O presidente
turco Recep Tayyip Erdogan, em queda de popularidade pela crise económica, pela
guerra na Síria e pela questão dos curdos, fortemente discriminados no país,
procura um ponto de apoio no nacionalismo, a que gostaria que aderisse o islão,
maioritário na Turquia. E, para conseguir essa adesão, pretende reconverter em
mesquita a basílica de Santa Sofia, em Istambul, que está a servir de museu desde
1934, por decisão do Mustafá Kemal Atatürk, primeiro presidente turco e
fundador da Turquia moderna.
Assim, o
Conselho de Estado da República da Turquia (em turco:Türkiye
Cumhuriyeti Danıştay Başkanlığı e, abreviadamente, Danıştay), chamado a pronunciar-se sobre tal intenção
presidencial, em 2 de julho, parece deixar nas mãos do Presidente Erdoğan a
responsabilidade pela possível mudança do atual status quo, o que tornaria possível voltar a usar Santa Sofia como
uma mesquita, hipótese fortemente patrocinada por setores políticos hoje
dominantes na Turquia.
O status quo atual de Santa Sofia como
complexo museológico não destinado ao culto religioso corresponde plenamente ao
quadro jurídico atual, com base na decisão da década de 30 do século XX, com a
qual o governo turco da época transformou em museu a antiga basílica cristã, utilizada
como mesquita desde 1453, ano da queda de Constantinopla nas mãos dos Otomanos
e em que deixou o estatuto de templo cristão para que fora edificada entre 532
e 537 no quadro do império bizantino. Tal estado de coisas, de acordo com as
disposições governamentais do passado, pode legitimamente ser modificado por
decreto presidencial.
Segundo
informação de fontes locais à agência Fides,
a reunião do Conselho de Estado, que durou menos de meia hora, concluiu o
seguinte:
“Em sua breve sessão, os membros do Conselho
de Estado confirmaram a continuidade da validade de pronunciamentos anteriores
nos quais o mesmo órgão havia efetivamente rejeitado tentativas – como o
recurso interposto em 2004 pela chamada ‘União Turca de Monumentos Históricos’
– de abrir Santa Sofia a reuniões de oração muçulmanas”.
Ao mesmo tempo,
aquele órgão colegial (o tribunal de última instância para processos de
natureza administrativa) reconheceu
que a intervenção direta do Presidente turco sobre a controversa questão,
através de decreto presidencial ad hoc,
pode mudar a situação atual e legitimar a reutilização de Santa Sofia como
lugar de culto islâmico. Serão necessários vários dias para que a decisão do
Conselho de Estado e as suas motivações sejam publicadas.
Segundo
reconstruções relatadas pela predita agência da Congregação para a
Evangelização dos Povos, o presidente turco teria dado recentemente instruções
para alterar o estatuto do complexo monumental de Santa Sofia, de modo que este
volte a ser utilizado também como local de culto islâmico. Isto na sequência
das concentrações de milhares de pessoas no final de maio dos últimos anos, que
têm lotado a vasta praça externa ao complexo para celebrar o aniversário da
conquista otomana da cidade e pedir a sua reabertura como mesquita. E
esperava-se que o Conselho de Estado decifrasse se as pressões feitas pelos vários
setores políticos e sociais turcos, que nos últimos tempos parecem ter sido cada
vez mais ouvidos e apoiados pelo Presidente Erdoğan, serão no futuro próximo
bem-sucedidas, mas aquela instância suprema deixou a batata quente no Chefe de
Estado.
***
O caso
assume evidentes conotações geopolíticas. Assim, no dia 1 de julho, de acordo
com relatórios de numerosas agências internacionais, o Secretário de Estado norte-americano
Mike Pompeo terá pedido a Erdoğan que não transforme Santa Sofia numa mesquita,
para não comprometer o valor histórico do monumento.
Esta decisão
presidencial de tornar a fazer Santa Sofia um lugar exclusivo de oração
muçulmana traria tensões entre as religiões, desacreditaria o próprio islão,
abriria contendas com os países com forte presença ortodoxa, entre os quais os
vizinhos Grécia, Bulgária, Roménia, bem como com a Rússia. Por isso, a União
Europeia (UE) acompanha o caso com atenção inclusive em relação às
negociações – atualmente interrompidas – para a adesão de Ancara à UE. Com
efeito, a catedral bizantina, património mundial da UNESCO (Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), é considerada em Bruxelas como um símbolo da
história comum e do diálogo entre os povos e as religiões. E Eric Mamer, o
porta-voz da Comissão Europeia, o reiterou há dias, face à possibilidade de o
complexo monumental de Istambul, na Turquia, que data de 532 da era cristã,
poder ser reconvertido de museu para mesquita. Sublinhou Mamer:
“Santa Sofia é um símbolo do diálogo inter-religioso e intercultural, um
museu património mundial da UNESCO. Na sua forma atual, Santa Sofia é um monumento
global. A manutenção do seu status
atual, internacionalmente reconhecido, indica a tolerância e a abertura do
país.”.
***
No dia 30 de
junho, durante a homilia da divina liturgia dedicada aos Santos Apóstolos, no
bairro Feriköy, em Istambul o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu
I, o “Primus inter pares”, fez
ressaltar com veemência que a possível reconversão do complexo monumental de
Santa Sofia em Istambul em uma mesquita “impelirá milhões de cristãos no mundo
inteiro contra o islão”. Pela sua sacralidade, Santa Sofia é um centro de vida
“no qual Oriente e Ocidente se abraçam”, e a eventual reconversão em lugar de
culto islâmico “será causa de rutura entre esses dois mundos”, observou o
patriarca ecuménico. No Séc. XXI, vincou, é “absurdo e prejudicial que Santa
Sofia, de lugar que hoje permite aos dois povos encontrar-se e admirar a sua
grandeza, possa tornar-se novamente motivo de contraposição e confronto”.
Bartolomeu I
lançou o dramático apelo na iminência do pronunciamento do Conselho de Estado,
que na sessão agendada para 2 de julho, examinaria a possibilidade de reabrir Santa
Sofia ao culto islâmico, derrubando a decisão com a qual em 1934 o governo
turco converteu em museu a antiga basílica bizantina transformada em mesquita
após a conquista otomana de Constantinopla em 1453. E o hierarca repetiu com
veemência que Santa Sofia “não pertence só a quem a possui neste momento, mas a
toda a humanidade” e “o povo turco tem a grande responsabilidade e a honra de
fazer resplandecer a universalidade deste maravilhoso monumento”, visto que
Santa Sofia “como museu constitui o lugar-símbolo do encontro, do diálogo, da
solidariedade e da compreensão recíproca entre cristianismo e islão”.
Numa
declaração divulgada no dia 6 de julho, também o patriarca da Igreja ortodoxa
russa criticou a proposta de converter a preciosidade bizantina numa mesquita e
lembrou que a basílica é de grande importância para toda a ortodoxia e
particularmente cara à Igreja Russa, tendo também no passado inspirado
arquitetos russos em Kiev, Novgorod e Polotsk.
Para o
Patriarca de Moscou e de todas as Rússias, Kirill, a ameaça a Santa Sofia é uma
ameaça para toda a civilização cristã. Assim, Kirill manifesta profunda
preocupação “com o pedido de alguns políticos turcos para reconsiderar o status de museu da basílica
desconsagrada de Santa Sofia em Istambul, na Turquia, “um dos maiores
monumentos da cultura cristã”.
“Na história
das relações entre a Rússia e Constantinopla houve vários momentos, por vezes
muito difíceis”, lembra o patriarca Kirill. “Entretanto, com amargura e
indignação, o povo russo respondeu no passado e agora responde a qualquer
tentativa de degradar ou espezinhar a herança espiritual milenar da Igreja de
Constantinopla” – garantiu.
Segundo o
Patriarca, “é dever de todo o Estado civil manter o equilíbrio, reconciliar a
sociedade e não agravar a discórdia, unir as pessoas e não dividi-las”.
Kirill
acrescenta que “hoje as relações entre a Turquia e a Rússia estão a
desenvolver-se de modo dinâmico” e que se deve “levar em consideração que a
Rússia é um país onde a maioria da população professa a ortodoxia e que que
aquilo que poderia acontecer com Santa Sofia causaria grande dor ao povo
russo”.
E o
patriarca espera prudência por parte do governo turco e sustenta que “a
preservação do atual estado neutro de Santa Sofia, uma das maiores obras-primas
da cultura cristã e uma igreja simbólica para milhões de cristãos no mundo
inteiro, facilitará o desenvolvimento ulterior das relações entre os povos da
Rússia e da Turquia, fortalecendo a paz e a harmonia inter-religiosa”.
***
Como é que
pode um Estado, que candidatou uma bela peça arquitetónica a património mundial,
subtraí-la unilateralmente por decreto? E como pode destabilizar o equilíbrio
geopolítico pacificamente conseguido e consensualmente aceite? Os apelos
contê-lo-ão?
2020.07.10 – Louro de Carvalho
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