sexta-feira, 31 de julho de 2020

Uma das vítimas da pandemia pode ser a democracia


Celebra-se, no último dia do mês de julho, a Memória litúrgica (na Companhia de Jesus é uma solenidade) de Santo Inácio de Loyola presbítero, que, natural do País Basco, na Espanha, viveu na corte e no exército, até que, gravemente ferido na Batalha de Pamplona, se converteu a Deus. Fez os estudos teológicos em Paris e associou a si os primeiros companheiros – entre eles, o seu professor Francisco Xavier –, com os quais, mais tarde, constituiu a Companhia de Jesus em Roma, onde exerceu frutuoso ministério, quer pelas obras que escreveu, quer na formação dos discípulos, “para maior glória de Deus(o lema jesuítico).
Inácio nasceu em Azpeitia, região basca ao norte da Espanha, em 1491, e faleceu em Roma em 1556. O mais novo de 13 irmãos era destinado à vida sacerdotal, mas o seu desejo era a carreira militar. Foi a Castilha onde recebeu esmerada formação tornando-se exímio cavaleiro na corte do ministro do rei Fernando II de Aragão, o Católico. Ferido em batalha em 1520, permaneceu em longa convalescença no Castelo de Loyola. E, como não havia livros de Cavalarias – seus preferidos –, começou a ler, com relutância, textos religiosos, que o fizeram encontrar Deus.
Foi um momento que mudou a sua vida, levando-o a fundar, mais tarde, a Companhia de Jesus aprovada pelo Papa Paulo III em 1538. Por obediência ao Pontífice, Inácio permaneceu em Roma para coordenar as atividades da Companhia e se dedicar aos pobres, órfãos e doentes, a ponto de ser chamado “apóstolo de Roma”. Os seus restos mortais repousam na Igreja de Jesus.
Na celebração da memória do fundador da Companhia de Jesus, é justo recordar a figura de Inácio, o seu carisma e a grande atualidade dos Exercícios Espirituais, bem como as palavras que Francisco, o primeiro Pontífice jesuíta, escreveu no seu twitter há um ano: “Como Santo Inácio de Loyola, coloquemo-nos ao serviço do próximo”. Com efeito, era um homem que, antes do encontro com Jesus, amava o poder e a mundanidade, mas depois, com dedicação, estudo e escuta a Palavra de Deus, entregou-se à sua vontade com enorme paixão.
Em Roma, na Igreja de Jesus, onde se encontra o seu túmulo, o Padre Jean Paul Hernandez descreve-o como “um homem que dá preferência ao processo e a dinâmica”, “em saída” como o Papa Francisco gosta de afirmar. Na verdade, com assegura, “o centro do carisma do jesuíta é a obediência, que é a liberdade do coração”. Assim, o jesuíta é um homem entregue a Deus e aplica um estilo que passa pela análise a realidade na qual se encontra, o seu aprofundamento, a oração e o discernimento – processo em que são fundamentais os “Exercícios Espirituais”, codificados na primeira metade do século XVI e ainda hoje de grande atualidade, praticados pelos religiosos, por leigos inspirados na espiritualidade inaciana e pelos ortodoxos.
“O estilo do jesuíta faz com que cada um se especialize no âmbito ao qual é chamado” – refere o Padre Hernandez – “por isso dedicamo-nos à nova evangelização, aos desafios do saber atual, mas também aos migrantes que representam a emergência dos nossos tempos”.
O Centro Astalli (Serviço dos Jesuítas para os Refugiados), próximo da Igreja de Jesus em Roma, é uma das muitas respostas dos jesuítas, com cerca de 17 mil presenças em 100 nações do mundo.
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No dia em que a Igreja recorda Santo Inácio de Loyola, o padre venezuelano Arturo Sosa, Prepósito Geral da Companhia de Jesus, a mais alta autoridade da Companhia de Jesus fala da missão dos jesuítas no mundo transformado pela pandemia, vincando que a tentação de autoritarismos é um risco real, pelo que temos agora uma boa ocasião para proceder ao reforço da fraternidade em termos humanos e cristãos.
A este respeito, Antonella Palermo, do Vatican News e da Rádio Vaticano, entrevistou o Padre Sosa, que falou dum mundo “distanciado” e do medo dum vírus que não desaparece e que se espalha por muitos lugares, criando condições propícias para o risco de personalismos políticos quando é fundamental “a bússola orientada para o bem de todos”. Também aflora, na entrevista, o esforço para proteger os frágeis, os que a covid-19 não poupa, mas que têm pouca ou nula hipótese de se protegerem adequadamente, como é o caso dos migrantes.
O parecer do Prepósito Geral abrange toda a missão conduzida pela Companhia, sobre as pedras angulares da espiritualidade que continuam a ser um farol, os acontecimentos atuais mais urgentes e o papel desempenhado pela Companhia de Jesus na provação do novo coronavírus.
O Padre Sosa diz que, na missão, os jesuítas experimentam as provações das populações afetadas e, sobretudo, as consequências sociais da pandemia. E, seguro de que a pandemia é um problema de saúde, que será ultrapassado, sabe que as consequências sociais, económicas e políticas têm de ser levadas muito a sério, pelo que é preciso tentar saber como continuar a servir os mais necessitados neste contexto.
Das muitas experiências que a Companhia regista, menciona as da Índia, no Sul da Ásia, referindo que todos se asseguraram de que os alimentos e medicamentos são entregues de forma muito generosa às pessoas que não são capazes de se prover por si mesmas, pois ninguém ali se pode curar a si mesmo sem curar os outros e ninguém pode curar os outros se não se curar a si mesmo. Revela que há muitas experiências de acompanhamento, quer pessoais, quer sociais, não se tratando apenas de celebrar missas nas redes sociais, mas de “estar presente na vida das pessoas” com todos os meios disponíveis. É uma experiência muito complexa e muito interessante, que merece ser avaliada ao longo do tempo e constitui “uma confirmação do discernimento na missão recebida através das preferências apostólicas universais”. Destas, destacam-se quatro preferências aprovadas pelo Papa, que põem os jesuítas no centro do que deve ser feito agora, no contexto da pandemia: “ver que Deus pode nos mostrar como devemos caminhar”; “transformar as estruturas sociais claramente injustas”; “cuidar da criação”; e “ouvir os jovens, que são a semente da esperança para o futuro”.
Questionado sobre o facto de “vários países explorarem a pandemia para mudarem a política migratória”, sustenta, como tem dito, muitas vezes, que “uma das vítimas da pandemia pode ser a democracia se não cuidarmos de nossa condição política”, pois a grande tentação de muitos governos, incluindo os chamados governos democráticos, é tomar, neste momento, o caminho do autoritarismo. Sabendo-se que a Companhia de Jesus está muito empenhada em acompanhar os migrantes, vários países aproveitam pandemia para mudar a política migratória restringindo a passagem de migrantes ou o seu recebimento, “o que é um grande erro se considerarmos que queremos tornar o mundo mais fraterno e justo”. Discriminar novamente os migrantes “seria, e é, um grande perigo e seria um sinal de um mundo que não queremos”. E, em matéria de trabalho, muitas empresas aproveitam a oportunidade para despedir trabalhadores, reduzir os salários ou não pagar o que têm a pagar ou reduzir os benefícios de saúde pública. Assim, “a pandemia é uma oportunidade de dar passos para frente ou para trás”. E devemos estar muito conscientes disso, como Igreja Católica e como pessoas comprometidas com a justiça e a paz.
Instado a pronunciar-se sobre o critério mais adequado ao momento que Santo Inácio de Loyola sugeriria, seleciona a proximidade com os pobres como um critério muito importante e claro, pois, “se não somos capazes de olhar o mundo de perto, compartilhando o olhar dos pobres, que é o olhar de Jesus na Cruz, estamos errados na tomada de decisões” e, “se os pobres não podem ser atendidos, não podem ter um emprego, então o mundo não está bem”. E a seguir, selecionou o critério do cuidado com a casa comum, pois, “se a terra sofre, não podemos habitá-la”.
Em relação à América Latina, diz sentir “grande dor” ao ver quanto a pandemia atinge aqueles povos e está muito preocupado por não existirem “estruturas sociais ou políticas que possam realmente lidar com esta emergência”, desejando que “aproveitem esta oportunidade para ver que mudanças precisam de ser feitas nas estruturas para garantir um futuro melhor para todos os latino-americanos”.
Sobre as pedras angulares da espiritualidade inaciana, fala do “encontro pessoal e profundo com Jesus Cristo, o Crucificado Ressuscitado, que nos leva a uma tal familiaridade com Deus que somos capazes de encontrá-Lo em tudo e em todos os momentos”, sendo que tal familiaridade “significa uma vida verdadeiramente de oração e serviço” e verdadeiramente livre. Para tanto, ressalta a importância do Exame de Consciência (pelo menos duas vezes ao dia) – “talvez uma das caraterísticas menos conhecidas da espiritualidade inaciana” – como forma de agradecer a Deus a sua manifestação na história, “conseguindo ser guiado pelo Espírito, completamente atento a esta orientação, que é uma exigência da vida baseada no discernimento na missão”. Depois, aponta o trabalho, pois não se deve desligar a conexão entre a vida comum e a vida no espírito.
Com relação à colaboração entre leigos e jesuítas, acentua que Inácio escreveu os “Exercícios Espirituais” quando era leigo. Só se tornou padre, “quando viu que era a melhor maneira de fazer um serviço à Igreja naquela época”. Assim, a experiência de conversão foi para ele encontrar “um método feito por um leigo, cuja partilha inicial foi com os leigos”. Por isso, os jesuítas querem dar a este aspeto laical importância especial no seu trabalho, tentando transmitir esta experiência ao maior número de pessoas possível. Há dezenas de leigos experientes nos “Exercícios Espirituais” que podem acompanhar os outros e cujas vidas foram transformadas; e para os “Exercícios Espirituais” não há barreiras sociais, sendo sempre “um dom do Senhor”.
Quanto ao estado das vocações para a vida religiosa jesuíta e o processo de formação para entrar na Companhia, frisa que “o problema não é o número, mas a qualidade das pessoas”. E diz:
O número diminui em países onde tradicionalmente éramos mais numerosos, como a Europa, a América do Norte. Entretanto, a qualidade é muito alta, posso garantir, mesmo que sejamos menos do que no passado. Temos um grande número de candidatos na África e em algumas áreas da Ásia e fazemos o grande esforço para uma formação, que é o que sempre se sonhou para um jesuíta. É uma formação longa, complexa e exigente, que se mantém inalterada.”.
Por fim, reponde à questão se Santo Inácio não pensou em um ramo feminino da Companhia, apontando que “a Ordem é o que ela é, mas a espiritualidade ilumina muitas outras realidades religiosas”, sendo que, nas suas escolas, centros de espiritualidade e formação e centros sociais, “um grande número de mulheres participa em nível gerencial, como inspiradoras de algumas atividades, compartilham a espiritualidade e a missão” jesuíta. Embora não haja mulheres jesuítas, trabalham “juntos na mesma missão”.
E porque não instituir um ramo feminino jesuíta nos tempos atuais? Quem pergunta não ofende, digo eu, como diz o povo.  
2020.07.31 – Louro de Carvalho

Normal é o Governo evitar o escrutínio e a oposição intensificá-lo


Recentemente foi aprovada uma série de alterações ao Regimento da Assembleia da República (AR) e, segundo os observadores, tal ação parlamentar redundará em défice para a democracia, sobretudo no atinente à fiscalização do Governo por parte dos deputados, que são eleitos diretamente, quando o Governo não o é, embora o Presidente da República tenha de considerar os resultados das eleições legislativas e ouvir os partidos com assento parlamentar.  
E a alteração regimental que mais brado político concitou foi o fim dos debates parlamentares quinzenais com o Chefe do Governo, uma iniciativa que partiu do líder do maior partido da oposição e que na certa agradou ao Primeiro-Ministro (PM). Com efeito, António Costa, quando comentador político na extinta “Quadratura do Círculo”, da SIC Notícias, chegou a denominar de totalmente estúpida a medida regimental que obriga o PM a ir tão frequentemente ao Parlamento a responder às questões dos deputados. Disse-o, não sendo ainda Chefe do Governo, mas em contradição com o antigo líder da bancada do PS, António José Seguro, que apadrinhou, no consulado de José Sócrates, em 2007, a medida proposta por Paulo Portas, seguindo em parte a linha do Parlamento do Reino Unido, onde o PM responde em periodicidade semanal.
Num regime semipresidencialista, é espectável que o executivo evite ser incomodado pelo escrutínio dos deputados e que as oposições façam questão de incomodar o mais possível o executivo através de debates, perguntas extradebates, requerimentos, pedidos de esclarecimento, resoluções, deliberações, etc. É claro que a António Costa ficaria politicamente mal urgir tal alteração, mas o núcleo duro do seu partido, apesar de uma boa franja de críticos estrebuchar, iria acolher de braços abertos a iniciativa de Rio, que prendeu acabar com a gritaria, em vez de tentar corrigir o desenrolar dos debates parlamentares e conseguir com eles mais eficácia.
Em 2007, foi um membro do partido que sustentava um governo maioritário a propor uma alteração regimental a urgir uma forma de escrutínio sistemático; desta feita, é o líder do maior partido da oposição a dispensar o Governo de sujeição tão apertada ao escrutínio parlamentar. E o argumento de rui Rio é que o PM não pode passar a vida em debates, tendo de trabalhar. E os críticos do líder socialdemocrata sustentam que o debate parlamentar também é trabalho para o Chefe do Governo, sendo que, segundo o ex-deputado Matos Correia, também socialdemocrata, “quanto mais contas prestar o Primeiro-Ministro, melhor para a democracia”.
Miguel Carrapatoso coloca a questão de se tratar de enobrecer o debate ou de desferir um golpe irreversível na democracia parlamentar. A maior parte dos deputados do PS e do PSD puseram um ponto final nos quinzenais com o PM e alegadamente reforçaram o papel dos debates setoriais com os ministros e reduziram a frequência dos embates com o Chefe do Governo, tendo a discussão sido iniciada pelo líder socialdemocrata, que acabou sob um ataque cerrado, muito embora o PS tivesse proposta quase igual. Mas Rio aduziu que “estes debates, em que todos procuram criar incidentes”, desgastam a imagem da AR, do PM e dos grupos parlamentares e não melhoram a democracia nem trazem “qualquer dignidade”.
Todavia, Rio não ficou por aqui. Propôs ainda: a criação dum Conselho de Ética composto por não deputados em maioria para “evitar juízes em causa própria”; a integração de personalidades independentes nas comissões parlamentares de inquérito (CPI) para despartidarizar a discussão; e um novo modelo de debate – propostas bem populistas! O PS não acolheu as duas primeiras propostas, mas acompanhou o PSD na última. No essencial, sociais-democratas e socialistas concordaram que os debates setoriais sobre temas concretos devem ganhar primazia. Em alternativa, o PS sugeria que o PM fosse uma vez por mês ao Parlamento; o PSD, por seu turno, entende que deve ir 8 vezes por ano: 4 ordinárias, duas antes de dois conselhos europeus, uma vez no debate do estado da nação e outra durante o Orçamento do Estado – sem prejuízo de ser lá chamado sempre que se justificar. E o novo modelo estará em vigor já em setembro.
As críticas, no entanto, são muitas, como se disse. E, ao Expresso, José Matos Correia, que em 2007 integrou, pelo PSD, o grupo de trabalho que originou o atual regimento (com a figura dos debates quinzenais), disse que o modelo que agora termina contribuiu para o papel do Parlamento como “centro de fiscalização”, pelo que a sua eliminação “empobrece o papel do Parlamento e da democracia”. Também Miguel Pinto de Luz, vice-presidente da Câmara de Cascais e challenger de Rio nas últimas eleições diretas do partido, entende que “os debates quinzenais valorizam a Assembleia e o papel dos deputados”, sendo “um erro e um ataque ao espírito da democracia” a sua eliminação ou diminuição. E Pedro Santana Lopes, fundador da Aliança, antigo líder parlamentar, antigo presidente do PSD e antigo Primeiro-Ministro, classifica de incompreensível a iniciativa do PSD, pois “no tempo que vivemos, não faz sentido reduzir ou eliminar qualquer instrumento democrático ou figura regimental que permita o controlo do poder”, como “não faz sentido que alguém da oposição aceite ou até proponha menos debates com o Primeiro-Ministro”.
Entretanto, o eurodeputado Carlos Zorrinho, que foi o presidente do grupo parlamentar de Seguro, aproxima-se destas propostas, porque “os modelos valem pela sua prática” e “o atual funcionou bem e mal”, sendo que a proposta lhe parece “um upgrade da reforma de 2007”.
Rio reconhece que o tema é sensível, mas classifica de “demagógicas” as críticas sobre a intenção de fragilizar o escrutínio ou diminuir o papel do líder parlamentar para proteger o Governo. Acha que isto estava mal e que tinha “a obrigação de pôr isto bem”, pois “hoje, o Primeiro-Ministro é António Costa, amanhã será outro”.
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Em síntese, o PSD propôs a realização obrigatória de 4 sessões de perguntas ao PM por ano no Parlamento, em vez dos atuais debates quinzenais, e outras 4 com ministros setoriais, em que o líder do Governo pode estar presente. Assim, a presença obrigatória do Chefe do Governo na AR subirá para 8 vezes por ano se se contabilizar o debate do Estado da Nação, que se inicia com uma intervenção do PM, e a discussão do Orçamento do Estado, que é aberta ou fechada por este (embora o regimento não o pormenorize). E acrescentam-se a esta contabilidade duas presenças anuais do PM em sessão plenária sobre temas europeus. Porém, esta também diminuiria, já que outra iniciativa socialdemocrata considera excessiva a exigência dum debate com o líder do Governo antes de cada Conselho Europeu, que passaria para uma vez em cada semestre, em março e setembro. Porém, o PS não acolheu tal diminuição, pelo que a presença obrigatória do Chefe do Governo na AR ocorrerá 10 vezes.
Também o líder do PSD pretendia que as sessões plenárias da AR passassem de três para duas (quartas e sextas-feiras), sendo a de quinta-feira apenas realizada quando existissem debates com o PM e com os ministros setoriais, o que o PS não aceitou.
Na proposta do PSD, estipula-se que “o Primeiro-Ministro comparece perante o plenário para uma sessão de perguntas dos deputados nos meses de setembro, janeiro, março e maio”. Até 48 horas antes do debate, os partidos comunicam à AR e ao Governo as concretas áreas setoriais, “no máximo de duas, sobre as quais devem incidir as perguntas”. O projeto do PSD admitia que, surgindo nas 48 horas anteriores ao debate outras questões de atualidade política, “podem ser colocadas ao Primeiro-Ministro”; e, se este não responder, a bancada que fez a pergunta “tem o direito de a colocar por escrito ao Primeiro-Ministro”, tendo este o dever de responder em 48 horas, “sob pena de ter de comparecer, para dar resposta presencial, na primeira sessão plenária seguinte ao termo do prazo de resposta”. E o PSD pretendia que este debate passasse a ser mais longo e decorresse em “duas voltas de perguntas dos deputados” – o que foi aprovado –, ao invés do modelo atual, apenas de uma única volta.
Já os debates com os ministros setoriais, em que “o Primeiro-Ministro tem a faculdade de estar presente”, segundo a proposta do PSD, aconteceriam no plenário “nos meses de outubro, fevereiro, abril e junho”, cabendo “a cada um dos grupos parlamentares, por ordem decrescente da respetiva representatividade, indicar o ministro que comparece à sessão de perguntas em plenário”, mas não podendo ser o mesmo ministro “indicado para comparecer na mesma sessão legislativa, nem em dois debates sucessivos”.
O projeto de revisão de regimento do PSD previa alterações em quase 60 dos 267 artigos do regimento, que passam ainda pela criação da figura da recomendação política, distinta dos projetos de resolução por incidirem em matéria que não é da competência da AR e não iriam a plenário, bem como por alterações nas grelhas de tempo dos debates.
A proposta do PSD, que não mereceu aprovação, defendia “a recuperação do princípio da proporcionalidade”, em que os dois maiores grupos parlamentares e o Governo disporiam de 5 minutos cada, os terceiro e quarto maiores grupos disporiam de 4 minutos cada, e os restantes grupos parlamentares de 3 minutos cada para intervirem no debate. Aos deputados únicos representantes dum partido seria garantido tempo de intervenção dum minuto, enquanto os deputados não inscritos poderiam, segundo o PSD, “solicitar ao Presidente da Assembleia a sua intervenção até um máximo de 5 debates em reunião plenária por sessão legislativa, pelo tempo igual ao dos deputados únicos representantes de um partido”, o que não foi aceite tal e qual.
Foi ainda triplicado (de 4 mil para 12 mil) o número de assinaturas de cidadãos eleitores exigível para que uma petição possa ser apreciada em Plenário.
O PSD incluía na proposta de revisão do regimento as alterações que decorrem de outras duas iniciativas apresentadas pelo partido em diplomas autónomos: a substituição da Comissão Parlamentar de Transparência e Estatuto dos Deputados por um Conselho de Transparência e Estatuto dos Deputados e a introdução da participação obrigatória de pessoas da sociedade civil nas CPI, com o estatuto de colaboradores.
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Penso que a criação duma comissão de ética na AR constituída maioritariamente por não deputados não lembraria a ninguém e não acrescentaria nada de relevante, até porque técnicos contratados para um determinado serviço costumam dar parecer em conformidade com a vontade de quem paga. Portanto, é melhor confiar nos deputados e exigir-lhes fiabilidade. E, quanto à participação de pessoas da sociedade civil em CPI, ela não deve ser obrigatória, mas ficar ao critério de necessidade a juízo da mesma CPI. Porém, em termos globais, a AR autodiminuiu o seu poder efetivo de fiscalização e fechou-se mais aos cidadãos e o líder do PSD voltou a marcar pontos com propostas não consensuais, mas aparentemente corretas.
2020.07.31 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 30 de julho de 2020

A Música Sacra, seus fundamentos teológicos e suas expressões

O Vatican News vem publicando uma série de artigos de Jackson Erpen, no espaço de Memória Histórica – 50 anos do Concílio Vaticano II, sobre a Música Sacra, com relevo para os seus fundamentos teológicos e as suas expressões na liturgia, evidenciando o trabalho de reflexão do Padre Gerson Schmidt sobre o tema.
Considerando que “a Liturgia é sempre um tema apaixonante e se enriquece ainda mais de beleza quando falamos de Música Sacra”, assegura que “o homem redimido tem motivos se sobra para cantar e louvar: pelo Pai que criou o Universo cheio de esplendor, por Cristo como glória de Deus que nos é acessível e nos salva, pelo Espírito Santo que geme em nós com gemidos inefáveis e nos faz dar graças a todo o instante”. É pois um “louvor trinitário”.
Depois, ressalta que o tema é abordado no Capítulo VI da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium (SC) – falando da “Importância para a Liturgia”, da “Adaptação às diferentes culturas”, dos “Instrumentos músicos sagrados” e das “Normas para os compositores” –, cujo n,º 116 aponta o canto gregoriano como próprio da liturgia romana, pelo que terá, na ação litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar. Porém, não exclui “todos os outros géneros de música sacra, mormente a polifonia, na celebração dos Ofícios divinos, desde que estejam em harmonia com o espírito da ação litúrgica”. Por seu turno, o n.º 119 sublinha que, “em certas regiões, sobretudo nas Missões, há povos com tradição musical própria”, com excecional impacto na sua vida religiosa e social, convindo dar-se-lhe o lugar que lhe compete, quer na educação do sentido religioso desses povos, quer na adaptação do culto à sua índole. Assim, a formação dos líderes, nomeadamente dos missionários, deve ser cuidada de modo que a música dos povos em causa seja promovida nas escolas e nas ações sagradas.
O canto cultual desenvolveu-se na passagem da sinagoga para a Igreja. Muito cedo se juntaram aos salmos os “cânticos”, a que se alude nos seguintes textos bíblicos:
Quanto estais reunidos, cada um pode cantar um hino, proferir um ensinamento ou uma revelação, falar em línguas ou interpretá-las, mas que tudo se faça de modo a edificar” (1Cor 14,26). “A Palavra de Cristo habite em vós ricamente: com toda a sabedoria ensinai e admoestai-vos uns aos outros e, em ação de graças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos espirituais” (Cl 3,16). “Entre vós, cantai salmos, hinos e cânticos espirituais; cantai e louvai o Senhor no vosso coração; sem cessar, dai graças por tudo a Deus Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5,19).
E há uma série de hinos cristológicos do cristianismo primitivo inseridos nos textos neotestamentários: Fl 2,6-11; Ef 2,14-16; 2Tm 2,11-13. Além disso, é de enfatizar que “o facto de os cânticos de Israel continuarem a ser recitados e cantados como cânticos da Igreja significa que foi conservada toda a riqueza de sentimento da oração de Israel.
Por outro lado, é de esclarecer, com São Tomás de Aquino, que o louvor não é necessário para Deus, mas para quem louva, pois, “mediante o louvor de Deus, o homem eleva-se até Deus”. Louvar é elevar-se, “tocar aquele que habita no louvor dos anjos”. Tal elevação arranca o homem do que está contra Deus, como o sabe bem “quem experimentou a forma transformadora duma grande liturgia, duma grande arte, duma grande música”, vindo o louvor que ressoa melodicamente a induzir-nos a uma profunda reverência. (cf Summa Theologiae II-IIae q 91 a 1 resp.).
Também o salmo 34 proclama que “o louvor do Senhor está sempre na minha boca” (vd Sl 34/33,2-4). E este louvor gera na alma a alegria no Senhor, que é bela si e de pleno sentido. E alegrar-se no louvor comunitário a Deus e reconhecer festivamente que Ele é digno de tal louvor justifica-se por si mesmo; e a expressão da alegria aparece como uma presença da glória, que é Deus: correspondendo a tal glória, a mesma alegria participa da glória. Na verdade, o louvor melodioso eleva a Deus e transforma os corações, como o experiencia Santo Agostinho, no processo de conversão, em Milão, onde a experiência da Igreja que canta se torna para ele (racionalista e académico) a emoção que invade a pessoa inteira. Assim, no livro das Confissões, Agostinho revela:
Quanto chorei entre os teus hinos e cânticos, profundamente comovido pelas vozes da tua Igreja que suavemente cantava! Aquelas vozes fluíam nas minhas orelhas e destilavam no meu coração a verdade; e acendia-se em mim o sentimento de piedade; escorriam as lágrimas e sentia-me bem” (Conf. IX 6,14). “Ainda não corria atrás de Vós, quando deste modo se exalava o aroma das vossas fragrâncias. Por isso mais chorava ouvindo os vossos hinos. Suspirava outrora por Vós e, enfim, respirava quanto o permite o ar de uma choça de colmo.” (Conf. IX 7).
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A Igreja católica dispôs, desde muito cedo e por documentos, de orientações sobre a Música Sacra, como atesta o n.º 112 da SC, que frisa que a “tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, unido ao texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia solene”. E o n.º 114 recomenda que o “tesouro da música sacra seja conservado e favorecido com suma diligência” e que se promovam “com empenho, sobretudo nas igrejas catedrais, as Scholae cantorum”.
Contudo, não quer dizer que tal conservação e favorecimento da música sacra tenham de ocorrer dentro da liturgia. Na orientação acima referida, dá-se a entender que sejam incentivados sobretudo nas catedrais, mas desejavelmente não só nas catedrais. E ressalva-se que não podem obstaculizar a participação ativa do povo. Reforça-se ainda a criação dos Institutos Superiores de Música Sacra (SC, 115) e recomenda-se o canto gregoriano, a polifonia, o uso de órgão de tubos e, segundo condições formuladas pela tradição, também outros instrumentos (SC, 120).
Fazendo uma abertura incondicional da Liturgia a todos, o Concílio deseja a participação ativa comum de todos no evento litúrgico e também no canto litúrgico, o que pode obstaculizar o aspeto artístico, pois nem todos possuem a arte e o jeito certo de cantar. Porém, se o excesso da preocupação pastoral ocasionava um empobrecimento do canto e do aprimoramento da música sacra, a opção era óbvia: música adequável à liturgia congraçando beleza e simplicidade; e culto da música sacra extralitúrgica para eventos culturais, mesmo com acento religioso.
Porém, Joseph Ratzinger (“Teologia da Liturgia – o fundamento sacramental da existência Humana” – Obras completas, Volume XI, edições da CNB) afirma que “o recuo na utilidade não tornou a liturgia mais aberta, mas só mais pobre”, visto que “a necessária simplicidade não é realizada por meio do empobrecimento”. Segundo Ratzinger, percebe-se “a miséria duma época ferida, cuja racionalidade criou o dilema entre especialização e banalidade” e cujo funcionalismo “tira, amplamente, o terreno também para uma expressão artística original e vital”.
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No âmbito do canto litúrgico na Missa, é de salientar que o capítulo VI da SC destaca a importância da música para a Liturgia,  a necessidade da promoção da música sacra e a sua adaptação às diferentes culturas. E, ao falar dos instrumentos sagrados, n.º 120 recomenda o apreço da Igreja latina pelo órgão de tubos, instrumento musical tradicional cujo som é capaz de dar ao culto “um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus”.
Depois, a renovação litúrgica prevista pela SC pretende a valorização do canto litúrgico apropriado, o que postula um especial cuidado na utilização em cada parte da missa dos cantos apropriados e que sejam litúrgicos de facto. Na verdade, a celebração litúrgica na sua forma mais nobre é acompanhada dos cantos.  
Como vimos, Paulo aconselha os fiéis, que se reúnem em Assembleia para aguardar a vinda do Senhor, a cantarem juntos salmos, hinos e cânticos espirituais (cf Cl 3,16), pois o canto constitui um sinal de alegria do coração (cf At 2,46). E a Igreja continua e desenvolve esta tradição. Por isso, dizia Santo Agostinho com razão: “cantar é próprio de quem ama”. E o velho provérbio aduz que “quem canta, reza duas vezes”.  Ora, a palavra “cantar” (ou suas derivadas) aparece 309 vezes no AT e 36 no NT. A primeira menção bíblica do cantar surge após a passagem pelo mar vermelho, que se evoca na solene programação da Vigília Pascal (vd Ex 15,1). Para Israel, o evento salvífico junto do mar permaneceu sempre como a grande motivação para o louvor em cântico novo. Para os cristãos, o verdadeiro êxodo é a Ressurreição de Cristo que passou “o mar vermelho da morte”, quebrando as portas do cárcere da morte. E o batismo celebrado na vigília pascal integra essas duas realidades, razões para o nosso cantar esfuziante.
Para cada ação litúrgica, cabe à equipa de liturgia da comunidade local a escolha de cantos apropriados a cada momento litúrgico, que ajudem o povo a rezar, que não dispersem nem destoem, mas, conforme afirma o Missal Romano, que tenham em vista “a índole dos povos e as possibilidades de cada assembleia”.
A SC dá as seguintes orientações sobre o canto litúrgico: 
Os atos litúrgicos revestem-se de forma mais nobre quando os ofícios divinos são celebrados solenemente com canto, com a presença dos ministros sacros e a participação ativa do povo (n.º 113). “O tesouro da música sacra seja conservado e favorecido com suma diligência (…). Procurem os bispos e demais pastores de almas que a assembleia dos fiéis possa prestar sua participação ativa nas funções sagradas que se celebram com canto, de acordo com as normas dos artigos 28 e 30. (n.º 114). 
O oriente ficou “fiel à música puramente vocal em sua dignidade sacral e o seu conteúdo toca o coração e torna a Eucaristia uma festa de fé. No Ocidente, desenvolveu-se o tradicional salmodiar, “alcançando no canto gregoriano uma nova altura e uma nova pureza que constitui um critério permanente para a música sacra, a música para a liturgia da Igreja”.
É pertinente reiterar que não cabe na escolha dos cantos o gosto ou os critérios pessoais de letra, música e ritmo, mas seguir as orientações dos liturgistas, que definem melhor essa questão. Há critérios litúrgicos e orientações seguras para cada momento litúrgico.
Constituindo o canto na celebração, de facto, um sinal de alegria do coração, a música sacra será tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à ação litúrgica, quer como expressão delicada da oração, quer como fator de comunhão, quer ainda como elemento de maior solenidade nas funções sagradas. E a Igreja aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas. E, intentando a renovação litúrgica prevista na SC a valorização do canto litúrgico apropriado para cada momento da missa, há que anotar que a SC aponta, no n.º 7, as diversas presenças de Cristo na Liturgia e, dentre elas, a que Ele que prometeu para “quando a Igreja ora e salmodia: “Onde dois ou três reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles(Mt 18,20). Assim, quando a Igreja canta e salmodia, Cristo garante a sua presença na assembleia, pelo que os cantos fazem parte da liturgia e devem contribuir para que Cristo Se manifeste por meio da assembleia cantante, que louva ao Senhor. Assim, a presença salvadora de Cristo, no mistério do culto cristão, de modo eminente, acontece não só com a Palavra, mas no conjunto das ações litúrgicas, pelo que o canto da assembleia litúrgica não é, para os crentes, um rito apenas exterior, nem pode consistir num puro exercício da arte musical, pois, constituindo um dos sinais de santificação do homem e do culto público da Igreja, deve integrar-se no corpo da fé dos fiéis, fazendo parte da ação litúrgica.
E a SC diz do canto sacro e litúrgico:
O canto sacro foi enaltecido pela Sagrada Escritura, quer pelos Padres (entenda-se os santos padres da Igreja Primitiva) e pelos romanos Pontífices, que recentemente, a começar por São Pio X, salientaram, com insistência, a função ministerial da música sacra no culto divino” (SC, 112).
Portanto, a equipa de canto exerce um ministério litúrgico importante que traduz e revela de maneira mais perfeita o momento litúrgico e celebrativo. Continua o n.º 112 da SC a dizer:
Por esse motivo a música sacra será tanto mais santa quanto mais intimamente estiver unida à ação litúrgica, quer como expressão mais suave da oração, quer favorecendo a unanimidade, quer, enfim, dando maior solenidade aos ritos sagrados. A Igreja, porém, aprova e admite no culto divino todas as formas de verdadeira arte, dotadas das qualidades devidas.”.
Além da suma diligência da Música Sacra, incentivada também nas casas de formação religiosa, o Concilio abriu largamente as portas às tradições musicais autóctones, como se viu pela leitura do n.º 119 da SC. Ora, tal valorização da música local tem sempre como objetivo a participação mais ativa dos fiéis. Por isso, o Concílio pediu aos compositores que fizessem músicas de acordo com o espírito cristão e litúrgico e que primassem pela participação ativa de toda a assembleia dos fiéis, não somente dos coros. Diz assim o n.º 121 da SC:
Os compositores, imbuídos do espírito cristão, compreendam que foram chamados para cultivar a música sacra e para lhe aumentar o património. Que as suas composições se apresentem com as caraterísticas da verdadeira música sacra e possam ser cantadas não só pelos grandes coros, mas se adaptem também aos pequenos e favoreçam uma ativa participação de toda a assembleia dos fiéis.”.
Por isso, se reitera que não cabe na escolha dos cantos o gosto ou os critérios pessoais de letra, música e ritmo, mas seguir as orientações litúrgicas, nos critérios litúrgicos e orientações seguras para cada momento litúrgico. Na verdade, como esclarece a SC, no n.º 121, “os textos destinados ao canto sacro devem estar de acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e nas fontes litúrgicas”.
Enfim, à liturgia o que é da liturgia; e à expressão piedosa devocional, ao folclore, às expressões culturais ou aos encontros formativos, o que é consentâneo com eles.   
2020.07.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Alice Vieira falou da pandemia, das famílias, dos idosos e da sociedade


No passado dia 24 de julho, em entrevista à Renascença e à Ecclesia a propósito do dia dos avós, que se celebrou a 26, Alice Vieira, jornalista e escritora de conto e romance, disse acreditar que a pandemia provocou uma aproximação maior entre as famílias e entre os vizinhos, mas tornou evidente a urgência de repensar as respostas de apoio aos idosos.
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Considera que é tão importante um dia dos avós como o dia da mãe ou o dia do pai, “embora os avós devam pensar nos netos e os netos nos avós nos outros dias todos”, e diz que “pelo menos no Dia dos Avós podemos falar um bocadinho mais do que é a relação – porque às vezes é um bocadinho complicada – entre avós e netos”.
Confessa que viveu a fase do confinamento “muito mal”, pois não podia “beijar os meninos”, não podia “abraçar” os netos. Todavia, não se sentiu impedida de falar, de conversar. E diz que até “nos habituámos a falar mais com as pessoas”, apesar de haver a distância e “um vidro entre nós, que é uma coisa fria”, mas sempre dá para ver como é que está a outra pessoa.
Além da recuperação do tempo de conversa, a pandemia tornou-se ocasião para aprendermos que “há imensas coisas que não nos fazem falta nenhuma” e que as pessoas tentaram contactar-se mais. Mencionou o caso de “um amigo que é contador de histórias, as pessoas pedem-lhe que vá contar uma história a um amigo, a um primo que vive não sei onde, ele telefona para lá, conta uma história, e a pessoa fica feliz e contente”. E refere que ia muito às escolas, o que lhe faz falta, mas que agora o faz por zoom. Por outro lado, interroga-se “se este vírus tivesse chegado numa altura sem novas tecnologias, como é que era” e pensa que seria “ainda muito pior”.
Confrontada com a asserção, numa entrevista de há uns anos, que muitas das avós estão no ativo, têm a sua vida, mas que muitas vezes a casa dos avós também é um depósito dos netos, diz que a pandemia fez com que as pessoas passassem a estar mais juntas, mas advertiu que, “se os avós não estiverem em casa com os netos, eles também não podem ir para casa deles”. Não obstante, acha que “as relações ficam melhores”. Sem dizer que o vírus traz coisas boas, assente que “há uma nova consciência”. E, se dantes nos preocupávamos “com coisas sem importância nenhuma”, agora “aquilo com que nos preocupamos são muito menos coisas, mas são muito mais importantes: saber se ele estudou, se ele fez isto, telefonar para ele, como é que foi”. Ora, se isto une, não permite que possamos “estar mesmo ao lado, mas havemos de poder”.
No atinente à solidão, pensa nas “pessoas que lidam mal com a solidão, porque estão sozinhas e as pessoas não se lembram delas”, sendo que algumas “sofrem muito por estarem sozinhas em casa”. Por outro lado, aquando do confinamento, acha que não terá sido fácil “estar tanto tempo em casa com o marido e com os filhos, ter de fazer as coisas e aturar o marido”. Agora, há uma espécie de descongestão: as pessoas já podem sair de casa. Mas Alice Vieira sente que as pessoas duma certa idade gostam de conversar. E ela vai nisso.
Instada a comentar a mensagem da Comissão Episcopal do Laicado e Família para o Dia dos Avós, segundo a qual ‘os avós são um tesouro’, que deve ser protegido e cuidado, porque “uma sociedade que não protege, não cuida e não admira os mais velhos, está condenada ao fracasso”, a entrevistada anui à necessidade de se prestar atenção aos mais velhos, “até porque nesta pandemia estão muito mais próximos de nós” – não ‘próximos’ fisicamente, mas é verdade que “falamos mais com eles”, o que “vai continuar, esse cuidado com os mais velhos, com os avós”. Com efeito, “há coisas que os avós ‘ensinam’, transmitem, que os pais não fazem”, o que “deve ser continuado”. E, concordando com o professor João dos Santos, que dizia ser importante “haver uma geração de premeio”, revela que diz à neta coisas que não conta aos filhos. É uma relação é diferente. E, considerando extraordinária a sua relação com os netos, diz que fala sempre mais dos netos, porque não conheceu os avós.
Concorda com a mensagem da Igreja católica para o Dia dos Avós, que fala da importância dos avós como “transmissores” de saberes e de valores fundamentais. Na verdade, como diz, “os avós transmitem coisas que os outros não podem transmitir”. E evoca o seu tempo de trabalho no El Chaco, cidade da “província mais miserável da Argentina”, para relatar:
Há lá um homem extraordinário que faz todos os anos um encontro (de avós). Durante todo o ano as avós têm um grande contacto com os netos, delas ou de outros, para lhes contarem a sua experiência (…). No final há sempre uma grande festa e há um prémio para a melhor avó e para o melhor avô. Os avós são muito valorizados, porque têm uma experiência de vida que os netos já não têm.”.
Entende que devíamos fazer coisa igual, para contarmos aos netos “como é que foi a nossa vida, o que é que foi este país antes, o que é agora, o que é que se fez”. E acha absurda a ideia de transformar a casa dos avós no ATL, porque lhe “custa muito ver que os miúdos, em tempos normais, vão para casa dos avós para fazer os trabalhos de casa, e depois vão-se embora”. Por isso, com os netos sempre fez “outras coisas que nem a escola nem os pais pudessem fazer” – passear, ver coisas, estudar – pois “é importante dar-lhes um outro conhecimento”.
Quanto à suposta rarefação do voluntariado idoso por força da pandemia (instituições houve que se viram sem os seus voluntários, que eram idosos) e à valorização da dimensão solidária e de ajuda dos idosos, refere que tal dimensão solidária e de ajuda “tem sido boa”, mas não muito valorizada. Por outro lado, regista uma grande preocupação com os idosos, sobretudo se isolados, da parte de muitas pessoas, incluindo juntas de freguesia: batem-lhes à porta “para dizer que estão ali” ou telefonam-lhes “para saber se está tudo bem, se é preciso alguma coisa, e isso é importante”, porque “às vezes não conseguem sair de casa, porque estão mal, não têm família”.
Admite que houve grande despersonalização da sociedade, perda de relações de vizinhança… E conta que via todos os dias a vizinha da frente e “via o que ela estava a fazer”, mas não sabia como se chamava. Mas, com a pandemia, já sabe e conversam.
Coisa parecida diz dum café aonde todos os vizinhos iam, mas sem entabularem conversa uns com os outros, quando agora “aquele café fica a ser o café dos vizinhos”.
Sobre o facto de a pandemia revelar muitas fragilidades na forma como cuidamos dos mais velhos, pois nos Lares houve situações dramáticas, não só em Portugal, como noutros países, Alice Vieira sublinha que a pandemia não nos permite pensar em tomar um avião e ir para outro país, porque a fragilidade é global.
E, sendo necessário repensar as estruturas que temos para os mais velhos, chama a atenção para a quantidade de gente que se infetou nos Lares, mas sabe que muitas pessoas não podem estar em suas casas e que, por outro lado, muitos Lares são muito caros e/ou sem condições. Assim, importa que a sociedade encontre respostas adequadas em vez de imputar culpas às famílias. Com efeito, “a família, muitas vezes, tem uma casa pequena, não pode haver lá mais ninguém” (omite os inúmeros caos de familiares que não podem tratar dos seus idosos por motivos de trabalho excessivo ou de longe da residência). Porém, os Lares deveriam ter “condições, onde as pessoas pudessem ir, em tempos normais, para ver os idosos, sair um bocadinho com eles, tornar a pô-los” e serem “uma casa onde eles estivessem”, não “um acumular de pessoas”. Assentindo que, “mesmo sem covid, é muito complicada a condição dos velhos”, espera agora que “se pense melhor que tem de haver uma solução, sem deitar às culpas às famílias”. E, em situação de desconfinamento, a entrevistada entende que se deve fazer com os idosos “o mesmo que tem de se fazer com os mais novos”. Deve ir-se saindo com eles, com muito cuidado, usar máscaras, não estar muito perto das pessoas, “até para andarem, para se movimentarem” e para “deixarem de ter medo”.
Comentando a frase do Papa Francisco, “sem idosos não há futuro”, que deu nome à petição lançada pela comunidade de Santo Egídio e da qual Alice Vieira é uma das signatárias, diz:
Quando recebi a petição, vinda de quem vinha, disse: ‘assino já’. Foi o cardeal Tolentino Mendonça. Eu disse: ‘Oh Zé, nem vou ler, assino logo’. Depois fui ler, claro. Esse texto, no fundo, dizia o que nós pensávamos e também dizíamos, sobre o cuidado com os velhos, aproveitá-los. Porque não são uma coisa que se põe de lado, há que aproveitar o que eles ainda podem fazer e sabem fazer.”.
No atinente ao seu percurso de aproximação à Igreja, vinca a importância do Cardeal Tolentino a ponto de estar sempre a dizer-lhe que não lhe perdoa ter-se ido embora. E conta que o marido (Mário Castrim) era católico, mas zangado com a hierarquia. E, quando ele morreu, há 17 anos, Alice foi-se um bocado abaixo. Nessa ocasião, o Padre Tolentino ouvia-a “a toda a hora e todo o momento”, donde a sua aproximação à Igreja. E a fé tornou-se uma dimensão importante na sua vida. Diz que faz o que pode: na pandemia via a Missa pelo computador (“não era a mesma coisa”) e agora custa-lhe ligar e reservar lugar, pois a Capela é muito pequena. Vai vendo e assistindo, pois custa-lhe ver pouca gente numa Capela do Rato que estava sempre à cunha.  
Por fim, anuncia um livro que está em laboração em parceria com a também escritora Manuela Niza. Estão a fazer um romance intitulado “Pó de arroz e Janelinha”, que é publicado nas suas páginas do Facebook, fazendo cada uma um capítulo sem assinar, para ninguém saber “quem é que escreveu o quê”. Reflete a metáfora da infância e a do confinamento-desconfinamento:
É a história de um prédio onde estão pessoas que não podem sair. Agora já podem sair um bocadinho. É quase a evolução da pandemia naquelas pessoas. Uma é jornalista, outra é dona de casa… Isso anima-nos muito, porque a gente ri-se imenso a fazer aquilo, e o meu patrão da Leya já disse que, quando estiver acabado, que publica.”.
***
Enfim, é uma entrevista que aponta de forma despretensiosa o papel dos idosos, nomeadamente os avós, o cuidado a ter com eles, além do que representa como experiência de vida, vivência cultural e modo de sentir a influência da fé cristã na vida pessoal e comunitária.
Lembro-me da homenagem que o 9.º encontro de professores, em que participei, promovido pela Areal Editores, lhe prestou no Europarque a 6 de maio de 2004, pela sua produção na área da literatura infanto-juvenil. Bem a mereceu a escritora de conto e romance, que passou pelo jornalismo nos “Diário de Lisboa”, “Diário Popular”, “Diário de Notícias” e “Jornal de Notícias”, bem como na revista “Ativa”. E ainda colabora na revista “Audácia”, dos Missionários Combonianos e no “Jornal de Mafra” online. Mulher de armas!
2020.07.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de julho de 2020

Interfaces entre Economia de Francisco e Agenda 2030


O Vatican News dá conta de um estudo de Mireni de Oliveira Costa Silva em que ressalta a proposta duma nova economia intitulada Economia de Francisco, indicada pelo Papa como uma possível saída para os problemas da fome, miséria e degradação do meio ambiente, e em que pressupostos teóricos o modelo está a ser construído. Ou seja, a especialista quer mostrar que é possível outra economia fazendo interface entre a Economia de Francisco e a Agenda 2030.
Para tanto, reflete sobre os principais eventos da política global, que produzem externalidades negativas na vida de grande número de pessoas no planeta, e analisa como o neoliberalismo e a globalização têm sido fatores determinantes das políticas económicas. Depois, aborda a Agenda 2030 e as suas propostas para amenizar os impactos do atual modelo económico focado na sustentabilidade. Por fim, aponta a associabilidade entre a Agenda 2030 e a Economia de Francisco como uma possibilidade de emancipação económica, com amparo da sustentabilidade e solidariedade, para os países periféricos e as populações em estado de pobreza crónica.
Constata que a política, em especial a económica, é historicamente marcada por interesses de grupos dominantes (pessoas ou países que se organizam em torno de objetivos comuns) ligados à expansão de capitais financeiros, para exercerem o poder sobre outras empresas, grupos e países. Por outro lado, a dinâmica da economia no final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI tem proporcionado, com o neoliberalismo e a globalização, uma acumulação de capitais nunca antes visto na história da humanidade. Assim, 82% de toda a riqueza gerada no mundo em 2017 foi parar nas mãos do 1% mais rico do planeta, quando “a metade mais pobre da população global – 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada”. E são muitos os fatores que contribuem para a concentração de riqueza, com destaque para as políticas neoliberais que impõem processos de “modernização” das economias de países periféricos obrigando-os a flexibilizar regras do comércio exterior, privatizar empresas estatais que são, em grande parte, adquiridas por consórcios de multinacionais, que usufruem de vantajosos incentivos fiscais para se instalarem nos países, exploração de mão de obra barata nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento e ausência de políticas ambientais rígidas, que acabam por contribuir para a devastação do meio ambiente em decorrência da exploração desenfreada das multinacionais.
Tais processos de acumulação de riquezas proporcionam um agravamento no índice de pobreza no mundo; e o contingente de pessoas a sobreviver abaixo da linha da pobreza ganhou alarmantes proporções, o que tem motivado debates e proposições nos países mais progressistas.
A propósito, a Agenda 2030, apresentada pela ONU em 2015 que formulou 17 objetivos para, em parceria com os 193 países, implementar e buscar amenizar os efeitos preocupantes da política económica global. Os objetivos, na sua maioria, fazem referência à sustentabilidade em todos os aspetos, não só no económico; e, a ONU procura implementar a Agenda por meio de parceria com os países. No mesmo sentido, Francisco convidou jovens do mundo inteiro para discutirem uma proposta de economia sustentável para o planeta, “que faz as pessoas viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não da caça. Essa economia é a Economia de Francisco e propõe o estabelecimento de novos paradigmas de um modelo sustentável, alicerçado na solidariedade que inclua todos os povos.
Nessa perspetiva, Mireni de Oliveira evidencia a importância e urgência em discutir a Economia de Francisco e a Agenda 2030 a partir da perspetiva histórica do desenvolvimento económico global, como ele foi construído e alicerçado e promoveu um processo catastrófico de expansão da pobreza em escala alarmante.
Assim, alicerçada na pesquisa bibliográfica e documental e adotando o método indutivo de abordagem, refletiu a conjuntura político-económica global e seus reflexos para as políticas locais, em perspetiva diacrónica desde os alvores da afirmação humana no planeta, evidenciando a teia simples ou complexa das relações económicas desde o tempo em que a terra era comum até à sua apropriação, nem sempre pacífica, e ao estabelecimento do capitalismo como sistema político económico a arrastar consigo os poderes, a par dum acompanhamento evolutivo por parte da Igreja católica, a princípio, contundente e, depois, algo complacente.    
A seguir, aborda a agenda do Neoliberalismo e da Globalização económica. Aquele surge na década de 70 como uma estratégia do capital financeiro; e a globalização da economia, processo não acabado, tomou uma grande dimensão na história recente da humanidade e levou a que o capital deixasse de ter fronteira e se orientasse para a expansão movido pela acumulação, criando fortes impactos negativos no mundo do trabalho, gerando um crescente de pobreza, deslocalizando empresas e premiando os altos quadros, mas baseando a produção e distribuição nos salários mais que magros, sob a alegação da inevitabilidade. 
Outro dos temas basilares do artigo em causa é a Agenda 2030, lançada pela ONU em 2015, e a sua proposta para as pessoas e o planeta. No seu preâmbulo, assegura que todos os países e partes interessadas assumiram o compromisso de a implementar, dar efetividade aos seus 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS), o que significa dizer que incumbe aos governos viabilizar junto dos demais poderes a criação de políticas públicas que possibilitem a execução dos ODS. Por outro lado, propõe um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade e reconhece que o esforço para erradicar a pobreza extrema deve ser encarado como o maior desafio global e pré-requisito para o desenvolvimento sustentável em todos os povos.
Depois, reflete sobre a Economia de Francisco enquanto apelo a uma economia sustentável. De facto, a Igreja católica, que no decurso da sua história sempre demonstrou preocupação com alguns temas atinentes à humanidade, como a fome, a miséria, a paz, dentre tantos outros, agora, no século XXI, está empenhada em discutir a economia global. E o ponto de partida para a sua discussão sistemática é a encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum, que propõe uma ecologia integral e uma ecoeconomia resultantes de um “pacto comum” – o que estava para ser tema de encontro de 26 a 28 de março de 2020 em Assis na Itália, mas que foi adiado para novembro por força da pandemia.
O Papa reunirá grandes nomes da economia global, como o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, Jeffrey Sachs, Amartya Sem, Vandana Shiva, Muhammad Yunus, Kate Raworth, o Presidente do Instituto Novo Pensamento Económico, Robert Johnson, e muitos outros, inclusive prémios Nobel, pois, segundo Stiglitz, é importante trabalhar com a educação em sistemas alternativos que não idolatrem o dinheiro, é necessário trabalhar com a ideia de economia circular – um ciclo de desenvolvimento contínuo positivo que preserva e aumenta o capital, otimiza o rendimento dos recursos e minimiza os riscos do sistema gerindo stocks finitos e fluxos renováveis – e com a sustentabilidade ambiental, sendo uma das chaves a colocação das pessoas em primeiro lugar e outra a colocação dos mercados ao serviço das pessoas e não como sucede agora a nível global.
Por fim, em jeito de considerações finais, a especialista conclui:
Não basta conciliar a preservação ambiental com aspetos financeiros, desenvolvimento, lucro, produção, avanço tecnológico e globalização desenfreada da economia, que tem financiado a verdadeira escalada rumo à destruição e miséria, mas urge pensar no progresso sob uma outra perspetiva, um novo paradigma de olhar mais humanizado e voltado para o mundo como uno, perene e, sobretudo, um lugar que pode e deve ser de todos, onde todos se sintam parte includente e não excludente.
Com efeito, o modelo de economia da modernidade e que está em marcha a pleno vapor não está preparado para retroceder do âmbito do capital, da engrenagem financeira orquestrada e arquitetada pelos grandes grupos de países ricos e pelos grandes empresários e industriais. E o que se discute é se esse modelo, que visa o lucro em detrimento do ser humano e do ambiente, dá espaço para (re)conciliar esses dois fatores, que não são dissonantes, aliás, coadunam-se e podem conviver muito bem.
Apesar de todo o esforço da ONU, desde a sua fundação, para preservação do meio ambiente e uso equilibrado dos recursos, o que tem prevalecido é a força do capital, não a de ambientalistas e de governos progressistas, tendo o uso indiscriminado dos recursos provocado resultados catastróficos no meio ambiente, clima, agricultura, no ecossistema de modo geral. A maioria das políticas adotadas promove e protege o sistema financeiro, o lucro, não a vida, não a garantia da sobrevivência de milhões de pessoas que vivem na extrema pobreza no mundo.
Neste contexto, a Agenda 2030 será, desde 2015, um desafio para o planeta e contará com a participação e envolvimento de todos os países para a sua implementação, como política macro, que depende do apoio irrestrito dos parlamentos para aprovarem leis a que subsidiem e lhe deem efetividade. No entanto, é pouco provável que haja, nestes cinco anos, já resultados positivos, pois muitas políticas públicas têm sido adotadas sem a observância dos ODS.
No atinente à Economia de Francisco, a proposta está a ser discutida nos textos-base e na carta papal, que apontam para uma economia que inclua e não exclua, que promova a igualdade, a paz, a prosperidade, a solidariedade e a sustentabilidade, que efetivamente seja uma proposta elaborada pelo povo e para ele, que aponte caminhos para uma economia sustentável em todos os aspetos e que promova o encurtamento da distância entre ricos e pobres no planeta. E ela leva a acreditar que é possível pensar num mundo mais justo, com menos desigualdade e mais oportunidade para todos, com mais equilíbrio e respeito pelo meio ambiente, que é o habitat natural de todos. Assim, uma economia que esteja ao serviço do bem comum implica que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável.
Esta economia não nega a presença do Estado, mas a intervenção deste buscará, através da solidariedade e parceria, mecanismos para implementar uma economia com princípios basilares de sustentabilidade, que promova o desenvolvimento económico conciliando-o com o social e ambiental, de modo que o ser humano esteja no centro de todos os debates e ações políticas.
E é possível mudar, desde que haja predisposição para a mudança e o desejo de que ela aconteça de forma estrutural e com a participação permanente da sociedade. E há que pensar que a globalização não pode ser só económica e gerar externalidades negativas, mas que deve atingir todos os aspetos da vida humana, não podendo haver fronteiras segregadoras das pessoas.
2020.07.28 – Louro de Carvalho

Novo Banco acumula prejuízos, vende ao desbarato e suga dinheiro público


A situação do Novo Banco (NB) é ultrajante para os contribuintes, que tudo pagam em silêncio, e para os gestores portugueses que tentem o melhor desempenho das funções de que estão incumbidos, quer pelo Estado, quer pelos empresários.
Tanto assim é que Rui Rio pretende que o Ministério Público (MP) se debruce sobre a forma como o contrato de venda do NB ao Lone Star, em 2017, tem vindo a ser executado, sobretudo em relação à venda dum lote de imóveis que levantou suspeita por ter sido feita a um fundo de investimento com ligações ao presidente do conselho geral de supervisão do NB, operação que, segundo Público (acesso pago) no início do mês, gerou perdas de milhões de euros que foram cobertas pelo Fundo de Resolução (FR), mediante um empréstimo do Estado. Com efeito, Byron Haynes, até ser nomeado chairman do NB, liderou o BAWAG P.S.K, do fundo Cereberus, a quem o NB vendeu 200 imóveis com uma perda de 328 milhões de euros, o que originou queixa à autoridade europeia ESMA por “gestão ruinosa” e “conflito de interesses”.
A este respeito, o líder socialdemocrata referiu, no âmbito do debate do estado da Nação:
Ainda que esta transação possa ser vir a ser considerada formalmente legal, ela é eticamente muito questionável e carece de pormenorizado esclarecimento. Aliás, também não se entende, por que razão o Novo Banco agrupa em lotes gigantescos os imóveis que pretende alienar, restringindo a procura e reforçando, assim, o peso negocial dos potenciais compradores.”.
Assim, concluiu que isto é suficiente para que o MP se debruce sobre o modo como o contrato de venda do NB tem vindo a ser executado. E, acusando o Governo de ter vindo a entregar “recorrentemente milhões de euros dos nossos impostos” ao NB “sem cuidar de analisar ao pormenor a justeza desses pagamentos e a razoabilidade das perdas invocadas”, ironizou:
O Novo Banco deve ter sido o único proprietário em Portugal que, nos anos imediatamente anteriores à pandemia, vendeu imóveis a perder dinheiro”.
Por sua vez, no dia 24, em entrevista ao Jornal Económico (acesso pago), o chairman do NB considerou ser inadmissível ter a sua independência questionada. Frisou que foi CEO do BAWAG P.S.K, mas que nunca mais teve qualquer contacto com o Cerberus desde que saiu. Mais disse que nem o NB, nem os reguladores, nem ele próprio foram informados de queixa à ESMA, vincando que, nomeado em outubro de 2017, é um chairman independente, que passou no fit & proper, que foi aprovado pelo BCE e pelo Banco de Portugal”.
Por isso, o Primeiro-Ministro enviou, no dia 24, uma carta à Procuradoria-Geral da República (PGR), pedindo a suspensão da venda de ativos do NB até à conclusão da auditoria, pedido já em análise pelo MP. E, este fim de semana, o Expresso (acesso pago) revelou o teor da carta de Costa à Procuradora-Geral da República, em que cita as declarações de Rio no debate do estado da Nação para pedir travão à venda de ativos problemáticos do NB, declarando que a acusação de Rio “não pode deixar de ser tida em conta com toda a seriedade, porque é seguramente fundamentada”, e que as operações de venda têm impacto nas responsabilidades do FR, não sendo “questão do limitado interesse dos acionistas, tendo o Estado plena legitimidade em agir”.
Já no debate do estado da Nação, revelara António Costa ter a Deloitte pedido a prorrogação do prazo para a entrega da auditoria especial ao NB, pedido negado pelo Ministro das Finanças, João Leão, pelo que a auditora tem até final desta semana para concluir os trabalhos.
Entretanto, o NB já enviou para a PGR todos os documentos que suportaram duas vendas de carteiras de imóveis que deram prejuízo de 390 milhões. Em causa estão os projetos “Viriato” e “Sertorius”, dois portefólios de imobiliário alienados em 2018 e 2019.
O Sertorius é a operação que está no centro das atenções: só esta carteira de cerca de 200 imóveis, com um valor bruto de 488 milhões, gerou a perda bruta de 329 milhões de euros na venda à Cerberus, fundo de investimento com ligações recentes ao presidente do conselho geral de supervisão do NB, Byron Haynes. E segue-se-lhe o Viriato, com um valor bruto de 717 milhões, que gerou a perda de 159 milhões com a venda ao fundo Anchorage, em 2018.
E é por causa das perdas com a venda de ativos tóxicos e do impacto nos rácios que o NB tem vindo a pedir compensações ao FR ao abrigo do mecanismo de capital contingente. Ao todo, já pediu cerca de 3.000 milhões de euros, sendo que poderá pedir mais 900 milhões ao fundo da banca para financiar resoluções bancárias, liderado por Máximo dos Santos.
É certo que as preditas duas vendas de imóveis feitas pelo NB que se encontram em análise pela PGR geraram um perda de 380 milhões de euros, mas estas não foram as únicas operações em que o banco liderado por António Ramalho perdeu dinheiro, obrigando o FR a injetar dinheiro na instituição. Efetivamente, desde 2018, face à necessidade de reduzir a exposição a ativos não produtivos, o NB já alienou 5 grandes carteiras de crédito malparado (empréstimos vencidos há muito tempo) e de imobiliário, cujas perdas totalizam em 611 milhões de euros.
Por exemplo, o Projeto Nata I, que compreendia uma carteira de malparado no valor bruto de cerca de 1.500 milhões, foi vendido em 2018 ao fundo KKR, com o NB a registar um impacto negativo nos resultados no valor de 110 milhões. Ao Nata I seguiu um Nata II, com créditos de clientes mais conhecidos no valor de 1.300 milhões de euros, carteira foi vendida à Davidson Kempner no ano passado e que originou uma perda de 80 milhões para o NB. E ao Nata II vai seguir-se um Nata III, que Ramalho disse que estava em preparação, mas que ainda não chegou ao mercado. E, em Espanha, foi vendida, também em 2019, uma carteira com ativos de créditos tóxicos e imóveis com um valor bruto de 308 milhões. Quem comprou este conjunto de ativos foi a Waterfall, operação que levou o banco a registar um prejuízo de quase 34 milhões.
Enfim, devido às perdas com a venda de ativos tóxicos e do impacto nos rácios, o Novo Banco já arrecadou dos contribuintes, através do Estado que criou o Fundo de Resolução, cerca de 3.000 milhões de euros, podendo vir a pedir mais 900 milhões ao abrigo do contratualizado. E o povo paga quase sem um lamento, mas não há dinheiro para o que é preciso, nem sequer para levantar um muro de suporte caído nas imediações dum Hospital público, restabelecendo assim as funções do heliporto para levantamento ou recolha de doentes urgentes a transferir.
Para quando um contrato do Estado com outra entidade em que o Estado não saia a perder? Onde está a competência dos consultores do Estado? Maldito o dinheiro com que lhes pagam!
E é esta a nossa bem-vinda República Portuguesa!
2020.07.27 – Louro de Carvalho