sexta-feira, 31 de julho de 2020

Normal é o Governo evitar o escrutínio e a oposição intensificá-lo


Recentemente foi aprovada uma série de alterações ao Regimento da Assembleia da República (AR) e, segundo os observadores, tal ação parlamentar redundará em défice para a democracia, sobretudo no atinente à fiscalização do Governo por parte dos deputados, que são eleitos diretamente, quando o Governo não o é, embora o Presidente da República tenha de considerar os resultados das eleições legislativas e ouvir os partidos com assento parlamentar.  
E a alteração regimental que mais brado político concitou foi o fim dos debates parlamentares quinzenais com o Chefe do Governo, uma iniciativa que partiu do líder do maior partido da oposição e que na certa agradou ao Primeiro-Ministro (PM). Com efeito, António Costa, quando comentador político na extinta “Quadratura do Círculo”, da SIC Notícias, chegou a denominar de totalmente estúpida a medida regimental que obriga o PM a ir tão frequentemente ao Parlamento a responder às questões dos deputados. Disse-o, não sendo ainda Chefe do Governo, mas em contradição com o antigo líder da bancada do PS, António José Seguro, que apadrinhou, no consulado de José Sócrates, em 2007, a medida proposta por Paulo Portas, seguindo em parte a linha do Parlamento do Reino Unido, onde o PM responde em periodicidade semanal.
Num regime semipresidencialista, é espectável que o executivo evite ser incomodado pelo escrutínio dos deputados e que as oposições façam questão de incomodar o mais possível o executivo através de debates, perguntas extradebates, requerimentos, pedidos de esclarecimento, resoluções, deliberações, etc. É claro que a António Costa ficaria politicamente mal urgir tal alteração, mas o núcleo duro do seu partido, apesar de uma boa franja de críticos estrebuchar, iria acolher de braços abertos a iniciativa de Rio, que prendeu acabar com a gritaria, em vez de tentar corrigir o desenrolar dos debates parlamentares e conseguir com eles mais eficácia.
Em 2007, foi um membro do partido que sustentava um governo maioritário a propor uma alteração regimental a urgir uma forma de escrutínio sistemático; desta feita, é o líder do maior partido da oposição a dispensar o Governo de sujeição tão apertada ao escrutínio parlamentar. E o argumento de rui Rio é que o PM não pode passar a vida em debates, tendo de trabalhar. E os críticos do líder socialdemocrata sustentam que o debate parlamentar também é trabalho para o Chefe do Governo, sendo que, segundo o ex-deputado Matos Correia, também socialdemocrata, “quanto mais contas prestar o Primeiro-Ministro, melhor para a democracia”.
Miguel Carrapatoso coloca a questão de se tratar de enobrecer o debate ou de desferir um golpe irreversível na democracia parlamentar. A maior parte dos deputados do PS e do PSD puseram um ponto final nos quinzenais com o PM e alegadamente reforçaram o papel dos debates setoriais com os ministros e reduziram a frequência dos embates com o Chefe do Governo, tendo a discussão sido iniciada pelo líder socialdemocrata, que acabou sob um ataque cerrado, muito embora o PS tivesse proposta quase igual. Mas Rio aduziu que “estes debates, em que todos procuram criar incidentes”, desgastam a imagem da AR, do PM e dos grupos parlamentares e não melhoram a democracia nem trazem “qualquer dignidade”.
Todavia, Rio não ficou por aqui. Propôs ainda: a criação dum Conselho de Ética composto por não deputados em maioria para “evitar juízes em causa própria”; a integração de personalidades independentes nas comissões parlamentares de inquérito (CPI) para despartidarizar a discussão; e um novo modelo de debate – propostas bem populistas! O PS não acolheu as duas primeiras propostas, mas acompanhou o PSD na última. No essencial, sociais-democratas e socialistas concordaram que os debates setoriais sobre temas concretos devem ganhar primazia. Em alternativa, o PS sugeria que o PM fosse uma vez por mês ao Parlamento; o PSD, por seu turno, entende que deve ir 8 vezes por ano: 4 ordinárias, duas antes de dois conselhos europeus, uma vez no debate do estado da nação e outra durante o Orçamento do Estado – sem prejuízo de ser lá chamado sempre que se justificar. E o novo modelo estará em vigor já em setembro.
As críticas, no entanto, são muitas, como se disse. E, ao Expresso, José Matos Correia, que em 2007 integrou, pelo PSD, o grupo de trabalho que originou o atual regimento (com a figura dos debates quinzenais), disse que o modelo que agora termina contribuiu para o papel do Parlamento como “centro de fiscalização”, pelo que a sua eliminação “empobrece o papel do Parlamento e da democracia”. Também Miguel Pinto de Luz, vice-presidente da Câmara de Cascais e challenger de Rio nas últimas eleições diretas do partido, entende que “os debates quinzenais valorizam a Assembleia e o papel dos deputados”, sendo “um erro e um ataque ao espírito da democracia” a sua eliminação ou diminuição. E Pedro Santana Lopes, fundador da Aliança, antigo líder parlamentar, antigo presidente do PSD e antigo Primeiro-Ministro, classifica de incompreensível a iniciativa do PSD, pois “no tempo que vivemos, não faz sentido reduzir ou eliminar qualquer instrumento democrático ou figura regimental que permita o controlo do poder”, como “não faz sentido que alguém da oposição aceite ou até proponha menos debates com o Primeiro-Ministro”.
Entretanto, o eurodeputado Carlos Zorrinho, que foi o presidente do grupo parlamentar de Seguro, aproxima-se destas propostas, porque “os modelos valem pela sua prática” e “o atual funcionou bem e mal”, sendo que a proposta lhe parece “um upgrade da reforma de 2007”.
Rio reconhece que o tema é sensível, mas classifica de “demagógicas” as críticas sobre a intenção de fragilizar o escrutínio ou diminuir o papel do líder parlamentar para proteger o Governo. Acha que isto estava mal e que tinha “a obrigação de pôr isto bem”, pois “hoje, o Primeiro-Ministro é António Costa, amanhã será outro”.
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Em síntese, o PSD propôs a realização obrigatória de 4 sessões de perguntas ao PM por ano no Parlamento, em vez dos atuais debates quinzenais, e outras 4 com ministros setoriais, em que o líder do Governo pode estar presente. Assim, a presença obrigatória do Chefe do Governo na AR subirá para 8 vezes por ano se se contabilizar o debate do Estado da Nação, que se inicia com uma intervenção do PM, e a discussão do Orçamento do Estado, que é aberta ou fechada por este (embora o regimento não o pormenorize). E acrescentam-se a esta contabilidade duas presenças anuais do PM em sessão plenária sobre temas europeus. Porém, esta também diminuiria, já que outra iniciativa socialdemocrata considera excessiva a exigência dum debate com o líder do Governo antes de cada Conselho Europeu, que passaria para uma vez em cada semestre, em março e setembro. Porém, o PS não acolheu tal diminuição, pelo que a presença obrigatória do Chefe do Governo na AR ocorrerá 10 vezes.
Também o líder do PSD pretendia que as sessões plenárias da AR passassem de três para duas (quartas e sextas-feiras), sendo a de quinta-feira apenas realizada quando existissem debates com o PM e com os ministros setoriais, o que o PS não aceitou.
Na proposta do PSD, estipula-se que “o Primeiro-Ministro comparece perante o plenário para uma sessão de perguntas dos deputados nos meses de setembro, janeiro, março e maio”. Até 48 horas antes do debate, os partidos comunicam à AR e ao Governo as concretas áreas setoriais, “no máximo de duas, sobre as quais devem incidir as perguntas”. O projeto do PSD admitia que, surgindo nas 48 horas anteriores ao debate outras questões de atualidade política, “podem ser colocadas ao Primeiro-Ministro”; e, se este não responder, a bancada que fez a pergunta “tem o direito de a colocar por escrito ao Primeiro-Ministro”, tendo este o dever de responder em 48 horas, “sob pena de ter de comparecer, para dar resposta presencial, na primeira sessão plenária seguinte ao termo do prazo de resposta”. E o PSD pretendia que este debate passasse a ser mais longo e decorresse em “duas voltas de perguntas dos deputados” – o que foi aprovado –, ao invés do modelo atual, apenas de uma única volta.
Já os debates com os ministros setoriais, em que “o Primeiro-Ministro tem a faculdade de estar presente”, segundo a proposta do PSD, aconteceriam no plenário “nos meses de outubro, fevereiro, abril e junho”, cabendo “a cada um dos grupos parlamentares, por ordem decrescente da respetiva representatividade, indicar o ministro que comparece à sessão de perguntas em plenário”, mas não podendo ser o mesmo ministro “indicado para comparecer na mesma sessão legislativa, nem em dois debates sucessivos”.
O projeto de revisão de regimento do PSD previa alterações em quase 60 dos 267 artigos do regimento, que passam ainda pela criação da figura da recomendação política, distinta dos projetos de resolução por incidirem em matéria que não é da competência da AR e não iriam a plenário, bem como por alterações nas grelhas de tempo dos debates.
A proposta do PSD, que não mereceu aprovação, defendia “a recuperação do princípio da proporcionalidade”, em que os dois maiores grupos parlamentares e o Governo disporiam de 5 minutos cada, os terceiro e quarto maiores grupos disporiam de 4 minutos cada, e os restantes grupos parlamentares de 3 minutos cada para intervirem no debate. Aos deputados únicos representantes dum partido seria garantido tempo de intervenção dum minuto, enquanto os deputados não inscritos poderiam, segundo o PSD, “solicitar ao Presidente da Assembleia a sua intervenção até um máximo de 5 debates em reunião plenária por sessão legislativa, pelo tempo igual ao dos deputados únicos representantes de um partido”, o que não foi aceite tal e qual.
Foi ainda triplicado (de 4 mil para 12 mil) o número de assinaturas de cidadãos eleitores exigível para que uma petição possa ser apreciada em Plenário.
O PSD incluía na proposta de revisão do regimento as alterações que decorrem de outras duas iniciativas apresentadas pelo partido em diplomas autónomos: a substituição da Comissão Parlamentar de Transparência e Estatuto dos Deputados por um Conselho de Transparência e Estatuto dos Deputados e a introdução da participação obrigatória de pessoas da sociedade civil nas CPI, com o estatuto de colaboradores.
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Penso que a criação duma comissão de ética na AR constituída maioritariamente por não deputados não lembraria a ninguém e não acrescentaria nada de relevante, até porque técnicos contratados para um determinado serviço costumam dar parecer em conformidade com a vontade de quem paga. Portanto, é melhor confiar nos deputados e exigir-lhes fiabilidade. E, quanto à participação de pessoas da sociedade civil em CPI, ela não deve ser obrigatória, mas ficar ao critério de necessidade a juízo da mesma CPI. Porém, em termos globais, a AR autodiminuiu o seu poder efetivo de fiscalização e fechou-se mais aos cidadãos e o líder do PSD voltou a marcar pontos com propostas não consensuais, mas aparentemente corretas.
2020.07.31 – Louro de Carvalho

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