A
Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) publicou um “manual de instruções” para guiar, passo a passo, quem deve
fazer a averiguação da verdade – desde a notitia
de delicto (suspeita de crime) à res iudicata (conclusão
final) – quando um menor sofre abusos por
parte dum clérigo.
É uma resposta precisa e minuciosa às perguntas
mais recorrentes, plasmada num vade-mécum de instruções que, em pouco mais de
30 páginas e 9 capítulos, fornece 164 pontos de procedimento no tratamento destes
casos de abuso. Não configura, pois, um texto normativo, muito menos nova
legislação, mas é um instrumento de ajuda aos ordinários e agentes do direito
que têm a necessidade de traduzir em ações concretas a normativa canónica sobre
os delicta graviora (crimes mais graves) que representam “para toda a Igreja uma ferida profunda e dolorosa que
exige ser curada”. Solicitado no encontro dos presidentes das conferências episcopais
do mundo sobre a proteção dos menores na Igreja, realizado no Vaticano de 21 a
24 de fevereiro de 2019, o vade-mécum é publicado na versão denominada “1.0”
porque se prevê a sua atualização periódica baseada na modificação da normativa
vigente ou da prática da Congregação e, como diz o Prefeito, com a contribuição
das Igrejas do mundo. Com efeito, lê-se no texto, “só um conhecimento
aprofundado da Lei e seus propósitos poderá prestar o devido serviço
à verdade e à justiça, a ser procurado com atenção particular em
matéria de delicta graviora em razão das profundas feridas que
afligem a comunhão eclesial”.
O manual, que
responde a questões sobre a configuração do crime, a investigação preliminar, os
possíveis procedimentos penais, traz contínuas referências legais
aos códigos vigentes, ao Motu proprio Sacramentorum
Sanctitatis Tutela, de São João Paulo II (2001) e atualizado por Bento XVI em 2010, e ao mais recente Motu proprio Vos estis lux mundi, de Francisco (2019). E, nalguns
casos, afloram as diferenças entre o CCEO (Código dos Cânones para as Igrejas
Orientais) e o CIC (Código de
Direito Canónico para a Igreja Latina): por
exemplo, na condução dum processo penal extrajudicial (administrativo,
que reduz as formalidades processuais para acelerar a justiça, mas mantém
intactas as garantias), a Igreja
latina não prevê a presença dum Promotor de Justiça, enquanto para as Igrejas
orientais é obrigatória.
O vade-mécum,
que se deve ao trabalho de defrontação não só na CDF, mas também fora dela, com
especialistas na área, noutros Dicastérios e, em particular, na Secretaria de
Estado, acentua que
a primeira obrigação é a tutela da pessoa humana, pelo que se pede às autoridades
que se comprometam a tratar a suposta vítima e família “com dignidade e
respeito”, oferecendo-lhes “acolhimento, escuta e acompanhamento,
inclusive através de serviços específicos, bem como assistência espiritual,
médica e psicológica, de acordo com o caso específico”. De igual modo devem
proceder para com o suspeito. Depois, ressalta a importância de tutelar “a boa
reputação das pessoas envolvidas”, mesmo se, em caso de perigo para o bem
comum, se enfatiza que difundir notícias sobre a existência duma acusação não
representa a violação da boa reputação.
Depois, no âmbito
dos direitos
do acusado, o manual frisa que, mesmo se “a prática do crime é
evidente”, deve sempre assegurar-se ao acusado o exercício do direito de
defesa. E, a partir da receção a notícia dum possível crime, o acusado tem o
direito de pedir dispensa das obrigações conexas com o estado clerical (incluindo o
celibato) e dos eventuais votos religiosos,
pedido que deve ser apresentado por escrito ao Papa, através da CDF, e pode
recorrer contra um procedimento penal ou um procedimento administrativo, enquanto
a decisão papal é inapelável.
Um outro
aspeto que emerge do vade-mécum é a exigência de verificação escrupulosa e
cuidadosa de qualquer informação recebida por um ordinário sobre um presumível
caso de abuso. Mesmo não havendo denúncia formal ou tendo a notícia sido
difundida pelos meios de comunicação, incluindo as redes sociais, ou sendo anónima
a fonte (que não é automaticamente
descartável), é de avaliar
atentamente toda a informação recebida e aprofundá-la. Ressalva-se,
porém, que o sigilo sacramental permanece válido, devendo o confessor convencer
o penitente a dar, por outras vias, conhecimento do suposto abuso.
No atinente à
comunicação, o documento reitera a lembrança da obrigação de respeitar “o
sigilo de ofício”, embora ressalte que, durante a investigação
prévia, a suposta vítima e as testemunhas não têm “o vínculo do silêncio em
relação aos factos”. Em todo caso, deve
evitar-se toda a “inoportuna e ilegal” difusão de informações ao público,
sobretudo na fase da investigação preliminar, para não dar a impressão de já estarem
definidos os factos. Por outro lado, afirma-se que, se houver apreensão
judicial ou ordem de entrega dos documentos pelas autoridades civis, a Igreja já
não pode garantir a confidencialidade da documentação adquirida. E, quanto a comunicados
públicos que devem ser feitos durante uma investigação preliminar, recomenda-se
cautela e uso de formas essenciais e concisas, sem “anúncios retumbantes” e sem
pedir desculpas em nome da Igreja, porque se anteciparia assim o julgamento
sobre os factos.
Preconiza-se
como evidente a relevância da colaboração Igreja/Estado. Assim,
mesmo na ausência duma obrigação normativa explícita, a autoridade eclesiástica
deve participar às competentes autoridades civis sempre que o considerar indispensável
para proteger a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos criminosos.
Por outro lado, recorda-se que a “investigação deve ser realizada em
conformidade com as leis civis de cada Estado”.
Por fim,
surgem outras indicações particulares. A primeira tem a ver com as medidas
cautelares, que não são uma penalidade, mas um ato administrativo que pode ser
imposto desde o início da investigação preliminar para proteger a boa reputação
das pessoas envolvidas e o bem público ou para evitar o escândalo, a ocultação
das provas ou possíveis ameaças à suposta vítima. Não subsistindo as causas
para tais medidas ou concluído o processo, as medidas cautelares podem ser
revogadas, mas recomenda-se “prudência e discernimento”. E outra indicação diz
respeito ao uso da terminologia “suspensão a
divinis” para indicar a proibição de exercício do ministério imposta como
medida cautelar a um clérigo, denominação a evitar em fase de investigação preliminar,
por se tratar duma penalidade que “não pode ser imposta” em tal fase. Em vez
disso, devem usar-se os termos “interdição” ou “proibição” de um exercício do
ministério. E, durante a investigação preliminar, deve evitar-se a transferência
do clérigo envolvido.
Enfim,
trata-se de um documento equilibrado que, sem deixar de almejar a verdade e a
justiça, é cauteloso nas garantias e afasta tudo o que possa parecer caça ao homem,
pois o importante é prevenir o delito cuja tipologia é ampla, incluindo
relações sexuais (com e sem
consentimento), contacto físico sexual, exibicionismo, masturbação, pornografia,
indução à prostituição, conversas e/ou propostas de cariz sexual, inclusive
pelos meios de comunicação.
E, obviamente, se o delito ocorrer, há que o punir, respeitando
sempre a dignidade das pessoas.
2020.07.17
- Louro de Carvalho
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