Recentemente foi aprovada
uma série de alterações ao Regimento da Assembleia da República (AR) e,
segundo os observadores, tal ação parlamentar redundará em défice para a
democracia, sobretudo no atinente à fiscalização do Governo por parte dos
deputados, que são eleitos diretamente, quando o Governo não o é, embora o
Presidente da República tenha de considerar os resultados das eleições
legislativas e ouvir os partidos com assento parlamentar.
E a alteração regimental que
mais brado político concitou foi o fim dos debates parlamentares quinzenais com
o Chefe do Governo, uma iniciativa que partiu do líder do maior partido da
oposição e que na certa agradou ao Primeiro-Ministro (PM). Com
efeito, António Costa, quando comentador político na extinta “Quadratura do Círculo”, da SIC Notícias, chegou a denominar de
totalmente estúpida a medida regimental que obriga o PM a ir tão frequentemente
ao Parlamento a responder às questões dos deputados. Disse-o, não sendo ainda
Chefe do Governo, mas em contradição com o antigo líder da bancada do PS,
António José Seguro, que apadrinhou, no consulado de José Sócrates, em 2007, a
medida proposta por Paulo Portas, seguindo em parte a linha do Parlamento do
Reino Unido, onde o PM responde em periodicidade semanal.
Num regime
semipresidencialista, é espectável que o executivo evite ser incomodado pelo
escrutínio dos deputados e que as oposições façam questão de incomodar o mais
possível o executivo através de debates, perguntas extradebates, requerimentos,
pedidos de esclarecimento, resoluções, deliberações, etc. É claro que a António
Costa ficaria politicamente mal urgir tal alteração, mas o núcleo duro do seu
partido, apesar de uma boa franja de críticos estrebuchar, iria acolher de
braços abertos a iniciativa de Rio, que prendeu acabar com a gritaria, em vez
de tentar corrigir o desenrolar dos debates parlamentares e conseguir com eles
mais eficácia.
Em 2007, foi um membro do
partido que sustentava um governo maioritário a propor uma alteração regimental
a urgir uma forma de escrutínio sistemático; desta feita, é o líder do maior
partido da oposição a dispensar o Governo de sujeição tão apertada ao
escrutínio parlamentar. E o argumento de rui Rio é que o PM não pode passar a
vida em debates, tendo de trabalhar. E os críticos do líder socialdemocrata
sustentam que o debate parlamentar também é trabalho para o Chefe do Governo,
sendo que, segundo o ex-deputado Matos
Correia, também socialdemocrata,
“quanto mais contas prestar o Primeiro-Ministro, melhor para a democracia”.
Miguel Carrapatoso coloca a questão de se tratar de enobrecer o debate ou de desferir um golpe irreversível
na democracia parlamentar. A maior parte dos deputados do PS e do PSD puseram um
ponto final nos quinzenais com o PM e alegadamente reforçaram o papel dos
debates setoriais com os ministros e reduziram a frequência dos embates com o Chefe
do Governo, tendo a discussão sido iniciada pelo líder socialdemocrata, que
acabou sob um ataque cerrado, muito embora o PS tivesse proposta quase igual. Mas
Rio aduziu que “estes debates, em que todos procuram criar incidentes”, desgastam
a imagem da AR, do PM e dos grupos parlamentares e não melhoram a democracia
nem trazem “qualquer dignidade”.
Todavia, Rio não ficou por aqui. Propôs ainda: a
criação dum Conselho de Ética composto por não deputados em maioria para “evitar
juízes em causa própria”; a integração de personalidades independentes nas
comissões parlamentares de inquérito (CPI) para despartidarizar a discussão; e um novo modelo de debate – propostas bem
populistas! O PS não acolheu as duas primeiras propostas, mas acompanhou o PSD
na última. No essencial, sociais-democratas e socialistas concordaram que os
debates setoriais sobre temas concretos devem ganhar primazia. Em alternativa,
o PS sugeria que o PM fosse uma vez por mês ao Parlamento; o PSD, por seu
turno, entende que deve ir 8 vezes por ano: 4 ordinárias, duas antes de dois
conselhos europeus, uma vez no debate do estado da nação e outra durante o
Orçamento do Estado – sem prejuízo de ser lá chamado sempre que se justificar. E
o novo modelo estará em vigor já em setembro.
As críticas, no entanto, são muitas, como se disse. E,
ao Expresso, José Matos Correia, que
em 2007 integrou, pelo PSD, o grupo de trabalho que originou o atual regimento (com a
figura dos debates quinzenais), disse que
o modelo que agora termina contribuiu para o papel do Parlamento como “centro
de fiscalização”, pelo que a sua eliminação “empobrece o papel do Parlamento e
da democracia”. Também Miguel Pinto de Luz, vice-presidente da Câmara de
Cascais e challenger de Rio nas
últimas eleições diretas do partido, entende que “os debates quinzenais
valorizam a Assembleia e o papel dos deputados”, sendo “um erro e um ataque ao
espírito da democracia” a sua eliminação ou diminuição. E Pedro Santana Lopes,
fundador da Aliança, antigo líder parlamentar, antigo presidente do PSD e
antigo Primeiro-Ministro, classifica de incompreensível a iniciativa do PSD,
pois “no tempo que vivemos, não faz sentido reduzir ou eliminar qualquer
instrumento democrático ou figura regimental que permita o controlo do poder”,
como “não faz sentido que alguém da oposição aceite ou até proponha menos
debates com o Primeiro-Ministro”.
Entretanto, o eurodeputado Carlos Zorrinho, que foi o
presidente do grupo parlamentar de Seguro, aproxima-se destas propostas, porque
“os modelos valem pela sua prática” e “o atual funcionou bem e mal”, sendo que
a proposta lhe parece “um upgrade da reforma de 2007”.
Rio reconhece que o tema é sensível, mas classifica de
“demagógicas” as críticas sobre a intenção de fragilizar o escrutínio ou
diminuir o papel do líder parlamentar para proteger o Governo. Acha que isto
estava mal e que tinha “a obrigação de pôr isto bem”, pois “hoje, o Primeiro-Ministro
é António Costa, amanhã será outro”.
***
Em síntese, o PSD propôs a realização obrigatória de 4
sessões de perguntas ao PM por ano no Parlamento, em vez dos atuais debates
quinzenais, e outras 4 com ministros setoriais, em que o líder do Governo pode
estar presente. Assim, a presença obrigatória do Chefe do Governo na AR subirá
para 8 vezes por ano se se contabilizar o debate do Estado da Nação, que se
inicia com uma intervenção do PM, e a discussão do Orçamento do Estado, que é
aberta ou fechada por este (embora o regimento não o pormenorize). E acrescentam-se a esta contabilidade duas presenças
anuais do PM em sessão plenária sobre temas europeus. Porém, esta também
diminuiria, já que outra iniciativa socialdemocrata considera excessiva a exigência
dum debate com o líder do Governo antes de cada Conselho Europeu, que passaria
para uma vez em cada semestre, em março e setembro. Porém, o PS não acolheu tal
diminuição, pelo que a presença obrigatória do Chefe do Governo na AR ocorrerá
10 vezes.
Também o líder do PSD pretendia que as sessões
plenárias da AR passassem de três para duas (quartas e sextas-feiras), sendo a de quinta-feira apenas realizada quando existissem
debates com o PM e com os ministros setoriais, o que o PS não aceitou.
Na proposta do PSD, estipula-se que “o Primeiro-Ministro
comparece perante o plenário para uma sessão de perguntas dos deputados nos
meses de setembro, janeiro, março e maio”. Até 48 horas antes do debate, os
partidos comunicam à AR e ao Governo as concretas áreas setoriais, “no máximo
de duas, sobre as quais devem incidir as perguntas”. O projeto do PSD admitia
que, surgindo nas 48 horas anteriores ao debate outras questões de atualidade
política, “podem ser colocadas ao Primeiro-Ministro”; e, se este não responder,
a bancada que fez a pergunta “tem o direito de a colocar por escrito ao
Primeiro-Ministro”, tendo este o dever de responder em 48 horas, “sob pena de
ter de comparecer, para dar resposta presencial, na primeira sessão plenária
seguinte ao termo do prazo de resposta”. E o PSD pretendia que este debate passasse
a ser mais longo e decorresse em “duas voltas de perguntas dos deputados” – o que
foi aprovado –, ao invés do modelo atual, apenas de uma única volta.
Já os debates com os ministros setoriais, em que “o
Primeiro-Ministro tem a faculdade de estar presente”, segundo a proposta do PSD,
aconteceriam no plenário “nos meses de outubro, fevereiro, abril e junho”,
cabendo “a cada um dos grupos parlamentares, por ordem decrescente da respetiva
representatividade, indicar o ministro que comparece à sessão de perguntas em
plenário”, mas não podendo ser o mesmo ministro “indicado para comparecer na
mesma sessão legislativa, nem em dois debates sucessivos”.
O projeto de revisão de regimento do PSD previa
alterações em quase 60 dos 267 artigos do regimento, que passam ainda pela
criação da figura da recomendação política, distinta dos projetos de resolução
por incidirem em matéria que não é da competência da AR e não iriam a plenário,
bem como por alterações nas grelhas de tempo dos debates.
A proposta do PSD, que não mereceu aprovação, defendia
“a recuperação do princípio da proporcionalidade”, em que os dois maiores
grupos parlamentares e o Governo disporiam de 5 minutos cada, os terceiro e
quarto maiores grupos disporiam de 4 minutos cada, e os restantes grupos
parlamentares de 3 minutos cada para intervirem no debate. Aos deputados únicos
representantes dum partido seria garantido tempo de intervenção dum minuto,
enquanto os deputados não inscritos poderiam, segundo o PSD, “solicitar ao
Presidente da Assembleia a sua intervenção até um máximo de 5 debates em
reunião plenária por sessão legislativa, pelo tempo igual ao dos deputados únicos
representantes de um partido”, o que não foi aceite tal e qual.
Foi ainda triplicado (de 4 mil para 12 mil) o número de assinaturas de cidadãos eleitores exigível
para que uma petição possa ser apreciada em Plenário.
O PSD incluía na proposta de revisão do regimento as
alterações que decorrem de outras duas iniciativas apresentadas pelo partido em
diplomas autónomos: a substituição da Comissão Parlamentar de Transparência e
Estatuto dos Deputados por um Conselho de Transparência e Estatuto dos
Deputados e a introdução da participação obrigatória de pessoas da sociedade
civil nas CPI, com o estatuto de colaboradores.
***
Penso que a criação duma comissão de ética na AR constituída
maioritariamente por não deputados não lembraria a ninguém e não acrescentaria
nada de relevante, até porque técnicos contratados para um determinado serviço
costumam dar parecer em conformidade com a vontade de quem paga. Portanto, é
melhor confiar nos deputados e exigir-lhes fiabilidade. E, quanto à participação
de pessoas da sociedade civil em CPI, ela não deve ser obrigatória, mas ficar
ao critério de necessidade a juízo da mesma CPI. Porém, em termos globais, a AR
autodiminuiu o seu poder efetivo de fiscalização e fechou-se mais aos cidadãos
e o líder do PSD voltou a marcar pontos com propostas não consensuais, mas
aparentemente corretas.
2020.07.31 –
Louro de Carvalho
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