O
final do Discurso das Parábolas do Reino (Mt 13,44-52), proclamado na liturgia do XVII domingo
do Tempo Comum no Ano A, oferece mais uma trilogia de parábolas: a do tesouro
escondido no campo (Mt 13,44), a da pérola (Mt 13,45-46) e a da rede (Mt 13,47-50).
O texto evangélico pode ser dividido em três partes, havendo
em cada uma aspetos e questões a relevar e ter em conta.
Na primeira parte, a parábola do tesouro e a da pérola
preciosa – parábolas bem pequeninas desenvolvem o mesmo tema e apresentam
ensinamentos semelhantes, sendo a principal questão a descoberta do valor e da
importância do Reino. Ambas as parábolas sugerem que o Reino (o mundo de paz, amor, fraternidade, serviço e reconciliação,
anunciado e oferecido por Jesus) é um tesouro precioso, que os seguidores de Jesus devem
abraçar acima de qualquer outro valor. Os cristãos são aqueles que encontraram
o Reino – algo de único, de fundamental, de decisivo. E, quando alguém encontra
um tesouro deste quilate, deve elegê-lo como a riqueza mais preciosa, pela qual
se renuncia a tudo o mais e pela qual se está disposto a pagar qualquer preço.
Estas
duas parábolas constituem dois fortíssimos acenos a deixar tudo, para, pela via
dum amor maior, seguir Jesus, que é a Autobasileía ou o Reino-de-Deus em Pessoa, no dizer
certeiro e contundente de Orígenes (185-254), retomado por Dom António Couto, Bispo de
Lamego (vd Jornal da Madeira, de hoje), para quem “a
tessitura da parábola do tesouro escondido no campo assenta no velho princípio
de que quem adquire um bem imóvel, adquire também os bens móveis a ele ligados”.
E, sendo Jesus “o tesouro escondido” ou “a pérola preciosíssima”, será preciso
deixar mesmo tudo para O seguir (cf Lc 14,33). E o eminente biblista adverte para a
necessidade de toda a atenção e empenho, visto que “o tesouro de Deus não se dá
em qualquer campo”, sendo necessários, por isso, “novos mapas, novas pautas,
novas coordenadas, novas estradas, para se poder procurar e saber encontrar
esse tesouro escondido” e sendo necessário submeter a nossa vida à rajada dos
verbos “Vai, vende, dá, vem e segue-me!” (Mt 19,21).
Provavelmente, Mateus quer sugerir aos cristãos a quem
destina o seu Evangelho (adormecidos numa fé
morna) que é preciso redescobrir esse valor mais alto e optar decisivamente
por ele, pois, sendo o cristão confrontado pari
passu com muitos valores e opções, deve saber discernir qual é o valor mais
importante que dá sentido à sua vida – o Reino.
Na segunda parte, surge o Reino na imagem da rede que, lançada ao mar,
apanha diversos tipos de peixes. É um ensinamento semelhante ao da parábola do
trigo e do joio: o Reino não é um condomínio fechado, onde só há gente
escolhida e santa, mas a realidade onde o mal e o bem crescem simultaneamente
tentando o joio empecer o trigo e o trigo ganhar adultez por entre o joio que
lhe faz um ambiente hostil. Ora, Deus não tem pressa de condenar: porque não quer
a morte do pecador, dá ao homem tempo necessário e suficiente para amadurecer
as suas opções e para fazer as suas escolhas. E, ao invés do Evangelho de Tomé,
que narra a história dum pescador sábio que pesca vários peixes, ficando só com
o maior e lançando os outros ao mar – apresentando aí a parábola uma mensagem
na linha das parábolas do tesouro e da pérola – a referência que Mateus,
mais uma vez, faz ao juízo final é a forma de exortar os irmãos no sentido de
escolherem decididamente o Reino e porem em prática os ensinamentos de Jesus.
Dom
António Couto chama a atenção para o facto de esta parábola ser a que ocupa
mais espaço no texto que as anteriores juntas: 4 versículos apenas. E refere
que, servindo-se duma imagem tirada do mundo piscatório, Jesus diz que o Reino
dos Céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de
peixes. Naturalmente que os pescadores sentar-se-ão na praia para fazer a
destrinça entre os bons e os que não prestam, guardando os bons e deitando fora
os outros. E a explicação vem logo e por semelhança: “Assim será no fim do mundo: os anjos sairão a separar os
maus do meio dos justos e a lançá-los na fornalha ardente”.
Porém,
o prelado lamecense avisa que a destrinça entre peixes bons e maus não se pauta
pela qualidade ou pelo tamanho. Trata-se da distinção entre puro o impuro, o
considerado kasher e não-kasher. Segundo o Levítico, são puros e podem-se comer
os peixes com barbatanas e escamas (Lv 11,9), tendo de se deitar fora, como impuros, os
peixes sem barbatanas e sem escamas (Lv 11,10-12). E diz Dom António que tal
meticulosidade advém do facto de o Mar da Galileia ser muito abundante em peixe
e reunir uma fauna piscícola muito variada e, em alguns casos, original,
salientando-se, o ‘peixe de S. Pedro’ (chromis Simonis), que tem uma cavidade oral onde conserva os
ovos, e, depois as crias, e onde, por vezes, também recolhe pequenos seixos e
objetos metálicos, o que explica o episódio da moeda referido em Mateus 17,27.
E, como na parábola do trigo e do joio, também aqui Jesus alude ao fim do mundo
para afirmar que a destrinça entre maus e justos será efetuada, não por nós,
mas pelos Anjos, sendo que a distinção entre puros e impuros do Levítico fica
ultrapassada pelos critérios neotestamentários.
É
de assinalar que a secção das sete parábolas acerca do Reino fecha com a
pergunta formulada por Jesus aos discípulos: “Compreendeis todas estas coisas?”, ao que eles respondem: “Sim!”.
Quer
dizer que, para os discípulos, que desejavam a explicação das parábolas, a
explicação resultou a ponto de eles irem dispensando a explicação, passando a
compreendê-las.
Estamos na
terceira parte do texto evangélico, iniciada com
o diálogo da compreensão. Ora, compreender, na teologia mateana, significa
prestar atenção ao ensinamento e comprometer-se com ele, o que significa que os
cristãos são convidados a descobrir a realidade do Reino, a entender as suas
exigências, a comprometerem-se com os seus valores.
A seguir, Jesus apresenta um discurso parabólico, uma espécie de oitava
parábola: “Todo o escriba feito discípulo
do Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que tira do seu tesouro
coisas novas e coisas velhas” (Mt 13,52). E Dom António Couto sublinha “a imensa
sabedoria e alegria do discípulo que deve ser como um pai, que dispõe na sua
imensa despensa de produtos excelentes, novos, como o pão fresco, antigos, como
o vinho velho”, ao passo que o escriba veterotestamentário só “transmitia as
coisas antigas que vinham na torrente da tradição”. E na palavra de Cristo,
inclusiva, está a novidade da Nova Aliança, manancial de vida. é preciso que o
escriba se torne discípulo do Reino para ter a autoridade de Cristo.
De facto, a referência ao
escriba que “tira do seu tesouro coisas novas e velhas” evoca os judeus,
conhecedores profundos do Antigo Testamento (o
“velho”), tal como tantos que hoje a eles se assemelham, convidados agora a
refletirem as velhas promessas, ou as tradições ancestrais, à luz das propostas
de Jesus (o “novo”). É nessa dialética, exigente e questionante, que o
verdadeiro discípulo encontra o caminho para o Reino e, depois de encontrar o
caminho, tem de se comprometer com ele, decisiva, exigente, empenhadamente.
***
Não
restam dúvidas de que, ao contar as sete parábolas do Reino, Jesus Se conta a Si
mesmo. É Ele a verdadeira parábola que surge à nossa frente. “Pequenino como
semente, escondido como crescente, cai à terra ou na farinha – diz Dom António
– e morre para reviver e dar vivificar; oculto como o tesouro ou a pérola, que
é preciso procurar apostando tudo, o Reino dos Céus é ainda como o campo em que
cresce ao mesmo tempo o bom e o mau, ou a rede que recolhe o bom e o mau.
Porém, há que ter em conta que um tesouro escondido, por não ser facilmente
acessível, não se impõe por si e, porque há muitas coisas cuja luminosidade as
torna atraentes e apetecíveis, é preciso compreender e anotar que o valor
último que valida todos os outros valores é o Reino de Deus e os seus segredos,
que se torna imperativo desvendar.
Pode
o Evangelho das parábolas do Reino confirmar como foi certeiro o pedido de
Salomão a Deus, não de coisas ou de vitórias bélicas, mas de um coração sensível,
sensato e inteligente, capaz de escutar Deus e de se sintonizar totalmente com
a bondade da Palavra de Deus, muito mais valiosa do que todo o ouro que há no
mundo; um coração com discernimento, capaz de distinguir (diakrínein) entre o bem e o mal (vd 1Rs 3,5.7-12 – 1.ª
leitura).
E,
no trecho da Carta aos Romanos (Rm 8,28-30), assumido como 2.ª leitura, Paulo conta-nos a verdadeira história
que o amor de Deus fez acontecer na nossa vida: fomos chamados, conhecidos,
predestinados, justificados e glorificados. E, por isso, damos graças a Deus.
Não
se trata, porém, duma predestinação no sentido de que a salvação que Deus
oferece seja apenas para um grupo de predestinados, que Deus escolheu de entre
os homens de acordo com critérios que nos escapam. A teologia paulina é clara a
este respeito: o projeto salvador de Deus está aberto a todos aqueles que
querem acolhê-Lo. O que Paulo sublinha aqui é que se trata de um dom gratuito
de Deus e que esse dom está previsto desde toda a eternidade.
Nem
se trata de predestinação individual, como alguns têm interpretado, mas do
plano de Deus, o mesmo ontem, hoje e amanhã, que envolve e afeta todos os
muitos irmãos, reunidos e conformados à imagem do seu Filho, “primogénito de
toda a criatura” (Cl 1,15) e “primogénito dos mortos” (Cl 1,18; Ap 1,5), envolvendo a nossa história inteira
desde a Criação à Ressurreição.
A
Jesus Cristo, pois, o Reino, o poder e a glória pelos séculos dos séculos!
2020.07.26 –
Louro de Carvalho
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