sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Dia Escolar da Não Violência e da Paz, 2020


Comemorou-se, a 30 de janeiro, o Dia Escolar da Não Violência e da Paz, criado em 1964, em Espanha, por Llorenç Vidal, poeta, pedagogo e pacifista espanhol, e acolhido a nível internacional. Foi escolhido o dia 30 de janeiro por assinalar o falecimento do grande pacifista indiano Mahatma Gandhi, sendo que, a 2 de outubro, dia do seu falecimento, se comemora o Dia da Não Violência. Porém, nos países do hemisfério sul, com calendários escolares diferentes, o Dia Escolar da Não Violência e da Paz celebra-se por volta de 30 de março.
O objetivo é alertar alunos, professores, pais, políticos e governantes para a necessidade de uma educação para a paz, que promova valores como o respeito, a igualdade, a tolerância, a solidariedade, a cooperação e a não violência. E as preocupações da efeméride são: fomento da comunicação entre todos, prevenção de situações de bullying e incremento da amizade.
Em Portugal realizaram-se diversas atividades nos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas tendo em vista o objetivo e corporizar as sobreditas preocupações.
Das atividades recomendadas destacam-se: escrever frases ou manifestos pela paz; ler textos sobre a paz; realizar trabalhos de grupo com o tema da paz; fazer desenhos com o tema da paz; exibir filmes sobre a paz, sobre Gandhi e outros pacifistas; largar balões ou pombas; construir laços e corações humanos; fazer uma árvore com textos e desenhos dos alunos; produzir um PowerPoint; encenar peças de teatro; fazer um debate sobre a paz e a não violência; …
***
A nível das estruturas nacionais, regista-se o lançamento do Observatório Nacional do Bullying, em Matosinhos, que disponibiliza um questionário com vista a denúncia informal e anónima de casos de bullying em contexto escolar. A este respeito, Sofia Neves, coordenadora científica do Observatório Nacional do Bullying e presidente da Associação Plano i, responsável por esta iniciativa, explicou, em declarações aos jornalistas:
Este observatório é uma plataforma de denúncia informal de casos de bullying que pode ser utilizada por pessoas que estão neste momento a ser vítimas, que foram vítimas no passado, que testemunharam ou que tiveram conhecimento destas situações”.
Para Sofia Neves, esta recolha de dados anónima permitirá o mapeamento do fenómeno e uma caraterização das vítimas, dos agressores e das dinâmicas e consequências do bullying. Os dados são recolhidos através dum questionário online que está disponível desde o dia 30 de janeiro no site da Associação Plano i que pretende contribuir para o reforço das políticas públicas de combate ao fenómeno do bullying em contexto escolar, incluindo o ensino universitário.
Na verdade, a experiência obtida no âmbito do Observatório da Violência no Namoro, também da responsabilidade da Plano i, demonstra que muitos dos casos reportados nunca chegam às estatísticas oficiais, porque há uma resistência por parte das vítimas em denunciar, e que só por via do observatório podem ser contabilizadas. E Sofia Neves concluiu:
O que nós esperamos é que estes dados possam ser indicadores agregados aos indicadores oficiais e que nos permitam depois elaborar estratégias que possam reforçar as políticas públicas de prevenção e combate ao bullying”.
A associação, que escolheu o Dia Escolar da Não Violência e da Paz para lançar o observatório, apresentou publicamente, o programa Plano B, de prevenção do bullying dirigido aos alunos dos 2.º e 3.º ciclos de escolaridade. E, em declarações aos jornalistas, Paula Allen, coordenadora científica do plano e do Observatório Nacional, explicou que o programa, financiado pela Direção-Geral da Saúde, envolve três municípios – Matosinhos, Porto e Figueira da Foz – num total de 40 turmas dos 2.º. e 3.º ciclos de escolaridade. E referiu:
Trata-se de um programa que trabalha de uma forma muito completa e complexa o fenómeno do bullying envolvendo desde alunos a encarregados de educação, assistentes operacionais, docentes e direções das próprias escolas e entidades parceiras [autarquias e Agrupamento de Centros de Saúde].”.
A intervenção está dividida em três momentos, o primeiro dos quais, já em implementação no terreno, consiste na observação e recolha das necessidades específicas de cada contexto escolar.
E Paula Allen referiu:
Desenvolveu-se para aplicação posterior um programa de sete sessões em sala com cada turma. São 40 turmas do 2.º e 3.º ciclo. E esta intervenção tem um enfoque nas questões de género, da discriminação e do combate ao bullying e vai ter em conta aquilo que foi observado na primeira fase”.
De acordo com a coordenadora do programa, em Matosinhos há 5 escolas ou agrupamentos de escolas que integram este plano de prevenção do bullying – Escola Secundária Gonçalves Zarco, Agrupamento de Escolas da Senhora da Hora, Agrupamento de Escolas de Perafita, Agrupamento de Escolas Irmãos Passos e o Agrupamento de Escolas de Matosinhos. No Porto, integram o programa o Agrupamento de Escolas Alexandre Herculano e o Agrupamento Pero Vaz de Caminha e na Figueira da Foz o Agrupamento de Escola de Paião e Figueira Norte.
***
Também neste dia se ficou a saber que a polícia está empenhada em ensinar os professores a gerir conflitos e a recuperar autoridade. Com efeito, cada vez mais diretores escolares pedem ajuda à polícia para encontrar formas de gerir conflitos na escola, manter a disciplina nas salas de aula e evitar agressões. E João Cunha, coordenador da equipa da Escola Segura da 4.ª Divisão da PSP, em Lisboa, e que tem a seu cargo 116 escolas, contou à Lusa, a propósito do Dia Internacional da Não Violência e da Paz nas Escolas, que “os professores estão aflitos e preocupados e necessitam de aconselhamento sobre como agir”.
Assim, as equipas da PSP da Escola Segura realizaram, no passado ano letivo, só na 4.ª divisão 164 ações sobre violência escolar, tendo a maioria sido dirigida a crianças e jovens, mas há cada vez mais professores e funcionários interessados no assunto. E o referido coordenador observa que as sessões de esclarecimento com quem trabalha diariamente nas escolas são cada vez mais procuradas e a polícia da Escola Segura tem vindo a ser abordada para “essa dificuldade das escolas em exercerem a sua autoridade”.
Ainda na semana passada, esteve uma equipa na escola EB23 Paula Vicente a pedido da direção que pretendia saber como “prevenir futuras ações”. Esta escola, que tem problemas que são do conhecimento da polícia, não é uma exceção, pois o que se passa aqui repete-se um pouco por todo o país. Só no ano letivo de 2017/2018, a PSP e a GNR registaram mais de seis mil ocorrências em meio escolar. Em média, os agentes tiveram de se deslocar 17 vezes por dia a uma escola do país, segundo o último Relatório Anual de Segurança Interna, que revela uma diminuição de registos. E, se o Ministério da Educação garante que há uma tendência de redução dos casos de violência, a perceção de quem passa todo o dia na escola é bem diferente.
Na Paula Vicente, por exemplo, até o diretor, que assumiu funções apenas em setembro, já foi ameaçado por um encarregado de educação – assinala o “educare.pt”.
As injúrias e ameaças são a terceira principal razão das queixas à PSP e GNR. Em primeiro lugar aparecem as ameaças à integridade física e depois o furto. Durante a predita sessão de esclarecimento, sucederam-se as histórias de agressões entre alunos e de professores humilhados dentro da sala de aula. A maioria dos casos relatados aconteceu longe dali, mas ninguém na sala parece ficar admirado com a violência que existe no meio. Além dos casos de professores agredidos e ameaçados por alunos, há docentes ameaçados por pais porque deram más notas ao filho, porque o mandaram para a rua ou apenas porque o repreenderam, como aconteceu com o diretor da escola.
Em setembro, um professor censurou um estudante por bater num colega e, quatro meses depois, foi alvo de represálias. Em meados de janeiro, um encarregado de educação simulou ter um problema no carro e pediu ajuda ao diretor. Quando o mesmo professor passou os portões da escola, foi surpreendido pelo encarregado de educação, que lhe disse: “Se voltas a ameaçar o meu filho, parto-te a cara toda”. Valeram-lhe dois funcionários que acorreram em seu auxílio.
As agressões por parte de pais são cada vez mais frequentes, como fica patente nos órgãos de comunicação social. E, para evitar que as escolas se transformem em campos de batalha, o agente Antero Correia recorda algumas regras de segurança básica que devem ser acauteladas. Sair da escola para falar com encarregados de educação “não será a melhor opção”. Além disso, o professor deve ter ao seu lado “sempre alguém presente e chamar [o encarregado de educação] para a sua zona de conforto e zona segura” e “não sair da sua zona segura”. Fazer queixa à Escola Segura é decisão aplaudida pelo chefe da PSP, pois, como diz, “não podemos deixar que os pais queiram mandar aqui”. E, havendo outras situações que nunca chegam ao conhecimento das autoridades, João Cunha admite que tem dificuldades em aceitar que as vítimas não façam queixa, porque, “se um aluno insulta um professor na sala de aula, não se pode ficar por um processo disciplinar”, pois “isso é crime e é dever do professor fazer uma denúncia, caso contrário também poderá estar a incorrer no crime de ocultação”.
Professores agredidos, ameaçados e até expostos nas redes sociais são casos que chegam diariamente ao conhecimento da polícia. Como se pode ler no “educare.pt”, num email da direção da referida escola enviado para o chefe da 4.º Divisão da PSP, os professores apresentaram alguns cenários de problemas na sala de aula: “O aluno começa por provocar o professor dentro da sala de aula. O que faz o professor?”; “O aluno resiste a sair da sala de aula”… vai lendo João Cunha. Para os agentes da Escola Segura, nada disto é novidade.
Aos cenários sugeridos no email, João Cunha acrescenta casos reais muito mais violentos. Os agentes recordam umas fotografias “manipuladas de uma professora dentro da sala de aula em atos sexuais”. As imagens tornaram-se virais. E Antero Correia recorda que “aquilo estava mesmo bem feito” de modo a haver dificuldade em conseguir repor a verdade.
E João Cunha, acrescentando que “o ano de 2019 foi atípico no que toca à divulgação de imagens e sons dentro das salas de aulas”, deixou um pedido:
Não hesitem, não tenham medo. A classe de professores não pode ter medo. Compete a cada um de nós exercer a autoridade que cada um de nós tem.”.
João Cunha acredita que pode demorar, mas a “restituição da autoridade vai acontecer”. E lembra que, até lá, “o aluno não pode ver medo nem fraqueza”.
***
Entretanto, o poder político bem podia fazer algo mais pelo restabelecimento e reforço da autoridade do professor, que presta um serviço público ao país, e não andar a dizer que a violência está a diminuir ou que e caso isolado, o que não da para acreditar. A docência tem de ser revalorizada!
2020.01.31 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Sobre a poeirada em torno de Isabel dos Santos e Rui Pinto


Está na berra o Luanda Leaks, com a principal visada a prometer agir judicialmente contra o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ ou, à portuguesa, CIJI), alegadamente por a informação sobre a riqueza de Isabel dos Santos e modos como a conseguiu ter sido obtida de forma ilegal por intrusiva. E, do outro lado, está Rui Pinto em prisão preventiva e que vai ser julgado por 90 crimes do âmbito da intrusão, sabotagem informática e tentativa de negócio ilícito, para quem muitos pedem o estatuto de denunciante. 
Na verdade, a atual sorte judiciária de Rui Pinto e a tentativa incriminatória de Isabel dos Santos ao ICIJ têm respaldo na Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece, no n.º 8 do seu art.º 32.º: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Também o art.º 34.º estabelece a inviolabilidade do domicílio e do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, dizendo peremptoriamente:
A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei (n.º 2).
Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei (n.º 3).
É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal (n.º 4).”.
E o n.º 4 do art.º 35.º estipula: “É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais previstos na lei”.
É óbvio que, à face da lei, têm sido feitas, a cada passo, buscas em domicílios, escritórios, repartições do Estado e instalações de empresas, etc., com mandato judicial, tal como têm sido interceptadas e escutadas conversas telefónicas e e-mails, observando o que a Lei prescreve segundo as exceções que a CRP admite. Entende-se que a competência para a investigação por parte das entidades previstas na Lei, que tem acolhido o estabelecido constitucionalmente, deve ser exercida sob a direção dum juiz, pois o n.º 4 do art.º do n.º 32.º determina:
Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais”.
Ora, se o prurido constitucional for imperativo sem que se atenda concomitantemente a outros valores e possibilidades, Rui Pinto pode ser condenado por pirataria informática e crimes conexos, pois violou correspondência alheia, e o ICIJ também por ter utilizado e propagado informação colhida ilegalmente, pelos vistos fornecida por Rui Pinto.  
Porém, sem duvidar da ilegalidade da denúncia ICIJ/Rui Pinto, não percebo como, perante o alarido social, comercial e político – em que Isabel dos Santos diz que todos ficam a perder e lamenta a perda de postos de trabalho, um dos seus gestores no Eurobic se terá suicidado, seus representantes em empresas em que participa se demitem, o Banco de Portugal põe em causa a idoneidade de alguns gestores, uma empresa declara falência – as autoridades judiciárias não desencadeiam uma investigação adequada com a necessária cobertura legal para apuramento dos factos e de responsabilidades. Não será possível ter como estímulo a postura do denunciante (que não usou de tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa) e do ICIJ para um processo investigatório legal para apurar tudo o que se passa? É óbvio que sim, mas não é óbvia a razão por que não se faz. Sabe a pouco ter sido constituída arguida Isabel dos Santos e 4 portugueses e vir o Procurador-Geral da República de Angola solicitar ajuda à homóloga portuguesa.
É indigno remeter para o limbo constitucional da nulidade a informação colhida ilegalmente, porque é possível colhê-la por outras vias legais no todo ou em parte. Aliás, o enriquecimento ilícito de Isabel e de outros angolanos, com a conivência de auditores, gestores e advogados portugueses, foi já denunciado por Rafael Marques e outros ativistas, a que o poder judiciário português não deu qualquer atenção. Não obstante, insistia em julgar em Portugal Manuel Vicente, quando alegadamente Angola o queria julgar, aduzindo o nosso MP que a justiça angolana não tinha capacidade para o julgar, tendo criado, assim, um incidente diplomático.
Pode dizer-se que era impossível agir no tempo da presidência de José Eduardo dos Santos, o pai da multimilionária que alcançou um empório à custa do empobrecimento de tantos, segundo dizem uns, ou à custa de inteligência, habilidade e trabalho, segundo ela e seus admiradores. Porém, a presidência de Angola mudou e alegadamente o combate à corrupção foi inaugurado ou intensificado. Por isso, não se vê como suficiente e satisfatório que as autoridades judiciárias de Portugal e de Angola digam que estão atentas e que vão agir. Resta saber se a possível investigação se circunscreve à empresária angolana esquecendo os outros implicados, nomeadamente generais e outras figuras públicas do regime angolano. Não vá o diabo tecê-las e dar-se razão à empresária de que está a ser vítima de perseguição pessoal e/ou política.
Não me parece que a justiça fará muito em Portugal sobre o caso, pois, por mais que se diga em contrário, Isabel dos Santos foi ajudada, obviamente a troco de contrapartidas pecuniárias e de outra ordem por gestores, auditores, banca e políticos. As declarações de autoridades bancárias, a demissão na PwC, as demissões da NOS, as intenções de venda das participações no Eurobic, NOS e Efacec (o BCP mantem prudente silêncio) – vendas que levarão o seu tempo – são bons sintomas do que se acabou de afirmar. E não podemos esquecer que, para Isabel deixar o BPI, houve diligências do Banco de Portugal, do Ministro das Finanças, do Primeiro-Ministro e do Presidente da República, que veio a terreiro dizer que interveio porque tinha de intervir. Assim, não vale a pena virem os políticos dizer que a empresária não teve tratamento especial entre nós.
***
Quanto a Rui Pinto, é de registar o que diz a ex-eurodeputada Ana Gomes que veio criticar os “dois pesos e duas medidas” da nossa justiça no atinente à fonte dos documentos que levaram ao Luanda Leaks, exigindo que o ‘hacker’ tenha estatuto de denunciante. Com efeito, apesar de ao arrepio da lei, expor a criminalidade organizada, prestou um serviço público pondo a nu a incapacidade dos reguladores e supervisores e a ineficácia do sistema judiciário. Na verdade, é mais fácil investigar, julgar e condenar um crime informático que um largo crime económico.
O ‘hacker’ está a ser julgado por Portugal por acesso ilegal a documentos, mas incoerentemente a nossa justiça já aceitou colaborar com a homóloga angolana, que utiliza documentação recolhida por Rui Pinto para acusar a empresária Isabel dos Santos de má gestão de dinheiros públicos. Há, de facto, dois pesos e duas medidas. Ou melhor, esta posição da justiça portuguesa, ao contrário de outros países europeus que aceitaram a documentação de Rui Pinto, serve a criminalidade que capturou o sistema” judicial, como disse a ex-eurodeputada.
Assim, os advogados de Rui Pinto assumiram, numa nota de imprensa, que o seu cliente é a fonte dos documentos que deram origem ao Luanda Leaks, uma investigação jornalística internacional, que visou o enriquecimento da filha do ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos e que motivou a ação da justiça de Angola contra a empresária, acusada de má gestão e desvios de dinheiro quanto era administradora da petrolífera estatal Sonangol. Com efeito, Rui Pinto assume a responsabilidade de ter entregado, no final de 2018, à Plataforma de Proteção de Denunciantes na África (PPLAAF) “um disco rígido contendo todos os dados relacionados com as recentes revelações sobre a fortuna de Isabel dos Santos, sua família e todos os indivíduos que podem estar envolvidos nas operações fraudulentas cometidas à custa do Estado angolano e, eventualmente, de outros países estrangeiros”.
E, comentando o propósito de cooperação entre a justiça de Angola e a nossa, Ana Gomes diz:
Bem-vindos à era digital: serve para o mal, mas também serve para combater o mal e sem dúvida que está mais do que demonstrado aquilo que vinha há muito tempo dizendo: é que Rui Pinto prestou um extraordinário serviço à luta contra a criminalidade organizada e contra a corrupção em Portugal, para além de Portugal”.
Um denunciante que presta um serviço público tem de ser protegido da eventual vingança e fúria dos atingidos, independentemente de ter ou não um estatuto próprio. Mas, se a UE produziu uma diretiva para a implantação do estatuto do denunciante, é de perguntar porque espera Portugal para o introduzir no nosso ordenamento jurídico. E tanto Ana Gomes como os advogados asseguram que Rui Pinto “é um denunciante e tem de ter um estatuto de denunciante para as autoridades portuguesas”, considerando que o ‘hacker’ “tem de ser aproveitado” pela justiça portuguesa para “dar combate à corrupção e criminalidade organizada, branqueamento de capitais, financiamento de terrorismo e outra criminalidade associada”. Mais: como conclui Ana Gomes, a “justiça portuguesa tinha muitos destes dados que são públicos, designadamente desde a operação furacão”, pelo que “poderia ter atuado e escolheu não atuar em consonância com o poder político, que foi absolutamente conivente com o saque organizado a Angola feito por Isabel dos Santos e outros elementos da cleptocracia angolana”.
Será que o pequeno vai mesmo ser condenado e os grandes caem no limbo da impunidade? Depois, admiram-se de a opinião pública vir fazer a justiça que devia caber aos tribunais!
2020.01.30 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Parlamento Europeu acaba de aprovar o novo acordo do Brexit


Numa votação inequívoca, os eurodeputados disseram hoje, dia 29 de janeiro, “sim” ao acordo de saída do Reino Unido da União Europeia (UE), o Brexit.
A aprovação do acordo do Brexit por esmagadora maioria (621 eurodeputados a favor, 49 contra e 13 abstenções) deixou os parlamentares britânicos pró-europeus isolados na oposição. 
Esta votação ocorreu uma semana depois de a rainha Isabel II ter promulgado a lei que formaliza a saída do Reino Unido da UE, horas após a sua aprovação no Parlamento britânico e depois de a comissão do Parlamento Europeu responsável pelo dossier do Brexit ter votado a favor do acordo, com larga maioria (23 votos a favor e três contra). E o último passo para a concretização do Brexit foi dado na tarde de hoje tarde, como estava previsto.
O Brexit foi decidido pelos britânicos, por referendo, no verão de 2016 e o processo provocou uma crise política devido ao impasse no Parlamento britânico, que rejeitou três vezes o acordo negociado pela ex-primeira-ministra Theresa May. Face a este bloqueio, o Brexit chegou mesmo a ser adiado, tendo sido fixado como novo prazo as 23 horas de 31 de janeiro deste ano.
Com a aprovação do acordo no Parlamento britânico, a promulgação da lei pela rainha e a aprovação no Parlamento Europeu, estão reunidas as condições para no próximo dia 1 de fevereiro arrancar o “período de transição”, que vai até 31 de dezembro deste ano. Durante este período, o Reino Unido mantém-se, na prática, dentro do mercado único, obrigado a respeitar as regras europeias, mas sem representação nas instituições e sem participação nas decisões. O escopo é evitar uma mudança repentina, dando tempo a que empresas e cidadãos se adaptem. Por isso, é um tempo em que as duas partes, Reino Unido e UE, negociarão a relação futura.
Também no dia 1 de fevereiro, em virtude de o Reino Unido se tornar num país terceiro, abrirá a delegação da União Europeia no Reino Unido, que será encabeçada pelo diplomata português João Vale de Almeida.
***
Neste dia de despedida dos eurodeputados britânicos – “dia histórico” para uns, “triste” para outros, com algumas lágrimas no hemiciclo, nomeadamente de eurodeputados britânicos que eram contra o Brexit – cantou-se a música “Auld Lang Syne”, sobre um poema escocês de Robert Burns em 1788 que foi adaptado a uma música popular de despedida que é muitas vezes cantada para comemorar o início do Ano Novo nos países de língua inglesa (A versão portuguesa começa com: “Chegou a hora do adeus/Irmãos, vamos partir.).
No início do debate (de duas horas), Guy Verhofstadt, eurodeputado belga e presidente do grupo de contacto durante as negociações do Brexit, agradeceu o trabalho do francês Michel Barnier, principal negociador europeu, disse que os eurodeputados britânicos trouxeram “charme, humor, inteligência (alguns deles)” ao Parlamento Europeu e deixarão saudades e vincou:
“A votação de hoje não é uma votação a favor ou contra o Brexit. É uma votação em relação a um Brexit organizado em vez de um voto duro, selvagem. Se fosse uma questão de votar para travar o Brexit estaria aqui a pedir-vos para o fazermos. (…) É triste ver sair um país que por duas vezes nos libertou, que por duas vezes deu o próprio sangue para libertar a Europa.”.
Depois de questionar como, mais de 40 anos depois de por 70% terem votado a favor da adesão à família europeia, decidiram sair do projeto europeu, Verhofstadt frisou, em relação ao alegado medo de perda da soberania, que os europeus perderam a sua soberania há muito e que a Europa é uma maneira de manter a soberania nos próximos anos frente a um mundo completamente dominado por potências como a China, a Índia, os EUA e com problemas transnacionais. E, sobre a alegada culpa da imigração, o eurodeputado belga lembrou os médicos e enfermeiras que trabalham no serviço nacional de saúde britânico e que pagam impostos como os outros.
No encalço do Brexit, que se iniciou quando a UE começou a ceder com David Cameron, pediu uma reforma da União Europeia, sem direitos de veto e votações por unanimidade, e concluiu que “esta votação não é adeus, é apenas um até mais ver”.
Em nome do Conselho, a croata Nikolina Brnjac sustentou que “a saída do Reino Unido dará início a um período de transição curto” e que a UE tem que estar preparada para todas as circunstâncias até e depois de 31 de dezembro.
Por seu turno, a presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, prestou homenagem a todos os britânicos que deram uma contribuição importante para a integração europeia e declarou:
Como presidente da Comissão Europeia, antes de mais, quero prestar tributo a todos os britânicos que contribuíram tanto durante quase meio século de pertença do Reino Unido à UE, e penso em todos aqueles que nos ajudaram a criar as nossas instituições, pessoas como o comissário Arthur Cockfield, conhecido como o ‘pai’ do nosso Mercado Único, ou Roy Jenkins, presidente da Comissão Europeia, que fez tanto para abrir caminho à nossa moeda única”.
Von der Leyen apontou que o acordo é o “primeiro passo” e que agora começam as negociações para “nova parceria” e nova amizade. E, no atinente ao futuro acordo comercial, lembrou que se querem “tarifas zero e quotas zero”, mas com a condição de as empresas europeias e britânicas continuarem a competir em plano de igualdade, pelo que “vamos dedicar toda a nossa energia, todos os dias, 24 horas por semana, para conseguir resultados” (indicou Von der Leyen).
Por seu turno, Nigel Farage, líder do Partido do Brexit, tomou a palavra para dizer que este é o “capítulo final, o final do caminho” e lembrar que os pais queriam um mercado único, “não bandeiras, hinos ou presidentes”, observando que o Reino Unido está a chegar ao ponto de que não há regresso. Referiu que franceses e holandeses votaram em referendo contra o Tratado de Maastricht, sendo-lhes depois imposto o Tratado de Lisboa, sem referendos; e que, depois de os irlandeses terem votado na mesma e rejeitado esse tratado, foram obrigados a votar novamente.  
No final do debate, Michel Barnier, o principal negociador europeu, assegurou que é preciso respeitar o resultado do referendo britânico e que o objetivo do seu trabalho foi dar resposta a todos aqueles que ficaram assustados com toda a incerteza que marca qualquer divórcio. Em relação ao futuro e às negociações sobre a relação entre Reino Unido e UE, disse: 
Vamos continuar este ano com o mesmo estado de espírito, defendendo com a maior firmeza os interesses quer da União Europeia, quer dos Estados-membros”.
Por outro lado, alertou para a necessidade de enfrentar as consequências do Brexit, assegurando que “podemos ser patriotas e europeus”, pois “a questão europeia só dá mais relevo ao patriotismo nacional”. Por fim, desejou as maiores felicidades ao Reino Unido.
O representante do Reino Unido na UE, Tim Barrow (futuro embaixador do Reino Unido para a União Europeia), entregou durante a manhã no Conselho Europeu o documento oficial que mostrava que Londres tinha cumprido todas as obrigações legais para sair da UE, mais de três anos depois de os britânicos terem votado nesse sentido no referendo do Brexit de 23 de junho de 2016. E, após 47 anos de uma relação por vezes difícil, a saída do Reino Unido será assinalada de forma sóbria em Bruxelas, sem cerimónia oficial do retirar da bandeira britânica. Um exemplar da “Union Jack” ficará no Museu de História Europeia (Bruxelas). E os eurodeputados britânicos que são a favor do Brexit, liderados por Nigel Farage, têm em agenda uma festa.
***
Por fim, é conveniente passar os olhos pelos pontos essenciais do acordo do Brexit, que evita rutura e consequências, e que são basicamente os seguintes:
- Permissão duma separação pacífica, através dum período de transição no qual o Reino Unido e a UE negociarão um relacionamento futuro ao nível de comércio e áreas relevantes como a segurança, educação ou investigação científica;
- Período de transição ou Período de Implementação, que mantém na prática o Reino Unido no mercado único, com a obrigação de respeitar as regras europeias, mas sem estar representado nas instituições de Bruxelas nem participar nas decisões;
- Acautelamento dos direitos dos cidadãos, sendo que os 3,5 milhões de europeus no Reino Unido e 1,2 milhões de britânicos a residir no continente mantêm o direito a estudar, trabalhar, a receber apoios sociais e ao reagrupamento familiar nos respetivos países de residência;
- Compensação financeira, pela qual o Reino Unido se obriga a honrar os compromissos assumidos no atual orçamento plurianual (2014-2020), que também abrange o período de transição, cuja fatura ronda os 30 mil milhões de euros, beneficiando, em contrapartida, dos fundos estruturais europeus e da política agrícola comum até ao final do período de transição;
- Solução do caso da Irlanda do Norte, nos termos da qual se mantém aquela província britânica no território aduaneiro do Reino Unido, sendo que, se produtos de países terceiros entrarem na Irlanda do Norte e se permanecerem lá, será aplicada a tabela aduaneira britânica e, se essas mercadorias se destinarem a entrar na UE, via Irlanda do Norte, as autoridades britânicas terão de aplicar as taxas aduaneiras da UE (a província permanece alinhada num conjunto limitado de regras da UE para evitar a fronteira física com a República da Irlanda, membro da UE, que poderia reacender o conflito na Irlanda do Norte, o que implica uma série de controlos entre a província e o resto do Reino Unido); e
- Futuro relacionamento, nos termos do qual, por indicação de Boris Johnson, a Declaração Política que acompanha o acordo e que contém orientações para as futuras relações entre o Reino Unido e UE, especifica que as duas partes, em vez de uma “zona de comércio livre”, pretendem negociar um “acordo de comércio livre abrangente, com tarifas zero, acompanhado por uma parceria ampla e ambiciosa de segurança e cooperação em áreas como a investigação [científica]”, mas vincando que vai terminar a liberdade de circulação.
***
Enfim, Boris Johnson conseguiu a proeza que Theresa May não conseguiu em prol do seu país, pois não logrou vencer a resistência de figuras marcantes no Parlamento britânico incluindo muitos parlamentares do seu próprio partido, apesar da boa vontade da UE. E, assim, temos realizada a vontade maioritária dos cidadãos eleitores britânicos para o bem e para o mal.
2020.01.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sobre o estatuto do Papa emérito


É real, embora sem grande motivo, a sensação de que Bento XVI, por si e/ou por utilização abusiva de outros, está a ser foco de perturbação ao normal curso da condução da Igreja católica por parte de Francisco, seu imediato sucessor.
Alguns dos que elogiaram a atitude corajosa do Pontífice emérito em renunciar devido ao reconhecimento da sua incapacidade física e psíquica para orientar o curso da Igreja, cuja orientação íntima e superna cabe ao Espírito Santo, sentem-se agora desiludidos com algumas posições tidas como perturbadoras. Recorde-se o caso do prefácio escrito em tempos por Ratzinger para o livro “O poder do silêncio”, do Cardeal Robert Sarah, em que tece rasgados elogios ao purpurado da Guiné-Conacri, o escrito sobre a teologia da substituição (pela qual as prerrogativas de povo eleito passaram integralmente de Israel para o novo povo de Deus protagonizado pela Igreja do cristianismo) e o escrito sobre os motivos que, em seu entender, terão levado ao dramático surto de abusos sexuais de menores por parte de membros do clero e de institutos religiosos.
A contestação ao Papa Francisco teve erupções com o posicionamento do anterior Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, do Cardeal Burke, lídimo representante da Igreja dos Príncipes, com as acusações do antigo núncio apostólico nos EUA e concomitante exigência de renúncia do Santo Padre. E recentemente surgiu o caso do livro “Da profundeza dos nossos corações”, inicialmente uma coprodução de Ratzinger/Bento XVI e Robert Sarah, sobre o tema do celibato sacerdotal, considerado como uma obrigação inerente ao sacerdócio ministerial e, por conseguinte, como um dom ironicamente a impor à Igreja Latina.
Além dessa postura em si, estranha-se a ocasião. Com efeito, Francisco está empenhado em elaborar a exortação apostólica pós-sinodal sobre a Igreja na Amazónia onde foi proposto o regime de exceção com a ordenação sacerdotal de diáconos casados e a ordenação diaconal de mulheres para obviar à assistência sacramental às comunidades e à animação das comunidades em termos da evangelização, do culto e da organização da caridade. Se o Papa aceitar a sugestão sinodal, pode ver-se, em relação ao livro, um tópico de rutura; se o Papa enveredar pela posição rígida da imposição do celibato sacerdotal também na Amazónia, pode entender-se que o livro de Ratzinger e Sarah constituiu uma forma de pressão, o que não é curial nem para um lado nem para o outro.
Acresce que, além doutros sintomas de contestação ao único Pontífice legítimo, a comunicação social referiu o encontro discreto e informal que juntou no Penha Longa Resort, em Sintra, de 22 a 25 de janeiro, 110 Bispos e alguns cardeais, de 42 países, sob convocação do Instituto Acton para o Estudo da Religião e da Liberdade. O encontro dedicou-se ao estudo, discussão e partilha de experiências em torno do tema “fé, razão e justiça social”, mas, pelas críticas ao Papa Francisco, nomeadamente no atinente às suas posições sobre o mercado livre, o estado social, impostos e alterações climáticas, os observadores veem aqui mais uma manifestação da onda de tentativa de torpedeamento da reforma que Francisco tem entre mãos.
***
Face a todo o desenvolvimento do que ficou exposto, vêm alguns reclamar que o Código de Direito Canónico estabeleça o estatuto do Papa que renunciou, definindo os seus direitos e deveres, bem como o que pode ou não fazer. Entendem que não deve ser designado como Papa emérito, nem usar veste branca. Chegam a ponderar que não resida no Vaticano, mas em Castelgandolfo, residência de verão do Sumo Pontífice, ou noutro lugar à escolha e que seja tratado por cardeal ou, quando muito, por Bispo de Roma emérito. O pouco que o Código diz a respeito de eventual renúncia do Romano Pontífice é o que vem expresso no § 2 do cânone 332:
Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém”.
Bento XVI surpreendeu, em 11 de fevereiro de 2013, o mundo quando declarou:
Cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. (…) Para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro (…). Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.”.
A renúncia foi, pois, consciente e livre, estribada na perda de forças e na consciência da incapacidade para o múnus e tem como principal porta de saída servir “a Santa Igreja de Deus” de todo o coração, “com uma vida consagrada à oração”. Além disso, decidiu retirar-se, a partir do dia da efetivação da renúncia (28 de fevereiro), para Castelgandolfo, regressando ao Vaticano, para viver no Mosteiro Mater Ecclesiae após o conclave.
Por vontade própria, Bento colocou-se na condição de resignatário ou emérito em relação ao múnus que deixou. Do meu ponto de vista, não faz sentido, chamar-lhe Bispo emérito de Roma em vez de Papa emérito, pois o ministério petrino e o ministério episcopal de Roma coincidem.
Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, diz que Papa emérito é designação teologicamente complexa, mas (penso) nem por isso deve ser evitada. 
Por outro lado, não se vê motivo para que não use a sotaina branca e não possa oficiar em celebrações não ostensivas, pois, não devendo usar adereços e símbolos – como o pálio, o anel do pescador, o báculo papal, a mozeta papal… – que induzam confusão com o Papa em exercício, não deve ser reduzido à condição de cardeal. Com efeito, o Papa, embora seja eleito pelo sacro colégio reunido em conclave, pode não ter sido um cardeal ou até não ter sido anteriormente um bispo (cf cân. 332 § 1), devendo, neste caso ser ordenado logo que possível.
Não vejo que possa sofrer de maior coarctação das liberdades que os bispos eméritos. Com efeito, como refere o cân. 185, “àquele que perder o ofício por limite de idade ou por renúncia aceite, pode ser-lhe conferido o título de emérito”. O cân. 402 estabelece que o bispo emérito “mantém o título de emérito da sua diocese e pode conservar nela residência, se o desejar” e que esta deve ter especial responsabilidade na sua sustentação no âmbito do que respeita à conferência episcopal, como pode participar em concílios particulares (vd cân. 443 § 2 e 3).  
Pelo que não parece justo querer arredar o renunciante, sem título, para fora da diocese de Roma. Aliás, embora alguns bispos eméritos tenham criado algumas dificuldades aos sucessores, mais por parte de alguns diocesanos, não há dúvida de que a maior parte deles tem sabido conter-se e muitos são úteis na dinamização da fé e mesmo no auxílio aos sucessores, sem os ultrapassarem ou sem se sobreporem a eles, mesmo que a tentação seja possível.
É certo que Bento XVI prometeu servir na oração, mas não é lícito silenciá-lo no quadro da liberdade de expressão em Igreja. Cabe, sim, a cada um dos colaboradores do Papa investido no ministério petrino aceitar paciente e tolerantemente o seu direito à expressão teológica e eclesial, sem a confundir com a expressão petrina. E a ninguém é lícito tomá-lo como bandeira para contestação a Francisco. E quem for amigo de Bento deve ajudá-lo à expressão contida.
2020.01.28 – Louro de Carvalho    

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Encosto à direita pura e Doutrina Social da Igreja não casam bem


Não tenho que me intrometer na vida interna dos partidos – nem o quero – e, neste caso, do CDS. O órgão estatutário máximo, o Congresso, debate as diversas moções, elege o líder e estabelece a composição dos demais órgãos estatutários. No entanto, atendendo à informação que transpirou para o exterior, o facto merece-me alguma reflexão.
Depois do debate que mexeu com o Congresso em que os candidatos à liderança se desentenderam e entenderam ou ficaram assim-assim, foi eleito para a presidência do partido Francisco Rodrigues dos Santos, até agora líder da Juventude Popular ou Juventude Centrista. Se lhe falta experiência e traquejo na relação interpartidária e a condição de deputado – dados que, à partida, facilitariam o trabalho de liderança e de oposição construtiva ao Governo, estratégia que defende –, pelo vistos, não lhe falta energia, vivacidade e garra para reconstruir a estrutura partidária, unificar a formação partidária a que passou a presidir, percorrer o país, que elege como a sua assembleia, ganhar mais presidências de câmara municipal e mais mandatos, rever-se no trabalho parlamentar que a bancada (que não o apoiou, dirigida por Cecília Meireles e de que faz parte João Almeida, até agora seu adversário de candidatura) desenvolve juntamente através dos cinco competentes deputados e constituir uma frente de direita liderada pelo CDS, arrumando alegadamente o Chega contra a parede da extrema-direita, já em 2023 ou antes, se as circunstâncias o exigirem. Na verdade, um governo minoritário está sujeito a percalços, como ver um orçamento chumbado ou ser objeto duma coligação negativa numa moção de censura ou numa medida estruturante.
O 28.º Congresso não foi propriamente um episódio demonstrativo da mui sã convivência intrapartidária. Com efeito, não constituem bom exemplo de boa relação intra e extrapartidária os remoques de incompetência à líder cessante, que professou ter feito tudo o que pôde e soube – o que os resultados desmentem, pelo que desistiu da liderança –, a gratidão piegas à ex-líder por parte de outros congressistas, as vergastadas interpessoais de Pires de Lima a Francisco dos Santos, com os subsequentes apupos ao ex-ministro da Economia, a reprimenda de alguém aos apupantes, pois não se vaia um ex-ministro que tirou Portugal da bancarrota (fenómeno discutível, sobretudo se aplicado a Pires de Lima, que foi ministro só depois da “irrevogável” de Paulo Portas), a designação de “quadrilha” lançada por Francisco Rodrigues dos Santos à esquerda mais radical ou “elitezinha gourmet” de esquerda que tem assento parlamentar ou a crítica a Assunção Cristas por fazer oposição excessivamente palavrosa e empolgada a Costa.  
O certo é que Francisco dos Santos conseguiu a desistência do candidato Lopo d’Ávila, que fez seu vice-presidente, e virou de João Almeida, que será muito útil no Parlamento, para si o apoiante António Carlos Monteiro, que fez também vice-presidente, o que irritou João Almeida, que teve o apoio claro de Nuno Melo. Note-se que todos os candidatos protestavam que não eram de continuidade. Convenha-se que, neste aspeto, o líder eleito era o que tinha melhores credenciais, pois, como é natural, a juventudes estão não raro contra a linha oficial partidária.  
É caso para perguntar se o explícito agradecimento que fez a vários congressistas de destaque ou o ter batido à porta dos adversários para fazer listas são um sinal eficaz de que vem aí a união do partido ou o que entende o líder por partido sexy como quer que o CDS venha a ser pelo país fora. A união consistirá em abrir as portas a Manual Monteiro relegando para a memória do esquecimento a liderança de Paulo Portas e a sua democracia cristã, que o fez lançar linhas vermelhas em matéria social aquando da troika? E como vai o líder conseguir a reconciliação com todos os antigos presidentes do partido: Portas, Cristas, Ribeiro e Castro, Adriano Moreira?     
***
Para já, o líder conservador que frequentou o Colégio Militar e integrou a direção do Sporting (que deixou para se candidatar à liderança do CDS), anuncia medidas como o plafonamento da Segurança Social, a baixa do IRS, a redução da taxa social única e a redução do número de escalões no IRS, bem como a sua posição sobre temas fraturantes como estar contra o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo (que prefere a designação de união de facto) e a adoção por casais gay. Tudo em linha com a ideologia conservadora, se bem que não exclusiva desta.
Porém, a medida que me merece reparo pela sua incoerência é o plano de formação partidária para “um grupo nacional coeso de autênticos ‘comandos’ do combate político”, inspirado na máxima de São João Paulo II “Não tenhais medo”. Assim, em torno do slogan “Portugal sem medo”, o plano inclui, entre outras, sessões periódicas semanais para abordagem de matérias como democracia cristã (DC) e doutrina social da Igreja (DSI). E propõe formação especializada em apologética (defesa verbal), lógica para uma boa argumentação, oratória assertiva para políticos, discursos convergentes e convincentes, domínio nos encontros jornalísticos e debates.
Tudo certo, porque necessário politicamente para bem da definição e implantação de políticas públicas. Contudo, parece esquecer-se de que foi o socialismo democrático (outra face da socialdemocracia) e a democracia cristã que pacificaram a Europa e criaram nela um surto de progresso, ora estiolado pelo advento do incontornável ultraliberalismo que enveredou pela riqueza baseada em produtos financeiros e especulativos e implantou, sem alternativa, a economia estribada nos baixos salários, aprofundando as desigualdades económicas e sociais.
E, se falarmos em DSI, resta saber se o líder pensa que pode invocar para a causa da direita o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, as encíclicas Rerum Novarum (de Leão XIII), Quanta Cura (de Pio IX), Quadragesimo anno (de Pio XI), Mater et Magistra, Pacem in Terris (ambas de São João XXIII), Populorum Progressio (de São Paulo VI), Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus (as três de São João Paulo II), Caritas in Veritate (de Bento XVI) e Laudato Si (de Francisco); as radiomensagens de Pio XII;  a Carta Apostólica Octogesima adveniens (de São Paulo VI); a exortação apostólica Evangelii Gaudium (de Francisco); e os recorrentes discursos de Francisco. Com efeito, equacionar o destino universal dos bens, o papel social da propriedade privada, a função social da empresa, o justo salário, a articulação da vida profissional com a vida familiar e pessoal e a participação dos trabalhadores nos lucros da empresa talvez não se coadunem com a ideologia ultraliberal. Talvez se possa começar peça leitura do livro “Impacto da Doutrina Social da Igreja no Trabalhador e no Empresário”, de Hermenegildo Moreira (Editorial Cáritas, 2016), e passar à leitura atenta do Compêndio da Doutrina Social da Igreja 
Talvez haja um longo caminho a percorrer no contexto de falência do Estado Social, dos Liberalismos, dos Socialismos e da dita 3.ª via! Qual será o partido que se arrogará o ónus e o direito de se encarregar da DSI, que não pode ser presa de nenhum partido político?
2020.01.27 – Louro de Carvalho

domingo, 26 de janeiro de 2020

O 1.º Domingo da Palavra de Deus


No rescaldo da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que terminou ontem, dia 25, celebrou-se hoje, dia 26, III domingo do Tempo Comum no Ano A, o 1.º Domingo da Palavra de Deus, sabiamente instituído pelo Papa Francisco, não porque deva ser este o único em que a Palavra de Deus está em evidência, mas como ensejo para uma reflexão mais aprofundada sobre o âmago e as exigências das Escrituras e com alguma atividade comunitária significativa que inspire a celebração dos demais domingos. Tudo numa perspetiva da edificação da Igreja, santificação dos crentes e bem da humanidade, destinatária da missão universal da Igreja e objeto do amor infindo e infinito de Deus.
A Palavra de Deus não é um repositório de antiguidades adequadas a um espaço museológico, mas o sinal de Cristo vivo entre nós e em nós, que acontece sempre que lemos, proclamamos e refletimos uma passagem bíblica entendida segundo a ótica de Jesus Cristo ressuscitado, que aos discípulos de Emaús, começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito(Lc 24,27). Mas não esqueçamos que aqueles dois discípulos, apesar de lhes “arder o coração” quando Ele lhes falava pelo caminho e lhes explicava as Escrituras, só O reconheceram quando Ele “se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, lho entregou” (cf Lc 24,30-32).
Veja-se o que pode fazer em nós a Palavra – fazer arder o coração – se a escutarmos com atenção, afeto e desejo de não sermos apenas ouvintes, mas praticantes (cf Tg 1,22) em prol da nossa santificação e bem dos irmãos. Depois, há que ter em conta as potencialidades da Palavra contida nas Escrituras: pode instruir-nos, em ordem à salvação pela fé em Cristo Jesus, pois toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e esteja preparado para toda a obra boa (cf 2Tm 3,15-16).
***
E a Palavra de Deus adverte-nos para a obrigação da oração e zelo pela Unidade dos cristãos. Além de ser conhecida a oração sacerdotal do Senhor em contexto da Ceia, antes de padecer, com a prece de que todos sejam um como Jesus e o Pai o são para que o mundo creia (cf Jo 17,21), vem agora o apóstolo Paulo protestar contra o divisionismo que estava a criar-se na Igreja de Corinto depois de ele dali sair. Perante a eloquência convincente de Apolo (maior que a de Paulo), um judeu convertido ao Cristianismo, uns diziam-se partidários de Pedro, outros de Paulo, outros de Pedro e outros de Cristo. Aí Paulo pergunta se Cristo está dividido ou se foi Paulo que foi crucificado (e podia ter dito o mesmo de Apolo ou de Pedro). Por isso, o apóstolo, que foi enviado para evangelizar e não para ter um batismo em seu nome, exorta vivamente a que se tenha em conta a cruz de Cristo como centro da doutrina, pelo que devem cessar as divisões e construir-se a estreita união entre todos no mesmo pensar e no mesmo agir (cf 1Cor 1,10-13.17).
***
Porém, o Papa, na homilia, foi às origens da pregação de Jesus, baseado na passagem evangélica deste domingo (Mt 4,12-23), “que nos diz como, onde e a quem Jesus começou a pregar.  
Começou com uma simples frase “Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” – a base de todos os discursos de Jesus. Assim ficamos a saber que “Deus não está longe”, mas “desceu à terra, fez-Se homem”. Com a encarnação em Jesus, “removeu as barreiras, eliminou as distâncias” e “veio ao nosso encontro” cumprindo na plenitude todo o desígnio e promessas do Antigo Testamento. E diz o Santo Padre:
Não tomou a nossa condição humana por um sentido de dever, mas por amor. (…) Deus tomou a nossa humanidade, porque nos ama e, gratuitamente, quer-nos dar a salvação que, sozinhos, não poderíamos obter. Deseja estar connosco, dar-nos o encanto de viver, a paz do coração, a alegria de ser perdoados e nos sentirmos amados.”.
Em conformidade com esta postura de Deus vem o convite “convertei-vos”, pois “começou o tempo de viver com Deus e para Deus, com os outros e para os outros, com amor e por amor”. É para isto que o Senhor nos dá a sua Palavra: para que a recebamos como a carta de amor que escreveu para nós, para fazer-nos sentir que Ele está junto de nós com a Palavra que nos consola e liberta da paralisia e da opressão e que tem o poder de nos mudar de vida, “de fazer passar da escuridão à luz”. De facto, em Jesus cumpre-se o que disse Isaías:
O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte uma luz se levantou. (…) Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor.” (Is 9,1-4; Mt 4,16).
Depois, começou a pregar na Galileia dos Gentios, de que falava Isaías (8,23b) região periférica aonde aportavam pessoas de várias proveniências, “formando uma verdadeira amálgama de povos, línguas e culturas”, mas consideradas de baixa categoria. E sublinha o Pontífice:
Era o caminho do mar, que constituía uma encruzilhada. Lá viviam pescadores, comerciantes e estrangeiros: não era de certeza o lugar onde se encontrava o povo eleito na sua pureza religiosa melhor. E, no entanto, Jesus começou de lá: não do átrio do templo de Jerusalém, mas do lado oposto do país, da Galileia dos gentios, dum local de fronteira. Começou duma periferia.”.
Como lição, é de inferir que “a Palavra que salva não procura lugares refinados, esterilizados, seguros”, antes “vem à complicação dos nossos dias, às nossas obscuridades”. Porém, somos nós que tantas vezes lhe fechamos a porta.
E Jesus, “caminhando ao longo do mar da Galileia, viu dois irmãos (…) que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores”. E lançou-lhes o convite: “Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens”. Ora, os primeiros destinatários da Palavra foram pescadores, “não pessoas selecionadas com base nas suas capacidades, nem piedosas, mas gente comum que trabalhava. Jesus fala a pescadores e usa linguagem que eles compreendem. Chama-os onde estão e como são, para os envolver na própria missão d’Ele, a do serviço ao Reino de Deus, que está próximo. E eles seguiram-No deixando tudo, atraídos por amor. Depois, outros dois pescadores tiveram o mesmo convite e tomaram a mesma postura de seguimento.
E inaugura-se o tempo da íntima experiência apostólica no colégio de Jesus em torno da Palavra do Reino, sendo que Jesus, enquanto percorria toda a Galileia (e, depois, a Samaria e a Judeia), “ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo”, lhes revelava paulatinamente os seus segredos e lhes confiava algumas missões. Tudo gira entre o convite de Jesus ao seguimento para deles fazer pescadores de homens, agora lido à luz da Ressurreição, e o mandato: “Como o Pai me enviou também eu vos envio a vós. (…) Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos.(Jo 20,22-23). Ou então:
Ide, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos.” (Mt 28,19-20).
Como os apóstolos, cada um de nós é chamado, segundo a sua condição, ao serviço à Palavra, para se estabelecer o arrependimento e o perdão e se gerar a comunidade. Para tanto, temos de dar espaço à Palavra e acolhê-la para, como diz o Papa, descobrirmos que “Deus está perto de nós, ilumina as nossas trevas e amorosamente impele para o largo a nossa vida”.
2020.01.26 – Louro de Carvalho

sábado, 25 de janeiro de 2020

É preciso invocar incessantemente o dom da unidade entre os cristãos


O Santo Padre concluiu, na tarde deste dia 25 de janeiro, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, com a celebração das Vésperas da Conversão de São Paulo, a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, celebração que reuniu representantes de diversas Igrejas e comunidades eclesiais. Na homilia, o Pontífice encorajou a “juntos, sem nunca nos cansarmos, continuar a rezar para invocar a Deus o dom da plena unidade entre nós”. E fê-lo no âmbito do tema de reflexão proposto para este ano, o da hospitalidade, sintetizado no versículo “Eles mostraram-nos uma benevolência fora do comum(cf At 28,2), proposto e desenvolvido pelas Igrejas cristãs de Malta e Gozo, a partir do capítulo do Livro dos Atos dos Apóstolos que trata do argumento de gentileza e humanidade com que Paulo e os companheiros foram recebido na ilha Malta.

Apropriando-se da metáfora da viagem paulina, diz o Papa que é a “nossa viagem ecuménica” conduzida à unidade que Deus tanto deseja, viagem feita por “fracos e vulneráveis” e com pouco materialmente para oferecer, mas que “alicerçam a própria riqueza em Deus”, como as comunidades cristãs:
Mesmo as menores e menos relevantes aos olhos do mundo fazem a experiência do Espírito Santo, vivem o amor a Deus e ao próximo, têm uma mensagem a oferecer a toda a família cristã. Pensemos nas comunidades cristãs marginalizadas e perseguidas. [...] Enquanto discípulos de Jesus, devemos, portanto, estar atentos a não nos deixarmos atrair por lógicas mundanas, mas colocar-nos à escuta dos pequenos e dos pobres, porque Deus gosta de enviar as suas mensagens por meio deles, que mais se assemelham ao seu Filho feito homem.”.
Outro aspeto abordado por Bergoglio leva-nos à prioridade de Deus que é a salvação de todos, como aconteceu  no naufrágio de Paulo, quando cada um contribuiu para a salvação de todos:
É um convite a não nos dedicarmos exclusivamente às nossas comunidades, mas a abrirmo-nos ao bem de todos, ao olhar universal de Deus, que se encarnou para abraçar todo o género humano e que morreu e ressuscitou para a salvação de todos. Se, com a sua graça, assimilamos a sua visão, podemos superar as nossas divisões. [...] Também entre os cristãos, cada comunidade tem um dom para oferecer aos outros. Quanto mais olharmos para além dos interesses de parte e superarmos as heranças do passado no desejo de avançar em direção a um ancoradouro comum, mais seremos capazes de espontaneamente reconhecer, acolher e compartilhar esses dons.”.
E Francisco lembrou como os habitantes de Malta acolheram Paulo e companheiros, com gentileza e benevolência, explicitando que “o fogo aceso na praia para aquecer os náufragos é um belo símbolo do calor humano que inesperadamente nos rodeia”. E acrescentou:
Desta Semana de Oração, gostaríamos de aprender a ser mais hospitaleiros, antes de tudo entre nós, cristãos, também entre irmãos de diferentes confissões. A hospitalidade pertence à tradição das comunidades e das famílias cristãs. Os nossos idosos ensinaram-nos com o exemplo, que à mesa de uma casa cristã sempre há um prato de sopa para o amigo de passagem ou para o necessitado que bate à porta.”.
Por fim, o Papa exortou a não perdermos esses costumes que são do Evangelho e devem ser reavivados. E, ao saudar representantes das diversas Igrejas, o Pontífice finalizou:
Juntos, sem nunca nos cansarmos, continuemos a rezar para invocar a Deus o dom da plena unidade entre nós”.
***
Costumamos fundamentar a urgência da Unidade na oração sacerdotal de Jesus (vd cap. 17 de João), que rogou ao Pai que sejamos um só como Ele e o Pai o são para que o mundo creia. Porém, bem podemos colher a lição da conversão de Paulo (nome latino por ser cidadão romano), o apóstolo dos gentios e das nações, nascido em Tarso da Cilícia (atual Turquia), judeu de nação pertencente à tribo de Benjamim, de pai pertencente ao grupo dos fariseus. Tarso era um município romano, pelo que Paulo recebeu o título de cidadão romano. Foi neste ambiente, em meio a tantos títulos e adversidades, que foi crescendo e buscando a Palavra de Deus.
Combatente dos vícios, foi um homem fiel a Deus. Entretanto, foi estudar na escola de Gamaliel, em Jerusalém, para aprofundar o conhecimento da lei, buscando colocá-la em prática.
Foi em Jerusalém que tomou contacto com o Cristianismo, tido como uma seita. Tornou-se um grande inimigo dessa religião e dos seus seguidores desta. Assim, aquando do apedrejamento de Estêvão, o primeiro mártir da Igreja, Paulo segurou as capas dos que o apedrejavam, em atitude de aprovação. Autorizado pelos chefes, procurava identificar cristãos, prendê-los e violentá-los, pois era preciso para acabar com o Cristianismo. E fazia tudo isso para agradar a Deus.
Como se refere no capítulo 9 de Atos, “Saulo (era o nome grego por que era chamado a princípio) só respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor”. Durante a viagem, estando já em Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, por que me persegues?’. E Saulo pergunta: ‘Quem és, Senhor?’. E a voz respondeu: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro te é recalcitrar contra o aguilhão’. Trémulo e atónito, disse Saulo: ‘Senhor, que queres que eu faça?’. Respondeu-lhe o Senhor: ‘Levanta-te, entra na cidade, aí te será dito o que deves fazer. E, depois de permanecer na casa dum judeu chamado Judas, sem comer nem beber, instruído por Ananias, um cristão comum, mas dócil ao Espírito Santo, recebeu o Batismo. Na verdade, Ananias, a pedido de Cristo, foi ao encontro de Saulo, que recuperou a vista e se converteu e passou a pregar nas sinagogas sobre o Filho de Deus, com grande espanto de seus ouvintes. Assim, o antigo perseguidor se tornou apóstolo e foi eleito por Deus como um dos principais instrumentos para a conversão do mundo.
Muitos não acreditaram na sua mudança, mas ele perseverou e abriu-se à vontade de Deus, pelo que se tornou um grande apóstolo da Igreja, modelo de todos os cristãos.
O período que vai do ano 45 ao 57 foi o mais ativo e frutífero da sua vida. Compreende três grandes expedições apostólicas de que Antioquia foi o ponto de partida e que terminaram por uma visita à Jerusalém. Os restos do apóstolo repousam na Basílica de São Paulo Extramuros, em Roma, o templo maior depois da Basílica de São Pedro.
Se todos os cristãos que rezam pela Unidade soubessem perguntar como Paulo “Senhor, que queres que eu faça?”, a Unidade teria já talvez ganhado foros teológicos e pastorais entre as diversas Igrejas cristãs, embora sempre em perigo, mas sempre almejada.
***
Não obstante, a paciência de Deus espera por nós. Desde há 112 anos que, de 18 a 25 de janeiro, se celebra a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, iniciativa ecuménica instituída em 1908 por Paul Wattson, em Graymoor (Nova Iorque), entre a festa da cátedra de São Pedro (que passou para 22 de fevereiro) e a da conversão de São Paulo, mas que, no hemisfério sul se celebra nas proximidades do Pentecostes. A iniciativa teve um preâmbulo em 1740, na Escócia: um pregador evangélico-pentecostal convidou para um dia de oração pela unidade. O mesmo convite foi dirigido pela primeira assembleia dos bispos anglicanos em Lambeth (1867) e pelo Patriarca ecuménico de Constantinopla, Joaquim III (1902). Em 1894, o Papa Leão XIII encoraja uma “Oitava de oração pela unidade”. A Igreja católica, com o Concílio Vaticano II, evidencia a oração como alma do Movimento ecuménico, sendo a unidade dom (de Deus) e tarefa (nossa).
Em 1966, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Comissão Fé e Constituição do Conselho Ecuménico das Igrejas acertaram em preparar em conjunto os textos oficiais para a Semana de Oração, trabalho confiado, há mais de 30 anos, a um grupo ecuménico local sempre diferente.
Os materiais para a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos de 2020 foram preparados pelas Igrejas cristãs em Malta e Gozo (Cristãos Unidos em Malta) sob o tema “Eles mostraram-nos uma benevolência fora do comum” (cf At 28,2). A história começou com Paulo a ser levado a Roma como prisioneiro (At 27,1ss). Porém, mesmo numa viagem que se torna perigosa, a missão de Deus continua através dele. E ele e companheiros são recebidos hospitaleiramente, embora depois de se ter verificado a necessidade de alijar cargas para que as embarcações não soçobrassem e dividir em grupos os passageiros, sendo que se levantou a voz de Paulo para acalmar a todos e testemunhar a bonança em Jesus Cristo. E são recebidos pelos habitantes locais, não lhes faltando nada: comida, bebida, fogo, agasalhos e alojamento provisório.
Por causa da sua fé, Paulo confia que se erguerá ante o imperador em Roma e que se pode erguer ante os seus companheiros de viagem e dar graças a Deus. Seguindo o exemplo de Paulo, partilham o pão, unidos numa nova esperança e confiantes nas suas palavras.
Tal como Paulo e companheiros se confiaram à divina providência, também desta vez os cristãos de Malta e Gozo entregam à divina providência a questão da unidade, sabendo que isto “vai exigir deixar de lado muitas coisas a que estamos profundamente ligados”. Porém, o que importa para Deus é a salvação de todas as pessoas. E aplicam aos tempos hodiernos os lugares e as vicissitudes mencionados no texto dos Atos, que também fazem parte das histórias de migrantes dos tempos modernos. Muitos estão a fazer jornadas perigosas por terra e pelo mar para escapar de desastres naturais, guerra e pobreza. As suas vidas estão expostas a imensas e friamente indiferentes forças – naturais, políticas, económicas e humanas – indiferença humana que assume várias formas: a dos que vendem lugares em barcos inadequados para pessoas desesperadas; a que leva à decisão de não enviar barcos de socorro; a que faz mandar embora barcos de imigrantes. E tudo isto nos desafia a nós como cristãos unidos que encaramos as dramáticas crises da migração. Na verdade, a hospitalidade é uma virtude muito necessária em nossa busca da unidade cristã, uma prática que nos leva a uma maior generosidade para os necessitados. As pessoas que foram benevolentes para com Paulo e companheiros não conheciam ainda Cristo, mas é através da benevolência que povos divididos vão ficando unidos.
Também a unidade cristã será descoberta não só mostrando hospitalidade de uns para os outros, mas também através de encontros amigáveis com os que não partilham a nossa língua, cultura ou fé, pois, como Paulo proclamará em Roma, a salvação de Deus foi enviada a todos os povos (cf At 28,28). Em viagens tempestuosas e encontros casuais, a vontade de Deus será cumprida.
As reflexões para os oito dias e a celebração foram baseadas no texto de Atos dos Apóstolos. E os temas são: 1.º dia – Reconciliação: Atirando a carga ao mar; 2.º dia – Iluminação: Buscando e apresentando a luz de Cristo; 3.º dia – Esperança: Mensagem de Paulo; 4.º dia – Confiança: Não tenha medo, creia; 5.º dia – Fortalecimento: Partilhando pão para a viagem; 6.º dia – Hospitalidade: Demonstre benevolência fora do comum; 7.º dia – Conversão: Mudando nossos corações e mentes; 8.º dia – Generosidade: Recebendo e dando.
***
Espera-se que os cristãos e as comunidades cristãs tenham levado a peito esta Semana de Oração. Se não o fizeram, ainda estão a tempo, pois, segundo o espírito dos promotores, estes temas e dinâmica são para todo o ano. Os materiais podem ser colhidos em:
2020.01.25 – Louro de Carvalho