domingo, 5 de julho de 2020

Evangelicamente os pequeninos levam vantagem sobre os grandes


Depois do “discurso missionário” e do envio dos discípulos para a obra de Jesus (vd Mt 9,36-11,1), Mateus cria uma secção sobre as reações e as atitudes que as várias pessoas e grupos assumem face a Jesus e ao Reino (vd Mt 11,2-12,50). E, tendo o Mestre dirigido uma contundente crítica aos habitantes (cheios de si próprios, instalados nas certezas e preconceitos) dalgumas cidades situadas à volta do lago de Tiberíades pela sua indiferença à proposta de salvação trazida pelo Messias, o evangelista “transcreve” a oração de ação de graças de Jesus ao Pai e o fundamentado convite a que vamos ter com Jesus, que nos aliviará dos nossos cansaços e abatimentos (Mt 11,25-30) – peça tomada para a Liturgia da Palavra deste XIV domingo do Tempo Comum no Ano A.
Jesus está convicto de que a salvação recusada pelos grandes e inteligentes será acolhida pelos simples e pequeninos, os nêpioi (em grego), os que não podem falar. Frederico Lourenço acentua que a palavra se forma de épos (“palavra”, donde vem “épico” e “epopeia”) e do prefixo negativo -, sendo a lógica subjacente à formação desta palavra análoga à da formação da latina infans (“infante”), traduzível por criança, pois as crianças não têm o direito de falar oficialmente em sua representação, mas têm de ser representadas pelos adultos. Por extensão, a palavra abrange todos os coibidos de falar (os sem vez e sem voz), não apenas as crianças, mas os desprivilegiados, os pobres, os mendigos, os doentes, os explorados, os escravos… E o prelado lamecense frisa que em sonoridade portuguesa daria ‘népias’, nada, nenhuma ciência, poder ou valor autónomo.
A perícopa em referência conta de três elementos, sendo que dois aparecem também em Lucas (cf Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). Porém, o terceiro (Mt 11,28-30) é exclusivo de Mateus.
O primeiro é oração de louvor, bendição e ação de graças de Jesus ao Pai por ter escondido “estas coisas” aos “sábios e inteligentes” e as ter revelado aos “pequeninos”. Em certo sentido, os “sábios e inteligentes” são os fariseus” e doutores, que absolutizavam a Lei, se tinham por justos e dignos de salvação, ao passo que os “pequeninos” são os discípulos, os primeiros a responder positivamente à oferta do Reino, bem como os pobres e marginalizados (doentes, publicanos, mulheres de má vida, o povo da terra) considerados malditos pela Lei e que Jesus encontrava todos os dias, mas que O acolhiam com alegria e entusiasmo.
O segundo, conexo com o anterior, explicita o que foi escondido aos “sábios e inteligentes” e revelado aos “pequeninos”: a experiência profunda e íntima de Deus. Os fariseus e doutores pensavam que o conhecimento da Lei lhes dava o conhecimento de Deus. Porém, o Mestre esclarece que todo aquele que pretender a experiência profunda e íntima de Deus tem de aceitar Jesus e segui-Lo, pois Ele é o Filho e só Ele tem a experiência profunda de intimidade e de comunhão com o Pai. Assim, quem recusar Jesus não poderá conhecer Deus.
E o terceiro é o convite a ir ao encontro de Jesus e a aceitar a sua proposta: “Vinde até Mim todos vós que estais esgotados e carregados (kopiôntes kaì pephortisménoi) e eu dar-vos-ei descanso(em grego, anapausô hymâs: dar-vos-ei uma pausa, recobro, descanso); “tomai para vós o meu jugo (zygós) e aprendei (máthete) comigo, que sou gentil e humilde de coração (praús kaì tapeinòs têi kardíai)…”. O jugo aplicado à Lei de Deus, suprema norma de vida, realmente era um jugo muito pesado pela impossibilidade de cumprir, no quotidiano, os 613 mandamentos da Lei (escrita e oral). Ora, Jesus veio libertar o homem da escravidão da Lei. Assim, o anúncio da libertação dirige-se aos doentes (na ótica da teologia oficial, vítimas de castigo de Deus), aos pecadores (publicanos, meretrizes, todos os que tinham publicamente incorretos comportamentos política, social ou religiosamente), ao povo simples (que, na dureza da vida, não podia cumprir todos os ritos), a todos os que a Lei excluía. Jesus garante que Deus não os exclui nem amaldiçoa e insta a integrar o mundo do Reino, espaço da alegria e da felicidade que a Lei não lhes daria. O seu jugo é, pois, brando (krêstos). F. Lourenço assegura que o sentido de khrêstós está documentado em Menandro (Monósticos 556): “Como é agradável para um escravo encontrar um amo brando! (hôs hêdù doúlôi despótou krêstoû tukheîn). E Cristo é portador duma gentileza amistosa, alheia à violência sobre as pessoas e cultora da humildade inteiro. O étimo indo-europeu do adjetivo práos liga-o ao sânscrito e à antiga palavra germânica para “amor” (frijon, em gótico), de que deriva a alemã para “amigo” (Freund) e a inglesa (friend).
Não se pense, todavia, que o Reino é reservado a uma classe determinada (os pobres, os débeis, os marginalizados) com outra (os ricos, os poderosos…). Destina-se, antes, a todos os homens e mulheres. Não obstante, à partida, os pobres e débeis, que desesperaram do socorro humano, são quem tem o coração mais disponível para acolher Jesus. Os outros terão de abdicar do enchimento de si próprios, dos seus interesses, esquemas e preconceitos, para aceitarem a novidade de Deus, ou seja, terão de conseguir um coração de pobre, de simples, de pequeninos.
Este é, no dizer de Dom António Couto, “o segredo mais inteiro de Jesus”, havendo quem considere, como A. M. Hunter, “estas breves linhas como o mais belo e importante dizer de Jesus nos Evangelhos Sinóticos”. De facto, segundo o Bispo de Lamego, elas “guardam o segredo mais inteiro de Jesus, o seu tesouro mais profundo, o tesouro ou a pedra preciosa da parábola (Mt 13,44-46), preciosa e firme, porque leve e suave como uma almofada, onde Jesus pode reclinar tranquilamente a cabeça” (Jo 1,18), e “conduzir, dormindo mansamente à popa, a nossa barca no meio deste mar encapelado” (Mc 4,38). Segundo Jesus, o Pai é o “lugar seguro e manso, doce e aprazível, que acolhe os pequeninos (nêpioi), os senta sobre os seus joelhos, lhes conta a sua mais bela história, e lhes afaga o rosto com ternura” (vd Jornal da Madeira, de hoje).  
De verdade é sobre os pequeninos que recai toda a atenção de Jesus, que voluntariamente Se confunde com eles, ao dizer: “Todas as vezes que fizestes isto(ou o deixastes de fazer)a um destes meus irmãos, os mais pequeninos(henì toútôn tôn adelphôn mou tôn elachístôn), foi a Mim que o fizestes (ou o deixastes de fazer) (cf Mt 25,40.45). E, no ritual do Batismo, as palavras que ilustram a entrega da vela acesa aos pais e padrinhos da criança são: “A vós, pais e padrinhos, se confia o encargo de velar por esta luz, para que estes pequeninos, iluminados por Cristo…”.
Os pequeninos dependem dos pais ou de alguém que deles cuide carinhosamente. E, se Jesus os traz para a primeira página, é de perguntar o que serão os cristãos adultos, maduros na fé. Ora, cristãos adultos na fé são os que têm consciência de que precisam de Deus a todo o momento e sabem debruçar-se sobre os pequeninos com amor. Somo-lo nós que, despidos da posse das chaves de tudo e de todos, tratamos Deus por Pai, Abba, em quem depositamos toda a confiança filial, e carinhosamente atentos uns aos outros estamos na onda de quem já não consegue viver sem repartir o pão e o afeto. Somo-lo nós, que, uma vez comprometidos com Cristo pelo Batismo, vivemos “segundo o Espírito” e exultamos de alegria no Senhor.
Em suma, se queremos arrebatar o Reino e conhecer os seus mistérios, temos de nos fazer pequeninos, pois deles é o Reino dos Céus, e viver na alegria de filhos movidos na fraternidade.
2020.07.05 – Louro de Carvalho

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