gradual no de
calamidade pública.
Porém, nem
os cidadãos são tão disciplinados ou responsáveis como se faz crer nem os decisores
políticos são tão exemplares e eficazes como quer impingir a imagem que nos
dão.
Se os
cidadãos fossem tão responsáveis como se diz, a abstenção eleitoral não seria
tão grande, algumas figuras públicas nunca seriam eleitas, a deslocalização de
capitais e empresas seria residual, a economia subterrânea pesaria muitíssimo
pouco, a fuga aos impostos seria mínima e por inadversão e a candidatura a
subsídios e bolsas de estudo nunca seriam fraudulentas.
Quanto aos
decisores políticos e técnicos, que também são cidadãos, basta dizer que seriam
persuasivos na prevenção, assíduos na fiscalização e eficazes na justiça e dariam
o exemplo na honestidade e compostura.
No contexto
da pandemia de Covid-19, os cidadãos obedeceram inicialmente às indicações
superiores levados pelo medo gerado pela incerteza. As
informações de índole técnico-científica eram contraditórias, pesando mais as
de teor catastrófico, quando as das autoridades políticas e sanitárias eram de
teor mais leve. Depois da sua autoquarentena, o Presidente da República
conseguiu unir em torno de si o Governo e a Assembleia da República para
declarar o estado de emergência, que teve três edições sucessivas – o que
reforçou o medo coletivo, gerador de depressão, e levou, com poucas exceções,
ao encaixotamento de famílias em apartamentos, encaixilhamento em vivendas ou
ventilação natural em aldeamentos de casas sem condições e na rua. Praticamente
o país entrou em férias, excetuando os que estiveram na linha da frente (pessoal da
saúde e polícias) e os que
estiveram na retaguarda para que nada faltasse de essencial.
E logo
surgiram os mais amigos da economia a lançar o alerta de que o país não
aguentava parado, contrariando os amigos da saúde pública e pessoas ansiosas ou
mesmo deprimidas, o que deu azo a que os decisores fossem abrindo para a retoma
controlada das atividades, com a advertência de que, se necessário, haveria
recuo.
Entretanto,
com a declaração de calamidade pública, passou a ser obrigatório o uso de
máscara (ultrapassada
a discussão sobre a sua eficácia) em todos os
espaços fechados de atendimento ao público, bem como o respetivo distanciamento
social, exceto nas viagens em aeronaves.
É de
recordar que, fechadas as escolas e confinadas as crianças em casa, muitos dos
cidadãos responsáveis tinham enchido as praias e centros comerciais. Não poucos
começaram a açambarcar alimentos, medicamentos e produtos de higiene pessoal.
E, se muitos se reinventaram na sua ocupação, profissão e empresa, outros
fizeram negócios ruinosos para o Estado e para a comunidade, dando a impressão
de que não estamos todos no mesmo barco, tendo muitos jogado no “Salve-se que puder!”.
Nunca deixou
de se ter acesso a jornais, rádio, televisão, computador e internet (afora os
mais carenciados e os lugares em que as telecomunicações são inexistente ou
intermitentes) e foi
possível levar a passear o animal de estimação (não sei se também o passeio higiénico), mas os funerais passaram a ser quase clandestinos,
os ajuntamentos proibidos, bem como os atos culto presencial.
É de inteira
justiça mencionar e louvar as ondas de solidariedade para ir ao encontro das
muitíssimas pessoas que passaram a necessitar de alimentos, de roupa, de
aquisição de produtos nos supermercados e farmácias, bem como a criação de
mecanismos de esbatimento da solidão e de apoio psicológico e ocupacional e
ainda as muitas ofertas de empresas e outras entidades que ofereceram bens
necessários ao SNS (ventiladores, máscaras, luvas, desinfetantes,
viseiras…). E é de justiça frisar o bom
desempenho dos decisores políticos durante muito tempo, dando a imagem de união
no essencial em prol do bem público.
Ao invés,
foi confrangedora a paragem de atendimento sanitário que não de emergência aos
pacientes não afetados por Covid-19. Nem todos os hospitais públicos
trabalharam para a Covid-19 e os privados muito menos. Clínicas médicas e
dentárias fecharam, bem como postos de colheitas de material para análises
clínicas e outros exames complementares de diagnóstico encerraram. Porém, clínicas
veterinárias mantiveram-se em funcionamento.
E ainda
hoje, enquanto há incentivos a que os doentes não deixem de se tratar porque as
clínicas e hospitais oferecem condições de segurança e se recomenda que os pais
levem as crianças à vacina, as ARS mandam mensagens aos cidadãos para que não
se desloquem à respetiva USF, mas que telefonem. Porém, muitas são morosas a
atender o telefone, não marcam consultas, não preveem marcação de vacinação,
não sabem dizer como deve o utente fazer no caso de precisar de baixa médica… E
veem-se casos de pessoas que esperam do lado de fora das instalações da USF e
são atendidas à porta, o que num serviço público é mais que degradante.
É caso para
perguntar o que estão os médicos de família a fazer na USF ou se, quando uma
barbearia, uma farmácia ou um restaurante tiveram tempo de criar condições de
segurança sanitária, os serviços do Estado ainda não conseguiram adaptar-se à
nova normalidade. Não admira, pois há um moderno hospital público em que, tendo
caído, há mais de meio ano, o muro de suporte ao terreno envolvente onde está assente
o heliporto, ainda ali está o testemunho da negligência do Estado, não podendo
funcionar dali e para ali o helitransporte de doentes.
E, além dos
festejos do 25 de Abril, do 1.º de Maio e do 10 de Junho, a que já me referi
noutras ocasiões, penso que equilibradamente, os casos que agora vêm à tona são
lamentáveis.
A cerimónia que
reuniu em Belém as mais altas figuras do Estado para anunciar a realização,
em Lisboa, dos jogos de futebol da fase final da Liga dos Campeões dá, como deu
noutras ocasiões semelhantes, um sinal de subalternização do poder político a
um grupo de pressão com tendência a servir de terreno onde se jogam influências
e se permutam favores e apoios.
Com efeito,
a pandemia está longe de ter sido debelada. Ora, como toda a gente sabe,
uma situação excecional, enquanto persistir, postula medidas de exceção e,
obviamente, prudência e sensatez. E, desta vez, isso não aconteceu. João Cândido da Silva diz hoje, no Expresso
online diário, que o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da
República e o Primeiro-Ministro “transformaram-se
nos porta-vozes da desmoralização e do relaxamento e desferiram um golpe na
credibilidade das regras e recomendações que desaconselham e tentam impedir
aglomerações de pessoas”.
Na verdade,
supondo que foi uma vitória de Portugal e uma vitória do presidente da FPF, por
suposto ascendente na UEFA, acabaram por esquecer que “os pais que têm crianças
que não podem ir à escola” e ignoraram “as imensas dificuldades de quem tem de
reerguer negócios sob a obrigação de cumprir restrições que, em nome da saúde
pública, dificultam a tarefa”. Se é uma forma de promover o Portugal turístico
que urge recuperar, não explicaram como, podendo não haver público nos
estádios, até porque os festivais foram cancelados, a marca Portugal pode ser
promovida por bancadas vazias. Nem a UEFA nem a FPF, que não são a OMS, têm
autoridade para suprir o distanciamento social ou obrigar a jogar a dois metros
de distância. E não sei como a Diretora-Geral da Saúde considera a FPF um bom
parceiro na luta contra a pandemia.
Marques
Mendes opinou, na sua ainda fresca homilia dominical, que teremos durante 15
dias os melhores atletas do mundo em Portugal, com benefício para a hotelaria
nacional.
Além disso,
não se estava festejar uma vitória desportiva e Portugal não terá no certame
nenhuma equipa sua. E, se há proveito para a economia, também há encargos como
a logística e o policiamento, além do risco acrescido de contágio. Ademais,
pergunta-se porque a escolha do local do evento recaiu sobre Portugal, que é,
embora injustamente (os critérios não podem basear-se apenas no número de
infetados), visto de soslaio sobre a evolução
da pandemia. Outros países não arriscaram? Portugal disponibilizou-se sem
contrapartidas?
Tem de se
fazer a retoma da economia, mas, porque não há vacina nem fármacos com total e
comprovada eficácia para a Covid-19, exige-se o comportamento disciplinado e
responsável dos cidadãos. O vírus, que é insensível à propaganda, ao desporto e
à política, tem uma capacidade de propagação que beneficia com os sinais
errados e os maus exemplos. E, neste caso, o sinal é de que as portas estão
patentes ao regresso à normalidade.
Ora, se os
decisores de topo incorreram nesta ambiguidade, como nos podemos admirar que
uma celebração em Lagos tenha gerado quase uma centena de infectados
ou que mais de mil pessoas tenham participado numa festa num parque
de estacionamento em Carcavelos, na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde o
desconfinamento tem desencadeado a maioria dos novos casos de
infeção? E, se a polícia teve de intervir, em Braga e no Porto, para
desagregar grupos que violavam as normas, se dezenas de jovens, provenientes de
praias e esplanadas, chegaram infetados ao Hospital de Santa Maria e, se a
Polícia Marítima, em Setúbal, dispersou agrupamentos de jovens nas praias da
Arrábida, é caso para pensar porque não desagregaram ou não dispersaram os
festejantes de Belém.
Todos
sabemos que, à medida que o desconfinamento cresce, os riscos aumentam. Porém,
os abusos têm de ser reprimidos e o exemplo de cautela da parte de quem está no
topo das estruturas de poder devia subir e dar a inquestionável cobertura moral
e política à intervenção das forças de segurança.
Os
supramencionados decisores não são responsáveis diretos pelos casos de
incumprimento, mas tinham de praticar a contenção e o comedimento e não ceder à
tentação da conquista de popularidade a qualquer preço. E não podem agora atirar-se
desalmadamente em direção à outra banda, como parece estar a fazer o Primeiro-Ministro
ao vir a público ameaçar com forças da ordem na rua a multar
indiscriminadamente ou o Chefe de Estado, que diz não ter poderes executivos, ao
admitir a aplicação de “medidas mais duras” das autoridades e queixas ao
Ministério Público.
Enfim, modus in rebus! Mas o país precisa de
economia que não deixe ninguém para trás e de saúde para todos e cada um. A
Covid-19 não pode ser panaceia para a preguiça e negligência, pois, mesmo em
terso de saúde, há mais vida para lá da Covid-19. Oxalá não venha a Covid-20!
2020.06.22 – Louro de Carvalho
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