Nos últimos
dias, ocorreram diversos atos de vandalismo em diferentes cidades contra
monumentos (nomeadamente estátuas) de
personagens como Cristóvão Colombo e São Junípero Serra (em
catalão Fra Juníper Serra), cuja memória litúrgica se celebra no dia 1 de julho.
Contra as
diversas e falsas acusações de racismo a São Junípero, são de lembrar as
palavras do Papa na homilia da canonização do Pai da Califórnia a 23 de
setembro de 2015, em Washington DC. Na Missa multitudinária, o Santo Padre
disse, citando o Documento de Aparecida, 360:
“Hoje encontramo-nos aqui, podemos
encontrar-nos aqui, porque houve muitos que tiveram a coragem de responder a
esta chamada; muitos que acreditaram que
na doação a vida se fortalece, e se enfraquece no comodismo e no isolamento”.
Parafraseando
o documento programático do seu pontificado, garantiu:
“Somos filhos da ousadia missionária de
muitos que preferiram não se fechar ‘nas estruturas que nos dão uma falsa proteção
(...), nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma
multidão faminta’ (Exort. ap. Evangelii gaudium, 49). Somos
devedores duma Tradição, duma cadeia de testemunhas que tornaram possível que a
Boa Nova do Evangelho continue a ser, de geração em geração, Nova e Boa.”.
E, do Padre
Junípero Serra, uma daquelas testemunhas que souberam testemunhar naquelas
terras a alegria do Evangelho, disse:
“Soube viver aquilo que é a Igreja em saída,
esta Igreja que sabe sair e ir pelas estradas, para partilhar a ternura
reconciliadora de Deus. Soube deixar a sua terra, os seus costumes, teve a
coragem de abrir sendas, soube ir ao encontro de muitos aprendendo a respeitar
os seus costumes e as suas caraterísticas.”.
Sobre a sua
filosofia de vida, o Pontífice observou:
“Aprendeu a gerar e acompanhar a vida de
Deus nos rostos daqueles que encontrava, tornando-os seus irmãos. Junípero
procurou defender a dignidade da comunidade nativa, protegendo-a de todos
aqueles que abusaram dela; abusos que hoje continuam a encher-nos de pesar,
especialmente pela dor que provocam na vida de tantas pessoas. Escolheu um lema
que inspirou os seus passos e plasmou a sua vida: ‘Sempre avante’. Soube-o
dizer, mas sobretudo viver. Esta foi a maneira que Junípero encontrou para
viver a alegria do Evangelho, para que não se anestesiasse o seu coração. Foi
sempre avante, porque o Senhor espera; sempre avante, porque o irmão espera;
sempre avante por tudo aquilo que ainda tinha para viver; foi sempre avante.”.
Nele viu São João Paulo II “um brilhante exemplo de unidade cristã e
espírito missionário”, pois “o seu grande objetivo era levar o Evangelho aos
povos indígenas da América, para que eles também pudessem ser consagrados na verdade”, como referiu na
homilia da Missa da beatificação. Na verdade, com a sua ação missionária,
“as sementes da fé cristã foram espalhadas no meio das tumultuosas mudanças
provocadas pela chegada dos colonizadores, em que emergia “um campo de
compromisso missionário a exigir paciência, perseverança e humildade, além de
previsão e coragem”. Confiante no poder divino da mensagem anunciada, “o
padre Serra levou os povos nativos a Cristo” procurando “promover o seu
autêntico desenvolvimento humano com base na sua nova fé nas pessoas criadas e
redimidas por Deus”, fugindo à exploração e opressão dos “pobres e fracos”.
E o Papa Woijtyla, firmado no exemplo do Santo, que “inspira
particularmente os muitos Grupos de Estufas em todo o mundo, cujos membros
realizam um louvável trabalho em animação vocacional”, disse:
“O padre Junípero Serra, modelo
exemplar de evangelizador cheio de autossacrifício, é uma glória para a grande
família franciscana e para Maiorca, sua terra natal, que o venera e o considera
um filho ilustre. A devoção filial à Virgem Mãe de Deus, na
espiritualidade franciscana própria deste maiorquino universal, é força para
aumentar a vida cristã do povo fiel.”.
***
Por seu
turno, Dom José Gomez, Arcebispo de Los Angeles e primeiro prelado de origem
mexicana a presidir à Conferência dos Bispos Católicos dos Estados
Unidos, respondeu às acusações contra São Junípero numa carta pastoral em que
evidenciou que “o verdadeiro São Junípero lutou contra um sistema colonial em
que os nativos eram olhados como ‘bárbaros’ e ‘selvagens’ e cujo único valor
era estar ao serviço dos apetites do homem branco”. Para o Santo, “essa
ideologia colonial era uma blasfémia contra o Deus que criou (todos os
homens e mulheres) e os
redimiu com o sangue precioso de seu Filho”.
Segundo o Arcebispo,
Junípero Serra “viveu e trabalhou junto com os povos nativos e passou toda a
sua carreira a defender a humanidade deles e protestando contra os crimes e
indignidades cometidos contra eles”. Na verdade, “entre as injustiças que
enfrentou na sua luta, encontramos nas suas cartas passagens comoventes, em que
denuncia o abuso sexual diário de mulheres indígenas por soldados coloniais”.
Em 1773, São
Junípero Serra escreveu para Antonio María de Bucareli e Ursúa, então vice-rei
da Nova Espanha a “Representação sobre a
conquista temporal e espiritual da Alta Califórnia”, considerada a primeira
declaração de direitos indígenas na América do Norte.
***
Este frade franciscano maiorquino fundou a
cadeia de missões na Alta Califórnia, parte da província de Las
Californias, na Nova Espanha, atual Califórnia (Estados
Unidos). Entre as missões fundadas, encontram-se
os núcleos que deram origem a Los Angeles, San Francisco e San Diego. Foi beatificado
por São João Paulo II em 25 de setembro de 1988 e canonizado por
Francisco a 23 de setembro de 2015, no âmbito da viagem apostólica a Cuba
e Estados Unidos.
Nascido
em Petra (ilha de Maiorca) a 24 de
novembro de 1713, sendo seus pais Antoni Serra Ferrer e Margarita, foi-lhe
colocado no batismo o nome de Josep Miquel. Tendo vindo ao mundo na humilde
casa duma família de agricultores modestos, honestos, devotos e exemplares, os
pais, embora analfabetos, educaram-no nos caminhos da fé católica e do amor de
Deus, enquanto ele crescia e dava os primeiros passos pelas ruas da aldeia (foi
crismado aos 2 anos de idade pelo Bispo Atanasio Esterripa). E, tentando dar aos filhos uma educação melhor,
levaram-no para a escola no convento franciscano de San Bernardino, onde
aprendeu as primeiras letras e fez grande progresso na formação. Depois, foi
para Palma de Maiorca para prosseguir o ensino superior. Começou, aos 15 anos de
idade, a frequentar aulas de filosofia no convento de San Francisco
de Palma e, sentindo a vocação religiosa, tomou o
hábito franciscano aos 17 anos, no convento de Jesus, fora das
muralhas da cidade. A 15 de setembro de 1731, emitiu os votos sob o nome de
José Miguel Junípero (homenagem a São Junípero, um dos primeiros companheiros de São Francisco).
Cursou os
estudos eclesiásticos de forma brilhante e passou a dar aulas de filosofia no
convento de San Francisco, em cátedra atribuída unanimemente por todos os
examinadores. O seu ensino ali durou de 1740-1743 e, no último ano, ensinou
teologia no famoso Scotus Luliana, na
Universidade de Palma de Maiorca.
Em 13 de
abril de 1749, juntamente com 20 missionários franciscanos, partiu para o
Vice-Reino da Nova Espanha (México). O grupo
chega a San Juan de Porto Rico a 18 de outubro e a Vera Cruz a 7 de
dezembro. Enquanto os companheiros continuaram viagem para a Cidade do
México em dorso de mula, Frei Junípero e um companheiro (Frei Francisco Palòu) decidiram fazer a viagem a pé. Após a viagem, ficou com uma perna ferida da
qual sofreria até falecer.
O primeiro
destino de Frei Junípero foi Santiago Xalpan (Jalpan) em Sierra Gorda, em Queretaro, onde
permaneceu 9 anos a converter os nativos pames na área, enquanto lhes
ensinava o trabalho agropecuário, bem como fiação e tecelagem e fez um
catecismo na língua deles. O próximo destino deveria ter sido o território
inóspito dos Apache. Porém, a morte do vice-rei suspendeu a saída do grupo
missionário àquelas terras e o frade teve de esperar vários anos na Cidade
do México antes de receber o seu próximo destino missionário.
Em 1767, Carlos
III mandou expulsar da Nova Espanha todos os jesuítas que
ali estavam, o que ordem afetou os missionários jesuítas que assistiam os indígenas
e europeus de las Californias, que foram substituídos, em junho, por 16 franciscanos liderados
por padre Junípero. A delegação deixou a cidade do México em 14 de julho
de 1767, zarpando do porto de San Blas para a península da Baixa
Califórnia, e, após curta e extenuante viagem, chegou a Loreto, sede
da Missão de Nossa Senhora do Loreto,
a mãe das missões da Alta e da Baixa Califórnia.
Chegou a
delegação à península para explorar a Alta Califórnia e levar a luz
do Evangelho à população indígena que, ao invés da do centro do México desconhecia
a agricultura, salvo em algumas zonas do deserto, a alimentação cingia-se à
recolha de frutos silvestres e raízes, bolotas, caça de cervos, alces e
coelhos, e à pesca. Não costumavam usar roupas adequadas para se aquecerem e
cobriam o corpo com peles de veado, penas, casacos de peles de lontra e
lama.
Em 1768, saiu
a expedição por mar àquelas terras. O navio San Carlos levava vacas, porcos e
cavalos. Começara a saga de Frei Junípero e companheiros. A primeira fundação
espanhola no Norte da Califórnia foi a Missão de São Diego de
Alcalá em 1769, mas Frei Junípero veio um pouco mais tarde, quando a Terra
estava viajando com a expedição.
Desde a
fundação de San Diego, no decurso de 15 missões foram fundadas mais 9 comunidades
impulsionadas pelo missionário Serra. Ele e os colegas prosseguiram o curso de
ação estabelecido, durante a estada na Sierra Gorda. Quando chegaram a um
lugar conveniente, ergueram uma capela, cabanas de residência para os monges e
um pequeno forte como proteção contra possíveis ataques. Acolhiam os ameríndios
que se aproximavam por curiosidade e, quando ganhavam a sua confiança,
convidavam-nos a instalarem-se nas vizinhanças da missão.
Os
missionários, enquanto catequizavam os índios, ensinavam-lhes noções de
agricultura, pecuária e alvenaria, como lidar com sementes e animais, e
aconselhavam-nos a trabalhar a terra. Alguns aprenderam técnicas de
serralharia, carpintaria ou alvenaria. As mulheres eram ensinadas a cozinhar,
costurar e tecer. A mudança de vida também afetou a cultura indígena e a
religião, o que conduziu ao sincretismo que perdura até hoje.
Com a morte
de Frei Junípero na Missão de São Carlos Borromeu (atual Monterrey,
Califórnia), a 28 de
agosto de 1784, foram estabelecidas 9 missões – entre as quais Los Angeles, San
Francisco, San Diego e Sacramento – que eventualmente cresceram para se
tornarem grandes cidades.
***
Não
precisamos, em São Junípero Serra, de nos acautelar à quanto à necessidade de
não avaliar as atitudes das pessoas da Igreja nos séculos passados pelos
critérios de hoje. Ele já minava as bases do colonialismo, a opressão e
exploração e lutava pela promoção do ser humano, se calhar, bem mais do que
muitos fazem hoje.
2020.07.01 –
Louro de Carvalho
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