quinta-feira, 16 de julho de 2020

A versão preliminar do documento de Costa e Silva (uma síntese)


António Costa e Silva, gestor nomeado pelo Primeiro-Ministro para coordenar os trabalhos preparatórios do plano de relançamento da economia, apresentou ao Governo, no passado dia 9 de julho, a Visão Estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030’, um documento de 119 páginas em que adverte para urgência de dar respostas, pois o que vem aí é pior que o esperado. Antecipa que a queda do PIB (produto interno bruto) pode, este ano, ascender aos 12%, contra as  previsões constantes do Orçamento Suplementar, que apontam para uma contração de 6,9%. E deixa claro que “não vale a pena ter ilusões”.
A justificar tão acentuada queda da economia, sustenta que o consumo pode registar, em 2020, uma queda de 11% e o investimento 26% e admite que a taxa de desemprego chegue aos 11,5%, pelo que preconiza um “pacto entre Estado e empresas”, em que o Estado não se limite a pôr dinheiro nas empresas, mas as leve a gestão eficiente, áreas e produtos de maior rentabilidade e manutenção de empregos. Alertando para a probabilidade de, a partir de setembro, a situação de muitas empresas se deteriorar significativamente assegura que “é fundamental existir no terreno um programa agressivo para evitar o colapso de empresas rentáveis”. E adverte que, mediando grande lapso de tempo entre a deterioração da economia no 2.º semestre de 2020 e a chegada da ajuda europeia, muitas empresas podem não se aguentar se não houver respostas adequadas.
A par do predito programa agressivo, o consultor propõe o reforço do investimento no cluster da economia de Defesa como uma prioridade, pois servirá de alavanca para o desenvolvimento tecnológico do país. Nestes termos, considera que devem ser apoiados projetos relacionados com a mobilidade aérea urbana, os microlançadores e microssatélites, a inovação no desenho e fabrico de estruturas aeronáuticas, a vigilância marítima, o comando e controlo, a ciberdefesa e os sistemas submarinos. E sugere uma série de instrumentos de ajuda à tesouraria das empresas, incluindo um “fundo soberano”, dirigido a companhias de base exportadora, pois as empresas estão muito descapitalizadas e é essencial criar condições para o reforço dos capitais próprios através de políticas fiscais e financeiras adequadas.
Entende que Portugal deve reforçar a cooperação geopolítica e económica para se tornar um ‘player(ator) atlântico (não só europeu) e se transformar numa potência média do ‘soft power’ (poder de persuasão), ligando a diplomacia, as missões de solidariedade internacional das Forças Armadas, a tecnologia e a necessidade de combater as ameaças globais, para abrir caminho à criação de plataformas colaborativas que podem resolver problemas e abrir novas vias para a cooperação geopolítica e económica. Salienta a atenção a dar “à necessidade de aumentar a eficácia dos reguladores, essenciais para o mercado funcionar de forma aberta e competitiva, tendo em conta o papel central da regulação, que deve ser simples, desburocratizada e ativa”. Por isso, sugere a elaboração dum balanço do trabalho das agências reguladoras em Portugal e a identificação de meios e mecanismos para melhorar toda a sua ação. E considera que se deve eliminar o limite de anos que os bancos e as empresas têm para deduzir prejuízos fiscais ao IRC. A forma de resolver o problema seria através de “uma medida que vise a eliminação do prazo de reporte de prejuízos fiscais em sede de IRC, em sintonia com o que acontece noutros países europeus”, medida “extensível às empresas, em especial às micro, pequenas e médias empresas”. E pede a retoma dos projetos de ligação entre o Porto e Lisboa por alta velocidade ferroviária e do novo aeroporto de Lisboa. Assim, sustenta a necessidade de “construir um eixo ferroviário de alta velocidade Porto-Lisboa para passageiros, começando com o troço Porto-Soure” (onde há mais constrangimentos de circulação), ligação que “potenciará a afirmação das duas áreas metropolitanas do país e o seu funcionamento em rede”, além de trazer “grandes ganhos ambientais por dispensar as ligações aéreas”.
E, embora o plano incida na recuperação económica, não pode deixar de se centrar nas pessoas, o que implica a necessidade de identificar e corrigir as vulnerabilidades do setor social, com o combate à pobreza, ao desemprego, à exclusão social. Com efeito, “as pessoas são a base do sistema democrático e a ação para preservar a sua dignidade é elemento indissociável do contrato social que rege os estados democráticos avançados”.
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No âmbito do apoio às empresas, o predito fundo soberano será o germe da criação dum fundo, de base pública com “capital aberto a fundos privados”, preferencialmente para “operações em coinvestimento, dirigido a empresas com orientação exportadora e potencialidades de exploração de escala”. Propõe-se a revisão do sistema nacional de garantia mútua; a criação dum banco promocional (tipo Banco do Fomento), com uma clara matriz da operação em torno dos segmentos de empresas com maior capacidade de arrastamento e não na lógica de assunção das operações de risco que o sistema financeiro não está disponível para aceitar, bem como tendo o mandato dum banco verde para garantir maior capitalização de investimentos verdes; o desenvolvimento duma “abordagem integrada entre financiamento à exportação, seguros de crédito, estímulo ao investimento internacional, que integrem a oferta de soluções, com maior presença dos estímulos públicos”; a criação de mecanismos que facilitem o acesso a seguros de crédito às empresas, o que passa por criar a verdadeira Cosec portuguesa; um programa de apoio à reestruturação de empresas, apoiando a recuperação e a realocação de capital nas mais produtivas, com reafetação de meios de produção e trabalhadores; e a possibilidade de dedução de lucros nos últimos exercícios, mecanismos de incentivo e créditos fiscais visando revitalizar as empresas, deduzir prejuízos acumulados, incentivar fusões e aquisições e criar massa crítica na economia.
No quadro das obras públicas, é preciso: construir um eixo ferroviário de alta velocidade (TGV) Porto-Lisboa para passageiros, começando com o troço Porto-Soure, com posterior ligação a Espanha, visando favorecer todo o litoral português e facilitar o equilíbrio financeiro da exploração; equacionar, para o médio prazo, a ligação ferroviária Porto-Vigo; dispor de linhas ferroviárias totalmente elétricas; construir o eixo Sines-Madrid e renovar a Linha da Beira Alta, dois eixos fundamentais para o tráfego de mercadorias para Espanha; investir nos portos de Sines e de Leixões para aumento da competitividade; construir um terminal portuário de minérios para exportação dos recursos minerais estratégicos (em particular o lítio, entre outros); estabelecer, no porto de Lisboa, uma plataforma de negociação que leve a um pacto entre as empresas e as entidades sindicais que salvaguarde o funcionamento dessa estrutura; desenvolver o plano para reconversão do porto da praia da Vitória, nos Açores, numa espécie de estação de fornecimento de gás natural liquefeito aos navios que cruzam o Atlântico; construir um novo aeroporto para a grande AML (Onde?); e alargar a rede do metro de Lisboa e do Porto incluindo uma nova travessia do Douro a montante da ponte da Arrábida, com aposta na mobilidade elétrica.
A nível dos recursos humanos, é vital que Portugal reforce o seu papel como centro europeu de engenharia, para o que  tem de formar mais engenheiros, não só de ‘software’ ou eletrotecnia, mas também mecânicos, civis, químicos, mineiros, físicos tecnológicos, aeroespaciais e outros; é preciso criar ‘kits’ pedagógicos ilustrativos das profissões mais necessárias para atrair estudantes do ensino secundário; importa implementar um “novo ciclo de investimento e desenvolvimento” para “cobrir fragilidades que ainda existem na capacidade do sistema científico” na formação de investigadores e no acesso às tecnologias, devendo as escolas superiores de sistemas digitais, escolas de pós-graduação e centros colaborativos de formação ser dos principais destinatários destes investimentos; é imperioso incrementar a ligação de projetos como a rede de laboratórios colaborativos e as parcerias das universidades portuguesas com grandes instituições científicas norte-americanas (MIT e Carnegie Mellon, por exemplo) e com as empresas”; há que dar prioridade ao “projeto para a Rede Ibérica de Computação Avançada e Supercomputação Verde”; e é de reforçar os meios do Centro de Computação Avançada da Universidade do Minho.
No campo da afirmação externa, Portugal deve reforçar a cooperação geopolítica e económica para se tornar um ‘player’, pois o Atlântico, a ressurgir como grande plataforma energética e comercial, “será uma das grandes vias marítimas do século XXI”, o que representa uma possibilidade imensa de mudar o estatuto e a trajetória de Portugal. O objetivo é transformar Portugal numa potência média do ‘soft power’ (poder de persuasão), ligando a diplomacia, as missões de solidariedade internacional das Forças Armadas, a tecnologia e a necessidade de combater as ameaças globais e abrindo caminho para a criação de plataformas colaborativas que podem resolver problemas e abrir novas vias para a cooperação geopolítica e económica.
Como exemplos de ‘soft power’, menciona-se a cooperação com os países do Norte de África para minimizar o avanço da desertificação, combater a ameaça climática e a escassez de água, e com as nações do Atlântico Sul, para preservar as rotas internacionais de comércio e prevenir os ataques piratas”; e preconiza-se a parceria científica e tecnológica e a cooperação geoeconómica entre as nações do Atlântico “para o desenvolvimento sustentável dos recursos energéticos e minerais e para proteger o oceano e os seus ecossistemas” e a criação duma grande Universidade do Atlântico e um centro de previsão do clima, atraindo parceiros internacionais para os Açores.
Quanto à justiça fiscal, recomenda-se a utilização dos meios de resolução alternativa de litígios e o estímulo aos operadores judiciais a essa utilização, por maior rapidez e menor onerosidade; a gestão mais produtiva dos processos judiciais, com a simplificação das suas etapas; e a remoção dos tribunais dos processos que parasitam o sistema (insolvências, litígios específicos e fiscalidade…).
No Pacto entre Estado e empresas, importa que o Estado reúna com as empresas, por ‘clusters’, para fazer o levantamento da situação, definir os critérios de apoio e condicionar o apoio a uma aposta forte das empresas na manutenção dos postos de trabalho e na sua responsabilidade de gestão eficiente dos capitais a que têm acesso para reinventarem os seus planos de negócio e apostarem em áreas e produtos que assegurem uma maior sustentabilidade em termos de futuro; é imperioso que o pacto regule o papel de ambos e em que a concessão de apoios públicos ao tecido empresarial seja pautada por critérios definidos idos pelo Estado.
Em termos da Prioridade de produção, Portugal deve tornar-se numa fábrica da Europa nos dispositivos médicos, como ventiladores, e consolidar a fileira dos equipamentos de proteção individual, revendo os sistemas de certificação; tem de explorar a capacidade de utilizar as valências da metalomecânica ligeira e da indústria de moldes para, com base na impressão 3D e nas tecnologias digitais, “criar produtos inovadores para os profissionais de saúde, da proteção marinha e da proteção civil”; e há que reconverter o Centro Nuclear de Sacavém e criar um polo de terapia oncológica com protões, baseado em Loures, mas em rede de IPO: Coimbra, Porto e Lisboa.
Em relação ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), há que fazer evoluir a sua organização para um modelo mais flexível e rápido, mas “mantendo e consolidando a qualidade e sustentabilidade; concluir a rede do SNS com o novo Hospital de Lisboa Oriental, o novo Hospital do Seixal, o novo Hospital de Évora, o novo Hospital do Algarve; requalificar o parque e a tecnologia hospitalar e ampliar a Rede Nacional de Cuidados Continuados; dotar os centros de saúde de meios de diagnóstico em termos de radiologia e de colheita de análises para diminuir recurso às urgências; e desenvolver uma cultura nutricional e de atividade física, pilotada pela rede de Centros de Saúde, que comece nas escolas e se propague ao conjunto da sociedade.
Relativamente ao Turismo, importa direcionar programas de apoio específico para a revitalização do turismo, setor que representa 13% do PIB; promover um grande plano para captar a atenção dos mercados mais importantes com base nas valências que apresenta em termos da diversidade geográfica e paisagística; apostar na qualidade e ter como indicadores não só o número de visitantes, mas também a rentabilidade por turista; combinar o turismo convencional com o da natureza, o da saúde, o cultural e o oceânico, construindo assim uma oferta competitiva; e evitar o recurso sistemático a mão-de-obra precária e desqualificada.
Para a valorização da cultura, urge: criar um fundo público para a criatividade digital, para projetos inovadores que associem arte e tecnologia; instalar “incubadoras para a criatividade e arte digital”, com ligação a universidades e centros tecnológicos; investir mais na investigação científica em cultura e património e na digitalização de conteúdos e obras artísticas, como cinema e obras de artes; criar várias redes de cultura (Rede Nacional de Cineteatros e Cineclubes, Rede Nacional de Arte Contemporânea e Rede de Residências Artísticas…), para capitalizar espaços e centros de arte contemporânea, muitos dos quais fechados ou com utilização muito reduzida, a necessitarem de modernização tecnológica, com prioridade para os agentes culturais que não dispõem de espaços para criar; estabelecer programas de apoio a atividades artesanais, “assentes na tradição e a reabilitar património cultural e natural para futuros “programas ecoartísticos”; e assegurar e reforçar o mercado de bens e serviços culturais, promovendo e preservando o emprego nesta área e reconhecer o valor económico e geopolítico da cultura.
Enfim, é crucial prestar atenção às PME (pequenas e médias empresas), que fazem mais de 95% do tecido empresarial e empregam mais de 75% das pessoas. A saída da crise quer empresas mais saudáveis e que resolvam os problemas de financiamento, o que implica o alívio da sua carga fiscal, “que é muito elevada e torna o país menos competitivo”. E as empresas, candidatas à injeção de capital público, devem melhorar a qualidade da gestão; identificar e explorar os nichos certos do mercado globalizado; abrir capital; evitar o foco no financiamento pela dívida; aumentar a competitividade, não pelos baixos salários, mas pela inovação; internacionalizar-se; cooperar e criar massa crítica para intervirem nos nichos do mercado global.
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Um programa muito caro e de difícil execução política e económica. Quase esquece Madeira e Açores e é magro no TGV de ligação à Europa. Não aposta claramente na via férrea de bitola UIC, parece ignorar o parque escolar e a problemática do transporte rodoviário, bem como o custo da eletricidade, da água e das telecomunicações. Que vão fazer os decisores políticos?    
2020.07.15 – Louro de Carvalho

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