domingo, 26 de julho de 2020

O tesouro, a pérola e a rede como eloquentes parábolas do Reino


O final do Discurso das Parábolas do Reino (Mt 13,44-52), proclamado na liturgia do XVII domingo do Tempo Comum no Ano A, oferece mais uma trilogia de parábolas: a do tesouro escondido no campo (Mt 13,44), a da pérola (Mt 13,45-46) e a da rede (Mt 13,47-50).
O texto evangélico pode ser dividido em três partes, havendo em cada uma aspetos e questões a relevar e ter em conta.
Na primeira parte, a parábola do tesouro e a da pérola preciosa – parábolas bem pequeninas desenvolvem o mesmo tema e apresentam ensinamentos semelhantes, sendo a principal questão a descoberta do valor e da importância do Reino. Ambas as parábolas sugerem que o Reino (o mundo de paz, amor, fraternidade, serviço e reconciliação, anunciado e oferecido por Jesus) é um tesouro precioso, que os seguidores de Jesus devem abraçar acima de qualquer outro valor. Os cristãos são aqueles que encontraram o Reino – algo de único, de fundamental, de decisivo. E, quando alguém encontra um tesouro deste quilate, deve elegê-lo como a riqueza mais preciosa, pela qual se renuncia a tudo o mais e pela qual se está disposto a pagar qualquer preço.
Estas duas parábolas constituem dois fortíssimos acenos a deixar tudo, para, pela via dum amor maior, seguir Jesus, que é a Autobasileía ou o Reino-de-Deus em Pessoa, no dizer certeiro e contundente de Orígenes (185-254), retomado por Dom António Couto, Bispo de Lamego (vd Jornal da Madeira, de hoje), para quem “a tessitura da parábola do tesouro escondido no campo assenta no velho princípio de que quem adquire um bem imóvel, adquire também os bens móveis a ele ligados”. E, sendo Jesus “o tesouro escondido” ou “a pérola preciosíssima”, será preciso deixar mesmo tudo para O seguir (cf Lc 14,33). E o eminente biblista adverte para a necessidade de toda a atenção e empenho, visto que “o tesouro de Deus não se dá em qualquer campo”, sendo necessários, por isso, “novos mapas, novas pautas, novas coordenadas, novas estradas, para se poder procurar e saber encontrar esse tesouro escondido” e sendo necessário submeter a nossa vida à rajada dos verbos “Vai, vende, dá, vem e segue-me!” (Mt 19,21).
Provavelmente, Mateus quer sugerir aos cristãos a quem destina o seu Evangelho (adormecidos numa fé morna) que é preciso redescobrir esse valor mais alto e optar decisivamente por ele, pois, sendo o cristão confrontado pari passu com muitos valores e opções, deve saber discernir qual é o valor mais importante que dá sentido à sua vida – o Reino.
Na segunda parte, surge o Reino na imagem da rede que, lançada ao mar, apanha diversos tipos de peixes. É um ensinamento semelhante ao da parábola do trigo e do joio: o Reino não é um condomínio fechado, onde só há gente escolhida e santa, mas a realidade onde o mal e o bem crescem simultaneamente tentando o joio empecer o trigo e o trigo ganhar adultez por entre o joio que lhe faz um ambiente hostil. Ora, Deus não tem pressa de condenar: porque não quer a morte do pecador, dá ao homem tempo necessário e suficiente para amadurecer as suas opções e para fazer as suas escolhas. E, ao invés do Evangelho de Tomé, que narra a história dum pescador sábio que pesca vários peixes, ficando só com o maior e lançando os outros ao mar – apresentando aí a parábola uma mensagem na linha das parábolas do tesouro e da pérola – a referência que Mateus, mais uma vez, faz ao juízo final é a forma de exortar os irmãos no sentido de escolherem decididamente o Reino e porem em prática os ensinamentos de Jesus.
Dom António Couto chama a atenção para o facto de esta parábola ser a que ocupa mais espaço no texto que as anteriores juntas: 4 versículos apenas. E refere que, servindo-se duma imagem tirada do mundo piscatório, Jesus diz que o Reino dos Céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes. Naturalmente que os pescadores sentar-se-ão na praia para fazer a destrinça entre os bons e os que não prestam, guardando os bons e deitando fora os outros. E a explicação vem logo e por semelhança: “Assim será no fim do mundo: os anjos sairão a separar os maus do meio dos justos e a lançá-los na fornalha ardente”.
Porém, o prelado lamecense avisa que a destrinça entre peixes bons e maus não se pauta pela qualidade ou pelo tamanho. Trata-se da distinção entre puro o impuro, o considerado kasher e não-kasher. Segundo o Levítico, são puros e podem-se comer os peixes com barbatanas e escamas (Lv 11,9), tendo de se deitar fora, como impuros, os peixes sem barbatanas e sem escamas (Lv 11,10-12). E diz Dom António que tal meticulosidade advém do facto de o Mar da Galileia ser muito abundante em peixe e reunir uma fauna piscícola muito variada e, em alguns casos, original, salientando-se, o ‘peixe de S. Pedro’ (chromis Simonis), que tem uma cavidade oral onde conserva os ovos, e, depois as crias, e onde, por vezes, também recolhe pequenos seixos e objetos metálicos, o que explica o episódio da moeda referido em Mateus 17,27. E, como na parábola do trigo e do joio, também aqui Jesus alude ao fim do mundo para afirmar que a destrinça entre maus e justos será efetuada, não por nós, mas pelos Anjos, sendo que a distinção entre puros e impuros do Levítico fica ultrapassada pelos critérios neotestamentários.
É de assinalar que a secção das sete parábolas acerca do Reino fecha com a pergunta formulada por Jesus aos discípulos: “Compreendeis todas estas coisas?”, ao que eles respondem: “Sim!”.
Quer dizer que, para os discípulos, que desejavam a explicação das parábolas, a explicação resultou a ponto de eles irem dispensando a explicação, passando a compreendê-las.
Estamos na terceira parte do texto evangélico, iniciada com o diálogo da compreensão. Ora, compreender, na teologia mateana, significa prestar atenção ao ensinamento e comprometer-se com ele, o que significa que os cristãos são convidados a descobrir a realidade do Reino, a entender as suas exigências, a comprometerem-se com os seus valores.
A seguir, Jesus apresenta um discurso parabólico, uma espécie de oitava parábola: “Todo o escriba feito discípulo do Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas(Mt 13,52). E Dom António Couto sublinha “a imensa sabedoria e alegria do discípulo que deve ser como um pai, que dispõe na sua imensa despensa de produtos excelentes, novos, como o pão fresco, antigos, como o vinho velho”, ao passo que o escriba veterotestamentário só “transmitia as coisas antigas que vinham na torrente da tradição”. E na palavra de Cristo, inclusiva, está a novidade da Nova Aliança, manancial de vida. é preciso que o escriba se torne discípulo do Reino para ter a autoridade de Cristo.
De facto, a referência ao escriba que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas” evoca os judeus, conhecedores profundos do Antigo Testamento (o “velho”), tal como tantos que hoje a eles se assemelham, convidados agora a refletirem as velhas promessas, ou as tradições ancestrais, à luz das propostas de Jesus (o “novo”). É nessa dialética, exigente e questionante, que o verdadeiro discípulo encontra o caminho para o Reino e, depois de encontrar o caminho, tem de se comprometer com ele, decisiva, exigente, empenhadamente.
***
Não restam dúvidas de que, ao contar as sete parábolas do Reino, Jesus Se conta a Si mesmo. É Ele a verdadeira parábola que surge à nossa frente. “Pequenino como semente, escondido como crescente, cai à terra ou na farinha – diz Dom António – e morre para reviver e dar vivificar; oculto como o tesouro ou a pérola, que é preciso procurar apostando tudo, o Reino dos Céus é ainda como o campo em que cresce ao mesmo tempo o bom e o mau, ou a rede que recolhe o bom e o mau. Porém, há que ter em conta que um tesouro escondido, por não ser facilmente acessível, não se impõe por si e, porque há muitas coisas cuja luminosidade as torna atraentes e apetecíveis, é preciso compreender e anotar que o valor último que valida todos os outros valores é o Reino de Deus e os seus segredos, que se torna imperativo desvendar.
Pode o Evangelho das parábolas do Reino confirmar como foi certeiro o pedido de Salomão a Deus, não de coisas ou de vitórias bélicas, mas de um coração sensível, sensato e inteligente, capaz de escutar Deus e de se sintonizar totalmente com a bondade da Palavra de Deus, muito mais valiosa do que todo o ouro que há no mundo; um coração com discernimento, capaz de distinguir (diakrínein) entre o bem e o mal (vd 1Rs 3,5.7-12 – 1.ª leitura).
E, no trecho da Carta aos Romanos (Rm 8,28-30), assumido como 2.ª leitura, Paulo conta-nos a verdadeira história que o amor de Deus fez acontecer na nossa vida: fomos chamados, conhecidos, predestinados, justificados e glorificados. E, por isso, damos graças a Deus.
Não se trata, porém, duma predestinação no sentido de que a salvação que Deus oferece seja apenas para um grupo de predestinados, que Deus escolheu de entre os homens de acordo com critérios que nos escapam. A teologia paulina é clara a este respeito: o projeto salvador de Deus está aberto a todos aqueles que querem acolhê-Lo. O que Paulo sublinha aqui é que se trata de um dom gratuito de Deus e que esse dom está previsto desde toda a eternidade.
Nem se trata de predestinação individual, como alguns têm interpretado, mas do plano de Deus, o mesmo ontem, hoje e amanhã, que envolve e afeta todos os muitos irmãos, reunidos e conformados à imagem do seu Filho, “primogénito de toda a criatura” (Cl 1,15) e “primogénito dos mortos” (Cl 1,18; Ap 1,5), envolvendo a nossa história inteira desde a Criação à Ressurreição.
A Jesus Cristo, pois, o Reino, o poder e a glória pelos séculos dos séculos!
2020.07.26 – Louro de Carvalho



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