quinta-feira, 16 de julho de 2020

Procedimentos para enfrentar casos de abuso de menores por clérigos


A Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) publicou um “manual de instruções” para guiar, passo a passo, quem deve fazer a averiguação da verdade – desde a notitia de delicto (suspeita de crime) à res iudicata (conclusão final) – quando um menor sofre abusos por parte dum clérigo.
É uma resposta precisa e minuciosa às perguntas mais recorrentes, plasmada num vade-mécum de instruções que, em pouco mais de 30 páginas e 9 capítulos, fornece 164 pontos de procedimento no tratamento destes casos de abuso. Não configura, pois, um texto normativo, muito menos nova legislação, mas é um instrumento de ajuda aos ordinários e agentes do direito que têm a necessidade de traduzir em ações concretas a normativa canónica sobre os delicta graviora (crimes mais graves) que representam “para toda a Igreja uma ferida profunda e dolorosa que exige ser curada”. Solicitado no encontro dos presidentes das conferências episcopais do mundo sobre a proteção dos menores na Igreja, realizado no Vaticano de 21 a 24 de fevereiro de 2019, o vade-mécum é publicado na versão denominada “1.0” porque se prevê a sua atualização periódica baseada na modificação da normativa vigente ou da prática da Congregação e, como diz o Prefeito, com a contribuição das Igrejas do mundo. Com efeito, lê-se no texto, “só um conhecimento aprofundado da Lei e seus propósitos poderá prestar o devido serviço à verdade e à justiça, a ser procurado com atenção particular em matéria de delicta graviora em razão das profundas feridas que afligem a comunhão eclesial”.
O manual, que responde a questões sobre a configuração do crime, a investigação preliminar, os possíveis procedimentos penais, traz contínuas referências legais aos códigos vigentes, ao Motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela, de São João Paulo II (2001) e atualizado por Bento XVI em 2010, e ao mais recente Motu proprio Vos estis lux mundi, de Francisco (2019). E, nalguns casos, afloram as diferenças entre o CCEO (Código dos Cânones para as Igrejas Orientais) e o CIC (Código de Direito Canónico para a Igreja Latina): por exemplo, na condução dum processo penal extrajudicial (administrativo, que reduz as formalidades processuais para acelerar a justiça, mas mantém intactas as garantias), a Igreja latina não prevê a presença dum Promotor de Justiça, enquanto para as Igrejas orientais é obrigatória.
O vade-mécum, que se deve ao trabalho de defrontação não só na CDF, mas também fora dela, com especialistas na área, noutros Dicastérios e, em particular, na Secretaria de Estado, acentua que a primeira obrigação é a tutela da pessoa humana, pelo que se pede às autoridades que se comprometam a tratar a suposta vítima e família “com dignidade e respeito”, oferecendo-lhes “acolhimento, escuta e acompanhamento, inclusive através de serviços específicos, bem como assistência espiritual, médica e psicológica, de acordo com o caso específico”. De igual modo devem proceder para com o suspeito. Depois, ressalta a importância de tutelar “a boa reputação das pessoas envolvidas”, mesmo se, em caso de perigo para o bem comum, se enfatiza que difundir notícias sobre a existência duma acusação não representa a violação da boa reputação.
Depois, no âmbito dos direitos do acusado, o manual frisa que, mesmo se “a prática do crime é evidente”, deve sempre assegurar-se ao acusado o exercício do direito de defesa. E, a partir da receção a notícia dum possível crime, o acusado tem o direito de pedir dispensa das obrigações conexas com o estado clerical (incluindo o celibato) e dos eventuais votos religiosos, pedido que deve ser apresentado por escrito ao Papa, através da CDF, e pode recorrer contra um procedimento penal ou um procedimento administrativo, enquanto a decisão papal é inapelável.
Um outro aspeto que emerge do vade-mécum é a exigência de verificação escrupulosa e cuidadosa de qualquer informação recebida por um ordinário sobre um presumível caso de abuso. Mesmo não havendo denúncia formal ou tendo a notícia sido difundida pelos meios de comunicação, incluindo as redes sociais, ou sendo anónima a fonte (que não é automaticamente descartável), é de avaliar atentamente toda a informação recebida e aprofundá-la. Ressalva-se, porém, que o sigilo sacramental permanece válido, devendo o confessor convencer o penitente a dar, por outras vias, conhecimento do suposto abuso.
No atinente à comunicação, o documento reitera a lembrança da obrigação de respeitar “o sigilo de ofício”, embora ressalte que, durante a investigação prévia, a suposta vítima e as testemunhas não têm “o vínculo do silêncio em relação aos factos”. Em todo caso, deve evitar-se toda a “inoportuna e ilegal” difusão de informações ao público, sobretudo na fase da investigação preliminar, para não dar a impressão de já estarem definidos os factos. Por outro lado, afirma-se que, se houver apreensão judicial ou ordem de entrega dos documentos pelas autoridades civis, a Igreja já não pode garantir a confidencialidade da documentação adquirida. E, quanto a comunicados públicos que devem ser feitos durante uma investigação preliminar, recomenda-se cautela e uso de formas essenciais e concisas, sem “anúncios retumbantes” e sem pedir desculpas em nome da Igreja, porque se anteciparia assim o julgamento sobre os factos.
Preconiza-se como evidente a relevância da colaboração Igreja/Estado. Assim, mesmo na ausência duma obrigação normativa explícita, a autoridade eclesiástica deve participar às competentes autoridades civis sempre que o considerar indispensável para proteger a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos criminosos. Por outro lado, recorda-se que a “investigação deve ser realizada em conformidade com as leis civis de cada Estado”.
Por fim, surgem outras indicações particulares. A primeira tem a ver com as medidas cautelares, que não são uma penalidade, mas um ato administrativo que pode ser imposto desde o início da investigação preliminar para proteger a boa reputação das pessoas envolvidas e o bem público ou para evitar o escândalo, a ocultação das provas ou possíveis ameaças à suposta vítima. Não subsistindo as causas para tais medidas ou concluído o processo, as medidas cautelares podem ser revogadas, mas recomenda-se “prudência e discernimento”. E outra indicação diz respeito ao uso da terminologia “suspensão a divinis” para indicar a proibição de exercício do ministério imposta como medida cautelar a um clérigo, denominação a evitar em fase de investigação preliminar, por se tratar duma penalidade que “não pode ser imposta” em tal fase. Em vez disso, devem usar-se os termos “interdição” ou “proibição” de um exercício do ministério. E, durante a investigação preliminar, deve evitar-se a transferência do clérigo envolvido.
Enfim, trata-se de um documento equilibrado que, sem deixar de almejar a verdade e a justiça, é cauteloso nas garantias e afasta tudo o que possa parecer caça ao homem, pois o importante é prevenir o delito cuja tipologia é ampla, incluindo relações sexuais (com e sem consentimento), contacto físico sexual, exibicionismo, masturbação, pornografia, indução à prostituição, conversas e/ou propostas de cariz sexual, inclusive pelos meios de comunicação.
E, obviamente, se o delito ocorrer, há que o punir, respeitando sempre a dignidade das pessoas.
2020.07.17 - Louro de Carvalho

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