quinta-feira, 9 de julho de 2020

Da descontinuidade das reuniões técnico-políticas no Infarmed



À saída da recente reunião no Infarmed em que, depois de ter sido detetado em Portugal, há 128 dias, o primeiro caso de covid-19, políticos, parceiros sociais e cientistas se encontravam para a definição de políticas públicas de combate à epidemia sustentadas cientificamente, o Presidente da República anunciou que não haverá mais encontros destes.
Foram 10 as reuniões em que, segundo o Primeiro-Ministro, os cientistas mostravam andar atrás do vírus e os decisores políticos tentavam ouvir os cientistas. Não obstante, Marcelo revelou que este ciclo terminou e que poderá ser retomado, mas noutros moldes.
Com exceção do PSD, os partidos da oposição lamentam o fim dos encontros e André Ventura, do Chega, diz-se surpreendido pela notícia dada cá fora, embora no interior do auditório do Infarmed não tenha sido marcada nova data para outra reunião.  
Como tem sido hábito, coube ao Chefe de Estado tecer considerações sobre o conteúdo da reunião. Assim, apresentou aos jornalistas dados que mostram que a situação em Lisboa e Vale do Tejo evolui favoravelmente, sendo agora de 0,98 o R (taxa de transmissão do vírus) nacional e de 0,97 na região de Lisboa. Há estabilização e mesmo tendência, embora ligeira, de aparente descida, como informou o Presidente, apesar de ser ainda “cedo para fazer a avaliação definitiva”. Houve “aprofundamento da comparação socioeconómica entre as várias regiões”, que mostra que o panorama nos distritos do Porto e de Lisboa é distinto, e um reforço de 40% das equipas que andam na rua a fazer o levantamento dos contágios. Marcelo citou um dos estudos apresentados, que parece demonstrar a não existência de ligação entre transporte ferroviário e o surto pandémico, o que reforça as recentes declarações da Ministra da Saúde, sendo o risco escassíssimo. E aludiu a um trabalho que aponta a coabitação como “o fator mais importante em termos de explicação causal dos surtos, logo seguida da convivência social”.
Marcelo agradeceu a iniciativa destas importantes reuniões, que facilitaram a convergência e constituem experiência única não verificada em nenhum outro país no mundo.
Dados citados pelo Chefe de Estado indicam que o tempo mediano de internamento está hoje entre os 10/11 dias no caso do internamento geral e 17/19 nos cuidados intensivos. Para um cenário considerado pessimista, de 338 casos novos, haveria 39 internados novos, 607 no internamento geral e 91 nos cuidados intensivos, bem dentro da capacidade global do SNS.
As últimas reuniões já estiveram mais focadas na análise da situação de Lisboa (onde os contágios estavam a evoluir de forma preocupante, mas não descontrolada), e a penúltima foi uma das mais acesas. Com efeito, a 24 de junho, registou-se um momento de tensão, com o Primeiro-Ministro a corrigir a Ministra da Saúde, quando ela referiu o período de confinamento e os especialistas negavam que a realização de mais testes explicasse o aumento de casos em Lisboa. 
Ainda antes de os participantes saírem do Infarmed, Catarina Martins dava conta de mudanças na reunião com “mais indicadores para análise”. Há, de facto, diferenças na incidência no país e ao longo do tempo. E, considerando concelhos onde se habita, transportes e setor da economia, permanece uma certeza: a pobreza e exclusão são fator de risco, não havendo crises simétricas​.  
José Luís Carneiro, secretário-geral adjunto do PS, frisou que os portugueses estão a confiar na forma como está a ser feito o desconfinamento e que os indicadores de confiança na resposta do SNS estão a melhorar. Nestes termos, em relação a Lisboa, a resposta é a adequada e, apesar das dificuldades, as medidas seletivas estão a produzir efeitos, pelo que este dirigente partidário deixou um agradecimento às autoridades de saúde e à forma como deram suporte às decisões políticas. E revelou o valor da taxa de transmissão (R) nas várias regiões do país, especificando: 
O indicador de contágio na região Norte está hoje em 1,09; na região Centro em 1,08; em Lisboa e Vale do Tejo em 0,97; no Alentejo em 0,86; no Algarve em 0,77”. 
Pelo PSD, Ricardo Baptista Leite concluiu que, “se falharmos na resposta de Lisboa, estaremos a falhar ao país”. E, vincando que o PSD escolheu salientar os negativos, referiu:  
Temos agora 48 surtos, quando há duas semanas eram 12; a percentagem de pessoas com infeção que não sabemos como se infetaram é de 18% na região de Lisboa e de 26 e 27% nas regiões Centro e Norte; e houve um aumento do número de internamentos e de mortalidade na região de Lisboa e Vale do Tejo”.
Como notícia mais positiva, sublinhou “uma aparente estabilização” que apenas aconteceu nos últimos dias e não se verifica nos concelhos de Sintra e de Lisboa.
José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda, apontou o caráter positivo das reuniões, salientando a “menção a determinantes económicas e sociais da doença”. A pedir medidas de alcance socioeconómico, lembrou a importância dos movimentos pendulares, a sobrelotação dos alojamentos, a falta de alternativas para muitos que não têm outra hipótese senão ir trabalhar para sobreviver. E entende que é muito importante que no Parlamento se a fiscalize “a evolução da pandemia e das medidas que se vierem a tomar”.
Jorge Pires, do PCP, frisou a “importância das reuniões”, associou o seu fim à “opinião dum líder político muito amplificada” na comunicação social e sustentou que “o conjunto de pessoas que trabalharam ao longo destes meses prestou um grande serviço”, pelo que as reuniões, na sua ótica, devem ser retomadas, “nem que seja mais à frente”.
Também o PEV, pela voz de Dulce Arrojado, reconheceu que as reuniões são muito relevantes e que a partilha de informação é indispensável. E pôs a tónica nas condições socioeconómicas, tal como havia feito o deputado do Bloco de Esquerda.
António Carlos Monteiro, do CDS, lamentou o “fim das reuniões numa altura em que a crise de saúde pública continua” e acrescentou que não é com menos informação que as soluções aparecem. E denunciou:
Em número de contágios por milhão de habitantes, Portugal fica apenas atrás da Suécia, que não teve qualquer confinamento. Os portugueses pagaram o preço do confinamento em falências e desemprego e isso não teve o efeito desejado. O que sentimos é uma enorme frustração.”.
André Ventura estranhou o fim das reuniões após as declarações de Rui Rio e a “passividade enorme” do Presidente, salientou o alinhamento e concertação entre todos estes atores e sublinhou o aumento de contágio nos jovens, nos lares e no Algarve.
E Carla Castro, da Iniciativa Liberal, criticou a “forma como o Governo continua a encontrar inimigos externos e culpados”, quando deveria tentar “encontrar soluções para os problemas”.
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Ao invés do que deixou perceber o Chefe de Estado, o Primeiro-Ministro esclareceu que as reuniões com epidemiologistas continuarão, mas que não foi marcada a seguinte porque a situação pandémica está estabilizada e não há informação relevante nova para partilhar. Disse-o no final duma reunião com a presidente da Câmara da Amadora, em que também estiveram presentes a Ministra da Saúde e o Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que é também o coordenador do Governo para o combate à covid-19 na região de Lisboa e Vale do Tejo para. E admitiu que uma nova reunião poderá ter lugar até ao final deste mês.
Salientando que “o país encontra-se numa situação estável” e que há dois estudos importantes que estão a decorrer (um do Instituto Nacional de Saúde Pública centrado na medição do nível de imunização; outro liderado pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto para medir a especificidade das cadeias de transmissão, designadamente na região de Lisboa), classificou como “úteis” as 10 reuniões e salientou que “é fundamental a prática de fiabilidade dos dados, total transparência e partilha dos dados com todos os responsáveis políticos”. Depois, advertiu que ninguém pode “afrouxar” nas medidas de proteção, considerando essencial a “persistência” na aplicação das medidas e a “paciência” em relação aos resultados. E disse que o modelo de intervenção aplicado na Amadora, baseado em equipas multidisciplinares e ações direcionadas em termos de terreno, “foi um bom exemplo”, que será “replicado” em outras zonas da Área Metropolitana de Lisboa.
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Há quem refira que o Presidente da República queria o fim destes encontros para descolar de Costa, o que não parece provável, por isso não lhe dar jeito neste momento e porque é ele quem assume o protagonismo dos conteúdos perante a comunicação social, que não lhe interessaria perder. Parece mais certo que tenha sido Rui Rio a urgir a descontinuidade das reuniões por a discussão entre políticos e técnicos já não trazer nada de novo ao combate à pandemia e por entender que os decisores devem estar mais focados no trabalho que nos debates. Assim, Rio terá sugerido isso, Marcelo terá concordado e Costa anuiu, embora desse a entender que o modelo estava saturado.
Por mim, penso que estas reuniões com o Chefe de Estado, conselheiros de Estado, parceiros sociais, membros do Governo e partidos com assento parlamentar deixaram de ter utilidade. É muita gente a debater. Dá a impressão que os especialistas se armam em professores dos políticos. E, como a ciência é muito incerta nestas matérias, os especialistas terão caído na tentação de mostrar excessivas divergências e oscilações. Ora, para que o seu contributo seja útil, antes destes fóruns deveriam pôr-se de acordo sobre o aconselhamento a dar aos decisores e nas respostas a dar aos possíveis pedidos de esclarecimento, sempre na linha do mais defensável apesar das incertezas e não levando a mal que o Governo explore outros canais de assessoria.
Por fim, entendo que estas reuniões, em vez de constituírem um espaço de espetáculo, embora à porta fechada, mas com demasiados intervenientes, deveriam ser mais sóbrias e limitadas. Até poderiam ser mais frequentes, mas com a participação de especialistas, obviamente, dos líderes parlamentares e dos ministros da Saúde e da Economia ou de secretários de Estado daquelas pastas, devendo os membros do Governo presentes reportar ao Primeiro-Ministro e ao Presidente da República a informação pertinente. Seria mais eficaz, embora não espetacular.      
2020.07.09 – Louro de Carvalho

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