domingo, 19 de julho de 2020

Deixai-os crescer a ambos até à ceifa


Depois da parábola do semeador que saiu a semear a semente, o Evangelho de Mateus apresenta, no quadro do discurso as parábolas (que Dom António Couto considera o centro geográfico e teológico deste Evangelho), mais três parábolas (Mt 13,24-43) – a do trigo e do joio ou cizânia (13,24-30), a do grão de mostarda (13,31-32) e a do fermento (13,33) –, com a explicação da parábola do trigo e do joio (no grego ‘zizánion’) por Jesus, a pedido dos discípulos (13,36-43).
Destas três parábolas, a do grão de mostarda e a do fermento procedem da tradição sinótica; a outra, a do trigo e do joio, só aparece em Mateus, além de aparecer também numa antiga coleção de “ditos” de Jesus, conhecida como “Evangelho de Tomé”.
Segundo o Bispo de Lamego, o termo cizânia, que é equivalente joio, em grego ‘zizánion’, como foi dito, deriva do hebraico zunîm, que provém com certeza do verbo zanah [= prostituir-se]. Trata-se, pois, de “erva ruim e danosa no meio do trigo”. E o Padre passionista José Gregório chama a atenção para o facto de os servos do senhor da parábola só olharem para o joio e não para o trigo, mercê da tendência do homem para ver mais o mal que o bem. Além disso, salienta o facto de a erva ruim ser hirta e altiva ao invés do trigo, que se curva com o peso do crescimento e agradecido pelo dom da maturação, sinal da humildade que fica bem ao homem de Deus. Com efeito, se a janela dos nossos olhos for limpa, veremos o mundo belo e bom; se ela for baça, só veremos a sujidade no outro e no seu mundo.  
Também desta vez se percebe – quer nas parábolas, quer na explicação – a preocupação pastoral e catequética de Mateus, que não é um transcritor do dito de Jesus disse, mas o pastor que exorta, anima, ensina e fortalece na fé a comunidade cristã a quem dirige o Evangelho.
A parábola do trigo e do joio ressalta dum quadro da vida quotidiana: um senhor que semeia boa semente no seu campo, um inimigo que semeia o joio num campo alheio, o do rival, e os servos dedicados e preocupados com a colheita. Tudo normal, exceto a reação do senhor: ordena que deixem crescer a par trigo e joio e que só na altura da ceifa se faça a seleção do bom e do mau, destrinça que não é feita por estes servos, mas por outros, os ceifeiros, que hão de separar o que é para queimar e o que é para guardar.
A impaciência em esperar por mais tempo o Reino de Deus, que ansiamos que venha já e tudo clarifique e resolva quanto antes, leva-nos, na pessoa dos servos, a propor ao dono do campo o arranque da erva daninha. Porém, a resposta inesperada é: “Deixai-os crescer a ambos juntos até à colheita”. E mais desconcerto haverá quando a explicação remeter a colheita para o fim do mundo e que só então será queimado o joio, ou seja, os que praticam a iniquidade (Mt 13,40.42).
A parábola deve ser, pois entendida em conexão com o ministério de Jesus. Ele conviveu com os pecadores, os marginais, os que levavam vidas moralmente condenáveis; e sentou-se à mesa com gente desclassificada, deixou-se tocar por pecadoras públicas, convidou um publicano a integrar o grupo de discípulos. Com essa postura escandalosa, quis dizer a todos aqueles que a religião oficial excluía, que Deus os amava e os convidava a fazer parte da sua família, a entrar na comunidade da salvação, a integrar de pleno direito a comunidade do Reino.
Porem, os fariseus consideravam inaceitável essa atitude de Jesus. Para eles, quem não cumpria a Lei tinha de ser excluído do Povo de Deus por não ter o direito de fazer parte do seu campo.
Nesta parábola, Jesus pretende dar-nos uma lição sobre a lógica de Deus, que não é uma lógica de destruição, segregação, exclusão, mas a lógica do amor, da misericórdia, da tolerância, da paciência. O Deus de Jesus Cristo é paciente e misericordioso, dá sempre ao homem todas as oportunidades para refazer a existência e integrar plenamente a comunidade do Reino. Oferece gratuitamente o seu plano de salvação e graça a todos os homens, bons e maus; e, depois, em tempo oportuno, verá quem são os maus e quem são os bons. De resto, não é muito fácil separar o bom e o mau, porque as duas realidades coexistem em todos os campos, em todos os corações. Por isso, temos de nos deixar dos anátemas contra os que pensam e vivem de modo diferente.
De facto, os servos da parábola, tal como João Batista, eram partidários do julgamento imediato e em força, levado a efeito por um Messias justiceiro. E nós temos a tendência apurada para julgar, quando esse não é o nosso mister.
Com efeito, João conta-se entre os servos que queriam queimar já a palha e o joio. São bastante significativas as passagens da sua pregação que o atestam, como se vê pelos exemplos: “Já o machado está posto à raiz das árvores, e toda a árvore que não produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo(Mt 3,10). “A pá de joeirar está na sua mão: e ele purificará completamente a sua eira e recolherá o seu trigo no celeiro; a palha, porém, queimá-la-á com fogo inextinguível” (Mt 3,12). Ao invés, a linguagem do dono do campo e, claro, de Jesus é:
Deixai ‘crescer juntamente (synauxánomai) a ambos até à colheita; e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ‘Apanhai primeiro o joio, e atai-o em feixes, para ser queimado; quanto ao trigo, recolhei-o no meu celeiro’.” (Mt 13,30).
O senhor da parábola é o Deus paciente, que dá ao homem todas as oportunidades, que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva. Os servos com excesso de zelo são os crentes que trabalham no campo do senhor, rígidos e intolerantes, incapazes de olhar o mundo e o coração dos homens com a serenidade e a paciência de Deus. O campo é o mundo e a história, onde coexistem o trigo, ou seja, os sinais de Deus (humanismo, esperança, vida, amor) e o joio, isto é, os sinais do inimigo (descarte, sofrimento, opressão, escravidão, morte), que podem aninhar-se no coração de cada um dos homens e cada uma das mulheres.
Os métodos de Deus não passam pelo castigo imediato, pela intolerância às opções dos filhos homens, pela incompreensão dos erros dos homens, mas por deixar os homens crescer em liberdade, integrando a comunidade dos filhos de Deus.
Na explicação mateana, o eixo central da parábola acaba por se deslocar para a questão do juízo que espera bons e maus. Mateus insiste em que, no dia da colheita (que, nos profetas, se identifica com o dia do juízo de Deus sobre os homens e o mundo), os bons receberão a recompensa e os maus o castigo.
Nos finais do século I (década de 80), passado o primeiro entusiasmo, a vida das comunidades é marcada pela monotonia, falta de entusiasmo e de empenho. Assim, Mateus, usando os métodos dos pregadores da época, recorre à linguagem e aos símbolos da literatura apocalíptica. E os símbolos utilizados – joio queimado no fogo, a fornalha ardente (Dt 3,6), o choro e o ranger de dentes – impressionam os crentes e obrigam-nos a infletir os seus esquemas de vida e a voltar à fidelidade ao Evangelho. Por isso, não temos aqui a descrição do fim do mundo, mas o convite urgente à conversão, ao aprofundamento do compromisso com Jesus e com o Evangelho.
***
Na verdade, a parábola do grão de mostarda (vv. 31-32) e a parábola do fermento (v. 33) são muito semelhantes, quer quanto ao conteúdo, quer quanto à forma. Numa e noutra, o quadro é o mesmo: sublinha-se a desproporção entre o início e o resultado final. O grão de mostarda é uma semente pequeníssima, mas que pode dar origem a um arbusto de razoáveis dimensões; e o fermento apresenta um aspeto insignificante, tem a capacidade de fermentar uma grande quantidade de massa. São duas comparações que servem para apresentar o dinamismo do Reino. O Reino anunciado por Jesus, que se assemelha ao grão de mostarda e ao fermento, parece insignificante, com inícios muitíssimo modestos e humildes, mas contém potencialidades para encher, transformar e renovar o mundo. É um dinamismo de vida que se inicia como uma pequena semente lançada à terra numa obscura e insignificante província do império romano, mas a lançar raízes, a invadir história e a potenciar o aparecimento de um mundo novo.
O milagre natural do grão de mostarda é admirável. Este grão é tão pequenino que nem grão chega a ser, apenas uma espécie de pó acastanhado, mas, uma vez lançado à terra, dá corpo a uma árvore grande, carregada de aves do céu que ali fazem a sua casa e a enchem alegres melodias (cf Sl 104,12). Assim é o Reino dos Céus! E o fermento, igualmente pequeno, mas que leveda três medidas de farinha (cerca de 60 Kg), que dão para umas 150 pessoas. É o sinal do banquete do Reino. E a expressão “até que tudo fique levedado” (Mt 13,33) transporta a santa Eucaristia para o quotidiano da vida duma mulher e mãe de família, lembrando o “até que Ele venha” da celebração da Ceia do Senhor (1Cor 11,26).
Com estas parábolas, Jesus responde às objeções dos que não acreditavam que da mensagem do filho do carpinteiro de Nazaré (cf Mt 13,55), e também ele carpinteiro (cf Mc 6,3), pudesse surgir algo relevante, ou seja, uma proposta de vida capaz de fermentar o mundo e a história. Mas garante que o Reino é uma realidade irreversível, que veio para ficar e para transformar o mundo. Escutar as parábolas é receber uma injeção de ânimo e de esperança, conducente a um compromisso mais sério e exigente com o Reino e a missão. E, assim, “os justos brilharão como o sol no reino do seu Pai(Mt 13,43).
2020.07.19 – Louro de Carvalho

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