O Vatican News vem publicando uma série de
artigos de Jackson Erpen,
no espaço de Memória Histórica – 50 anos
do Concílio Vaticano II, sobre a Música Sacra, com relevo para os seus
fundamentos teológicos e as suas expressões na liturgia, evidenciando o
trabalho de reflexão do Padre Gerson
Schmidt sobre o tema.
Considerando
que “a Liturgia é sempre um tema apaixonante e se enriquece ainda mais de
beleza quando falamos de Música Sacra”, assegura que “o homem redimido tem
motivos se sobra para cantar e louvar: pelo Pai que criou o Universo cheio de
esplendor, por Cristo como glória de Deus que nos é acessível e nos salva, pelo
Espírito Santo que geme em nós com gemidos inefáveis e nos faz dar graças a
todo o instante”. É pois um “louvor trinitário”.
Depois,
ressalta que o tema é abordado no Capítulo VI da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium (SC) – falando da “Importância para a Liturgia”, da “Adaptação às diferentes culturas”, dos
“Instrumentos músicos sagrados” e das “Normas para os compositores” –,
cujo n,º 116 aponta o canto gregoriano como próprio da liturgia romana, pelo
que terá, na ação litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar. Porém,
não exclui “todos os outros géneros de música sacra, mormente a polifonia, na
celebração dos Ofícios divinos, desde que estejam em harmonia com o espírito da
ação litúrgica”. Por seu turno, o n.º 119 sublinha que, “em certas regiões,
sobretudo nas Missões, há povos com tradição musical própria”, com excecional
impacto na sua vida religiosa e social, convindo dar-se-lhe o lugar que lhe
compete, quer na educação do sentido religioso desses povos, quer na adaptação
do culto à sua índole. Assim, a formação dos líderes, nomeadamente dos missionários,
deve ser cuidada de modo que a música dos povos em causa seja promovida nas
escolas e nas ações sagradas.
O canto
cultual desenvolveu-se na passagem da sinagoga para a Igreja. Muito cedo se juntaram
aos salmos os “cânticos”, a que se alude nos seguintes textos bíblicos:
“Quanto estais reunidos, cada um pode cantar um hino, proferir um
ensinamento ou uma revelação, falar em línguas ou interpretá-las, mas que tudo
se faça de modo a edificar” (1Cor 14,26). “A Palavra de Cristo habite em vós ricamente: com toda a sabedoria
ensinai e admoestai-vos uns aos outros e, em ação de graças a Deus, entoem
vossos corações salmos, hinos e cânticos espirituais” (Cl 3,16). “Entre vós, cantai salmos, hinos e cânticos
espirituais; cantai e louvai o Senhor no vosso coração; sem cessar, dai graças por
tudo a Deus Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5,19).
E há uma
série de hinos cristológicos do cristianismo primitivo inseridos nos textos
neotestamentários: Fl 2,6-11; Ef 2,14-16; 2Tm 2,11-13. Além disso, é de
enfatizar que “o facto de os cânticos de Israel continuarem a ser recitados e
cantados como cânticos da Igreja significa que foi conservada toda a riqueza de
sentimento da oração de Israel.
Por outro
lado, é de esclarecer, com São Tomás de Aquino, que o louvor não é necessário
para Deus, mas para quem louva, pois, “mediante o louvor de Deus, o homem eleva-se
até Deus”. Louvar é elevar-se, “tocar aquele que habita no louvor dos anjos”.
Tal elevação arranca o homem do que está contra Deus, como o sabe bem “quem
experimentou a forma transformadora duma grande liturgia, duma grande arte, duma
grande música”, vindo o louvor que ressoa melodicamente a induzir-nos a uma
profunda reverência. (cf Summa Theologiae
II-IIae q 91 a 1 resp.).
Também o
salmo 34 proclama que “o louvor do Senhor está sempre na minha boca” (vd Sl
34/33,2-4). E este louvor gera na alma a
alegria no Senhor, que é bela si e de pleno sentido. E alegrar-se no louvor
comunitário a Deus e reconhecer festivamente que Ele é digno de tal louvor justifica-se
por si mesmo; e a expressão da alegria aparece como uma presença da glória, que
é Deus: correspondendo a tal glória, a mesma alegria participa
da glória. Na verdade, o louvor melodioso eleva a Deus e transforma os
corações, como o experiencia Santo Agostinho, no processo de conversão, em
Milão, onde a experiência da Igreja que canta se torna para ele (racionalista
e académico) a emoção
que invade a pessoa inteira. Assim, no livro das Confissões, Agostinho revela:
“Quanto chorei entre os teus hinos e cânticos, profundamente comovido pelas
vozes da tua Igreja que suavemente cantava! Aquelas vozes fluíam nas minhas
orelhas e destilavam no meu coração a verdade; e acendia-se em mim o sentimento
de piedade; escorriam as lágrimas e sentia-me bem” (Conf. IX 6,14). “Ainda não
corria atrás de Vós, quando deste modo se exalava o aroma das vossas
fragrâncias. Por isso mais chorava ouvindo os vossos hinos. Suspirava outrora
por Vós e, enfim, respirava quanto o permite o ar de uma choça de colmo.” (Conf. IX 7).
***
A Igreja
católica dispôs, desde muito cedo e por documentos, de orientações sobre a Música
Sacra, como atesta o n.º 112 da SC, que frisa que a “tradição musical da Igreja
é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de
arte, sobretudo porque o canto sagrado, unido ao texto, constitui parte
necessária ou integrante da Liturgia solene”. E o n.º 114 recomenda que o “tesouro da música sacra seja conservado e
favorecido com suma diligência” e que se promovam “com empenho, sobretudo nas
igrejas catedrais, as Scholae cantorum”.
Contudo, não quer dizer que tal conservação
e favorecimento da música sacra tenham de ocorrer dentro da liturgia. Na
orientação acima referida, dá-se a entender que sejam incentivados sobretudo
nas catedrais, mas desejavelmente não só nas catedrais. E ressalva-se que não
podem obstaculizar a participação ativa do povo. Reforça-se ainda a criação dos
Institutos Superiores de Música Sacra (SC, 115) e recomenda-se o canto gregoriano, a polifonia, o uso
de órgão de tubos e, segundo condições formuladas pela tradição, também outros
instrumentos (SC, 120).
Fazendo uma
abertura incondicional da Liturgia a todos, o Concílio deseja a participação
ativa comum de todos no evento litúrgico e também no canto litúrgico, o que
pode obstaculizar o aspeto artístico, pois nem todos possuem a arte e o jeito
certo de cantar. Porém, se o excesso da preocupação pastoral ocasionava um
empobrecimento do canto e do aprimoramento da música sacra, a opção era óbvia:
música adequável à liturgia congraçando beleza e simplicidade; e culto da música sacra extralitúrgica para
eventos culturais, mesmo com acento religioso.
Porém,
Joseph Ratzinger (“Teologia da Liturgia – o fundamento sacramental da existência
Humana” – Obras completas, Volume XI,
edições da CNB) afirma que “o recuo na utilidade
não tornou a liturgia mais aberta, mas só mais pobre”, visto que “a necessária
simplicidade não é realizada por meio do empobrecimento”. Segundo Ratzinger,
percebe-se “a miséria duma época ferida, cuja racionalidade criou o dilema
entre especialização e banalidade” e cujo funcionalismo “tira, amplamente, o
terreno também para uma expressão artística original e vital”.
***
No âmbito do canto litúrgico na Missa, é de
salientar que o capítulo VI da SC destaca a
importância da música para a Liturgia, a necessidade da promoção da
música sacra e a sua adaptação às diferentes culturas. E, ao falar dos instrumentos
sagrados, n.º 120 recomenda o
apreço da Igreja latina pelo órgão de tubos, instrumento musical tradicional
cujo som é capaz de dar ao culto “um esplendor extraordinário e elevar
poderosamente o espírito para Deus”.
Depois, a
renovação litúrgica prevista pela SC
pretende a valorização do canto litúrgico apropriado, o que postula um especial
cuidado na utilização em cada parte da missa dos cantos apropriados e que sejam
litúrgicos de facto. Na verdade, a celebração litúrgica na sua forma mais nobre
é acompanhada dos cantos.
Como vimos,
Paulo aconselha os fiéis, que se reúnem em Assembleia para aguardar a vinda do
Senhor, a cantarem juntos salmos, hinos e cânticos espirituais (cf Cl 3,16), pois o canto constitui um sinal de alegria do
coração (cf At 2,46). E a Igreja continua e desenvolve esta tradição. Por
isso, dizia Santo Agostinho com razão: “cantar
é próprio de quem ama”. E o velho provérbio aduz que “quem canta, reza duas
vezes”. Ora, a palavra “cantar” (ou suas derivadas) aparece 309 vezes no AT e 36 no NT. A primeira menção
bíblica do cantar surge após a passagem pelo mar vermelho, que se evoca na
solene programação da Vigília Pascal (vd Ex 15,1). Para Israel, o evento salvífico junto do mar
permaneceu sempre como a grande motivação para o louvor em cântico novo. Para os
cristãos, o verdadeiro êxodo é a Ressurreição de Cristo que passou “o mar
vermelho da morte”, quebrando as portas do cárcere da morte. E o batismo
celebrado na vigília pascal integra essas duas realidades, razões para o nosso
cantar esfuziante.
Para cada ação
litúrgica, cabe à equipa de liturgia da comunidade local a escolha de cantos
apropriados a cada momento litúrgico, que ajudem o povo a rezar, que não
dispersem nem destoem, mas, conforme afirma o Missal Romano, que tenham em
vista “a índole dos povos e as possibilidades de cada assembleia”.
A SC dá as
seguintes orientações sobre o canto litúrgico:
“Os atos litúrgicos revestem-se de forma
mais nobre quando os ofícios divinos são celebrados solenemente com canto, com
a presença dos ministros sacros e a participação ativa do povo” (n.º 113). “O tesouro da música sacra seja conservado e favorecido com suma
diligência (…). Procurem os bispos e demais pastores de almas que a assembleia
dos fiéis possa prestar sua participação ativa nas funções sagradas que se
celebram com canto, de acordo com as normas dos artigos 28 e 30.” (n.º 114).
O oriente
ficou “fiel à música puramente vocal em sua dignidade sacral e o seu conteúdo toca
o coração e torna a Eucaristia uma festa de fé. No Ocidente, desenvolveu-se o
tradicional salmodiar, “alcançando no canto gregoriano uma nova altura e uma
nova pureza que constitui um critério permanente para a música sacra,
a música para a liturgia da Igreja”.
É pertinente
reiterar que não cabe na escolha dos cantos o gosto ou os critérios pessoais de
letra, música e ritmo, mas seguir as orientações dos liturgistas, que definem
melhor essa questão. Há critérios litúrgicos e orientações seguras para cada
momento litúrgico.
Constituindo
o canto na celebração, de facto, um sinal de alegria do coração, a música sacra
será tanto mais santa quanto mais intimamente unida estiver à ação litúrgica,
quer como expressão delicada da oração, quer como fator de comunhão, quer ainda
como elemento de maior solenidade nas funções sagradas. E a Igreja aprova e
aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas
das qualidades requeridas. E, intentando a renovação litúrgica prevista na SC a
valorização do canto litúrgico apropriado para cada momento da missa, há que
anotar que a SC aponta, no n.º 7, as diversas presenças de Cristo na Liturgia e,
dentre elas, a que Ele que prometeu para “quando a Igreja ora e salmodia: “Onde dois ou três reunidos em meu nome, aí
estou Eu no meio deles” (Mt 18,20). Assim,
quando a Igreja canta e salmodia, Cristo garante a sua presença na assembleia,
pelo que os cantos fazem parte da liturgia e devem contribuir para que Cristo Se
manifeste por meio da assembleia cantante, que louva ao Senhor. Assim, a
presença salvadora de Cristo, no mistério do culto cristão, de modo eminente,
acontece não só com a Palavra, mas no conjunto das ações litúrgicas, pelo que o
canto da assembleia litúrgica não é, para os crentes, um rito apenas exterior,
nem pode consistir num puro exercício da arte musical, pois, constituindo um
dos sinais de santificação do homem e do culto público da Igreja, deve integrar-se
no corpo da fé dos fiéis, fazendo parte da ação litúrgica.
E a SC diz
do canto sacro e litúrgico:
“O canto sacro foi enaltecido pela Sagrada Escritura, quer pelos Padres (entenda-se
os santos padres da Igreja Primitiva) e
pelos romanos Pontífices, que recentemente, a começar por São Pio X,
salientaram, com insistência, a função ministerial da música sacra no culto
divino” (SC, 112).
Portanto, a
equipa de canto exerce um ministério litúrgico importante que traduz e revela
de maneira mais perfeita o momento litúrgico e celebrativo. Continua o n.º 112
da SC a dizer:
“Por esse motivo a música sacra será tanto mais santa quanto mais
intimamente estiver unida à ação litúrgica, quer como expressão mais suave da
oração, quer favorecendo a unanimidade, quer, enfim, dando maior solenidade aos
ritos sagrados. A Igreja, porém, aprova e admite no culto divino todas as
formas de verdadeira arte, dotadas das qualidades devidas.”.
Além da suma
diligência da Música Sacra, incentivada também nas casas de formação religiosa,
o Concilio abriu largamente as portas às tradições musicais autóctones, como se
viu pela leitura do n.º 119 da SC. Ora, tal valorização da música local tem
sempre como objetivo a participação mais ativa dos fiéis. Por isso, o Concílio
pediu aos compositores que fizessem músicas de acordo com o espírito cristão e
litúrgico e que primassem pela participação ativa de toda a assembleia dos
fiéis, não somente dos coros. Diz assim o n.º 121 da SC:
“Os compositores, imbuídos do espírito cristão, compreendam que foram
chamados para cultivar a música sacra e para lhe aumentar o património. Que as
suas composições se apresentem com as caraterísticas da verdadeira música sacra
e possam ser cantadas não só pelos grandes coros, mas se adaptem também aos
pequenos e favoreçam uma ativa participação de toda a assembleia dos fiéis.”.
Por isso, se
reitera que não cabe na escolha dos cantos o gosto ou os critérios pessoais de
letra, música e ritmo, mas seguir as orientações litúrgicas, nos critérios
litúrgicos e orientações seguras para cada momento litúrgico. Na verdade, como
esclarece a SC, no n.º 121, “os textos destinados ao canto sacro devem estar de
acordo com a doutrina católica e inspirar-se sobretudo na Sagrada Escritura e
nas fontes litúrgicas”.
Enfim, à
liturgia o que é da liturgia; e à expressão piedosa devocional, ao folclore, às
expressões culturais ou aos encontros formativos, o que é consentâneo com eles.
2020.07.30 – Louro de Carvalho
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