Depois do “discurso missionário” e do envio dos discípulos para
a obra de Jesus (vd Mt
9,36-11,1), Mateus cria
uma secção sobre as reações e as atitudes que as várias pessoas e grupos assumem
face a Jesus e ao Reino (vd
Mt 11,2-12,50). E, tendo
o Mestre dirigido uma contundente crítica aos habitantes (cheios de si próprios, instalados nas
certezas e preconceitos)
dalgumas cidades situadas à volta do lago de Tiberíades pela sua indiferença à
proposta de salvação trazida pelo Messias, o evangelista “transcreve” a oração de
ação de graças de Jesus ao Pai e o fundamentado convite a que vamos ter com
Jesus, que nos aliviará dos nossos cansaços e abatimentos (Mt 11,25-30) – peça tomada para a Liturgia da
Palavra deste XIV domingo do Tempo Comum no Ano A.
Jesus está convicto de que a salvação recusada pelos grandes e
inteligentes será acolhida pelos simples e pequeninos, os nêpioi (em
grego), os que não podem
falar. Frederico Lourenço acentua que a palavra se forma de épos (“palavra”, donde vem “épico” e “epopeia”) e do prefixo negativo nê-, sendo a lógica subjacente à formação
desta palavra análoga à da formação da latina infans (“infante”), traduzível por criança, pois as
crianças não têm o direito de falar oficialmente em sua representação, mas têm
de ser representadas pelos adultos. Por extensão, a palavra abrange todos os
coibidos de falar (os sem
vez e sem voz), não
apenas as crianças, mas os desprivilegiados, os pobres, os mendigos, os
doentes, os explorados, os escravos… E o prelado lamecense frisa que em sonoridade portuguesa daria ‘népias’, nada, nenhuma ciência, poder ou
valor autónomo.
A perícopa em referência conta de três elementos, sendo que
dois aparecem também em Lucas (cf Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). Porém, o terceiro (Mt 11,28-30) é exclusivo de Mateus.
O primeiro é oração de louvor, bendição e ação de graças de Jesus
ao Pai por ter escondido “estas coisas” aos “sábios e inteligentes” e as ter
revelado aos “pequeninos”. Em certo sentido, os “sábios e inteligentes” são os
fariseus” e doutores, que absolutizavam a Lei, se tinham por justos e dignos de
salvação, ao passo que os “pequeninos” são os discípulos, os primeiros a responder
positivamente à oferta do Reino, bem como os pobres e marginalizados (doentes, publicanos, mulheres de má
vida, o povo da terra) considerados
malditos pela Lei e que Jesus encontrava todos os dias, mas que O acolhiam com
alegria e entusiasmo.
O segundo, conexo com o anterior, explicita o que foi
escondido aos “sábios e inteligentes” e revelado aos “pequeninos”: a
experiência profunda e íntima de Deus. Os fariseus e doutores pensavam que o
conhecimento da Lei lhes dava o conhecimento de Deus. Porém, o Mestre esclarece
que todo aquele que pretender a experiência profunda e íntima de Deus tem de
aceitar Jesus e segui-Lo, pois Ele é o Filho e só Ele tem a experiência
profunda de intimidade e de comunhão com o Pai. Assim, quem recusar Jesus não
poderá conhecer Deus.
E o terceiro é o convite a ir ao encontro de Jesus e a
aceitar a sua proposta: “Vinde até Mim
todos vós que estais esgotados e carregados (kopiôntes
kaì pephortisménoi) e eu dar-vos-ei descanso” (em grego, anapausô hymâs: dar-vos-ei
uma pausa, recobro, descanso); “tomai para vós o meu
jugo (zygós) e aprendei (máthete) comigo,
que sou gentil e humilde de coração (praús kaì tapeinòs têi kardíai)…”.
O jugo aplicado à Lei de Deus, suprema norma de vida, realmente era um jugo muito
pesado pela impossibilidade de cumprir, no quotidiano, os 613 mandamentos da
Lei (escrita e oral). Ora, Jesus veio libertar o homem da
escravidão da Lei. Assim, o anúncio da libertação dirige-se aos doentes (na ótica da teologia oficial, vítimas
de castigo de Deus), aos
pecadores (publicanos, meretrizes,
todos os que tinham publicamente incorretos comportamentos política, social ou
religiosamente), ao povo
simples (que, na dureza
da vida, não podia cumprir todos os ritos), a todos os que a Lei excluía. Jesus garante que Deus não os
exclui nem amaldiçoa e insta a integrar o mundo do Reino, espaço da alegria e
da felicidade que a Lei não lhes daria. O seu jugo é, pois, brando (krêstos). F. Lourenço assegura que o sentido
de khrêstós está documentado em Menandro (Monósticos
556): “Como é agradável para um escravo encontrar
um amo brando!” (hôs hêdù doúlôi despótou krêstoû tukheîn). E Cristo é portador duma gentileza
amistosa, alheia à violência sobre as pessoas e cultora da humildade inteiro. O
étimo indo-europeu do adjetivo práos liga-o
ao sânscrito e à antiga palavra germânica para “amor” (frijon,
em gótico), de que deriva a alemã para “amigo” (Freund) e a inglesa (friend).
Não se pense, todavia, que o Reino é reservado a uma classe
determinada (os pobres,
os débeis, os marginalizados) com outra (os
ricos, os poderosos…). Destina-se,
antes, a todos os homens e mulheres. Não obstante, à partida, os pobres e
débeis, que desesperaram do socorro humano, são quem tem o coração mais
disponível para acolher Jesus. Os outros terão de abdicar do enchimento de si
próprios, dos seus interesses, esquemas e preconceitos, para aceitarem a novidade
de Deus, ou seja, terão de conseguir um coração de pobre, de simples, de
pequeninos.
Este é, no dizer de Dom António Couto, “o segredo mais inteiro de Jesus”, havendo quem considere,
como A. M. Hunter, “estas breves linhas como o mais belo e importante dizer de
Jesus nos Evangelhos Sinóticos”. De facto, segundo o Bispo de Lamego, elas “guardam
o segredo mais inteiro de Jesus, o seu tesouro mais profundo, o tesouro ou a pedra
preciosa da parábola (Mt 13,44-46), preciosa e firme, porque leve e suave como
uma almofada, onde Jesus pode reclinar tranquilamente a cabeça” (Jo 1,18), e “conduzir, dormindo
mansamente à popa, a nossa barca no meio deste mar encapelado” (Mc 4,38). Segundo Jesus, o Pai é
o “lugar seguro e manso, doce e aprazível, que acolhe os pequeninos (nêpioi), os senta sobre os
seus joelhos, lhes conta a sua mais bela história, e lhes afaga o rosto com
ternura” (vd
Jornal da Madeira, de hoje).
De
verdade é sobre os pequeninos que recai toda a atenção de Jesus, que voluntariamente
Se confunde com eles, ao dizer: “Todas as
vezes que fizestes isto” (ou o deixastes de fazer) “a
um destes meus irmãos, os mais pequeninos” (henì
toútôn tôn adelphôn mou tôn elachístôn), foi a
Mim que o fizestes (ou o deixastes de fazer) (cf Mt 25,40.45). E, no ritual do Batismo, as palavras que
ilustram a entrega da vela acesa aos pais e padrinhos da criança são: “A vós, pais e padrinhos, se confia o encargo
de velar por esta luz, para que estes pequeninos, iluminados por Cristo…”.
Os pequeninos dependem dos pais ou de alguém que deles cuide
carinhosamente. E, se Jesus os traz para a primeira página, é de perguntar o
que serão os cristãos adultos, maduros na fé. Ora, cristãos adultos na fé são os
que têm consciência de que precisam de Deus a todo o momento e sabem
debruçar-se sobre os pequeninos com amor. Somo-lo nós que, despidos da posse
das chaves de tudo e de todos, tratamos Deus por Pai, ‘Abba’, em quem depositamos
toda a confiança filial, e carinhosamente atentos uns aos outros estamos na
onda de quem já não consegue viver sem repartir o pão e o afeto. Somo-lo nós,
que, uma vez comprometidos com Cristo pelo Batismo, vivemos “segundo o
Espírito” e exultamos de alegria no Senhor.
Em suma, se queremos arrebatar o
Reino e conhecer os seus mistérios, temos de nos fazer pequeninos, pois deles é
o Reino dos Céus, e viver na alegria de filhos movidos na fraternidade.
2020.07.05 – Louro
de Carvalho
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