Depois do
prólogo teológico sobre o Verbo de Deus, que era desde o princípio, por quem
tudo foi criado e que se fez carne (sárx, em grego)
e habitou em nós (fez a tenda – eskénêsen, em grego –
junto de nós, em nós),
que é a luz que ilumina o homem que veio a este mundo e que, tendo vindo para o
que é seu, os seus não O receberam, segue-se no 4.º Evangelho o testemunho de
João Batista. E o núcleo fundamental do seu testemunho às multidões foi dar
testemunho e ter clamado:
“Este
era aquele de quem eu disse: ‘O que vem depois de mim passou-me à frente,
porque existia antes de mim.’ Todos nós participamos da sua plenitude,
recebendo graça sobre graça. A Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a
verdade vieram-nos por Jesus Cristo. A Deus jamais alguém o viu. O Filho
Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, é quem o deu a conhecer.” (Jo
1,15-18).
João dá
testemunho (martyreî, presente do indicativo) e clamou (kékagren,
pretérito perfeito). Temos
a poderosa junção do presente e do perfeito. Como o perfeito grego transmite o resultado
presente duma ação do passado, podemos inferir o caráter permanente do
testemunho do Batista.
Depois, começa
o primeiro ciclo da manifestação de Jesus (este ciclo abrange Jo 1,19 – 4,54). Importa aqui refletir sobre o
testemunho do Batista perante os sacerdotes e levitas que as autoridades
judaicas lhe enviaram para que ele dissesse quem era, já que pregava e batizava
as multidões e, sobretudo, o seu testemunho perante as multidões e os seus próprios
discípulos.
Às autoridades
fez saber que não é o Messias, mas “a voz de quem grita no deserto: Retificai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías” (vd Jo 1,23). E, questionado porque batiza não sendo o profeta,
respondeu que apenas batiza em água, mas que no meio deles estava já quem não conheciam:
aquele que veio a seguir a ele e de quem não é digno de desatar as sandálias.
Porém, no
dia seguinte, o seu testemunho é mais explícito. Ao ver que Jesus, que batizara
no Jordão, se aproximava, exclamou: “Eis
o cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo”. E acrescentou: “É aquele de quem eu disse: ‘Depois de mim vem um homem que me
passou à frente, porque existia antes de mim’.” (Jo 1,29.30).
Refira-se,
antes de mais, que aqui é o cordeiro, o que tira o pecado – não só os pecados pessoais
deste ou daquele indivíduo, mas o pecado enquanto raiz de todo o mal e de todos
os erros. Tanto assim é que o texto grego refere no acusativo do singular “tèn
amartían” e não no plural “tàs amartías”. E temos a seguir a “Íde ho amnós toû
Theoû, a repetição do artigo definido “ho” como determinante do particípio presente
“aírôn” (agente
de ação) – o que
tira. E não se diz que tira o pecado do homem, mas do mundo – “toû kósmou”. É diferente
o caso do paralítico de Cafarnaum que os amigos desceram do teto, depois de
terem arrombado a cobertura da casa onde Jesus estava a ensinar. Jesus disse:
Tem confiança, filho, os teus pecados estão perdoados – “Thársei, técnon, aphéôntai
sou ai amartiái”. Trata-se aqui dos pecados pessoais, como passou para a liturgia
na versão “Agnus Dei qui tollis peccata mundi…”, sendo que a tradução oficial litúrgica
portuguesa, com engulhos de alguns, retoma o sentido de João 1,29 – mais radical.
E, no
dia seguinte, João encontrava-se ali com dois dos seus discípulos e, pondo o
olhar em Jesus, que passava, testemunhou: “Eis
o cordeiro de Deus”.
A razão
por que o Batista pôde dar testemunho é a de que, além de ter sido vocacionado
como precursor do Messias, preparando-lhe assim o caminho (“foi para Ele se manifestar a Israel que eu vim batizar
com água”),
ele batizou Jesus e pôde contemplar o que se passou:
“Vi o Espírito que descia do céu como uma
pomba e permanecia sobre Ele. E eu não o conhecia, mas quem me enviou a batizar
com água é que me disse: ‘Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre
Ele é o que batiza com o Espírito Santo’. Pois bem: eu vi e dou testemunho de
que este é o Filho de Deus.” (Jo
1,32-34).
Conhecemos pelos sinóticos o episódio do batismo de Jesus:
depois do batismo, Jesus pôs-se a orar, os céus abriram-se. E Jesus viu o
Espírito Santo a descer sob a forma de pomba a permanecer sobre si e, ao mesmo
tempo, uma voz clamava: Este é o meu
Filho muito amado em quem pus toda a minha complacência. (cf Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22). E, como Jesus
viu e ouviu, também João viu e ouviu.
João Batista, com o seu testemunho, além de precursor, é o
apresentador de Jesus. E o autor do 4.º Evangelho, também chamado João, faz uma
catequese cristo-messiânica através de duas asserções de profundo impacto
teológico: é o cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo; e é o Filho de
Deus com a plenitude do Espírito e que batiza no Espírito.
A primeira asserção evoca duas sugestivas imagens da tradição
bíblica: a do “servo sofredor”, o cordeiro levado para o matadouro, que assume
os pecados do seu Povo e realiza a expiação (cf Is
52,13-53,12); e a do cordeiro pascal, símbolo da ação libertadora de Deus
em favor de Israel (cf Ex 12,1-28). Em qualquer
dos casos, se sugere que Jesus é o libertador dos homens. Cristo imolado
é a nossa Páscoa. É o que o Novo Testamento assume e a Liturgia canta.
A ideia é, aliás, explicitada pela definição da missão de
Jesus: veio para eliminar “o pecado do mundo”, o “pecado” fontal que oprime o
ser humano e o leva à recusa da proposta de vida com que Deus, desde sempre,
quis presentear a humanidade. O “mundo” designa aqui a humanidade que resiste à
salvação, reduzida à escravidão e que recusa a luz/vida que Jesus lhe oferece.
A segunda asserção completa a primeira. Há, de facto, aqui
vários elementos sugestivos: o “cordeiro” é o Filho de Deus, recebeu a
plenitude do Espírito e tem por missão batizar os homens no Espírito. Assim,
Jesus é o Deus que encarna, vem ao encontro dos homens e arma a sua tenda (em grego, skênê, a
traduzir a palavra hebraica que significa tabernáculo) no meio dos
homens – em nós (no grego, en hêmin) para lhes oferecer a plenitude da
vida erradicando “o pecado” que escraviza o homem e o impede de abrir o coração
a Deus e aos irmãos. Por seu turno, o Espírito desce sobre Jesus e nele
permanece, ou seja, confere-lhe a plenitude da vida divina com toda a sua indizível
riqueza e amor infinito e, ungindo-o, investe-o na missão messiânica. Retoma-se
o quadro do Deuteroisaías, onde aparece como o eleito de Jahwéh o “Servo” sobre
quem Deus derramou o seu Espírito (cf Is
42,1),
a quem ungiu e enviou para “anunciar a Boa Nova aos pobres, curar os corações
destroçados, proclamar a libertação aos cativos, anunciar aos prisioneiros a
liberdade” (Is 61,1-2; cf Lc 4,18-19). Jesus é
aquele que batiza no Espírito Santo.
O verbo grego “baptízô” tem dois sentidos: “submergir” e
“empapar” (como a chuva empapa a terra). Mas implica sempre
um contacto com a água. “Batizar no Espírito” significa, assim, um contacto
total entre o Espírito e o homem. A missão de Jesus consiste, pois, em derramar
o Espírito sobre o homem; e o homem que adere a Jesus, transformado por
essa fonte de vida, abandona a experiência da escuridão e alcança o seu pleno
desenvolvimento na luz e na paz.
As asserções testemunhais do Batista impelem os homens de
todos os tempos a voltarem-se para Jesus e a acolherem a proposta libertadora
que Ele faz em nome de Deus. E, a partir do encontro com Jesus, é possível
chegar à meta final do Homem Novo, porque Ele é verdadeiramente o Cordeiro de
Deus, o que tira o pecado do mundo.
Por tudo, graças a Deus!
2020.01.19
– Louro de Carvalho
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