domingo, 19 de janeiro de 2020

Eis o Cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo


Depois do prólogo teológico sobre o Verbo de Deus, que era desde o princípio, por quem tudo foi criado e que se fez carne (sárx, em grego) e habitou em nós (fez a tenda – eskénêsen, em grego – junto de nós, em nós), que é a luz que ilumina o homem que veio a este mundo e que, tendo vindo para o que é seu, os seus não O receberam, segue-se no 4.º Evangelho o testemunho de João Batista. E o núcleo fundamental do seu testemunho às multidões foi dar testemunho e ter clamado:
Este era aquele de quem eu disse: ‘O que vem depois de mim passou-me à frente, porque existia antes de mim.’ Todos nós participamos da sua plenitude, recebendo graça sobre graça. A Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo. A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, é quem o deu a conhecer.” (Jo 1,15-18).
João dá testemunho (martyreî, presente do indicativo) e clamou (kékagren, pretérito perfeito). Temos a poderosa junção do presente e do perfeito. Como o perfeito grego transmite o resultado presente duma ação do passado, podemos inferir o caráter permanente do testemunho do Batista.
Depois, começa o primeiro ciclo da manifestação de Jesus (este ciclo abrange Jo 1,19 – 4,54). Importa aqui refletir sobre o testemunho do Batista perante os sacerdotes e levitas que as autoridades judaicas lhe enviaram para que ele dissesse quem era, já que pregava e batizava as multidões e, sobretudo, o seu testemunho perante as multidões e os seus próprios discípulos.
Às autoridades fez saber que não é o Messias, mas “a voz de quem grita no deserto: Retificai o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías” (vd Jo 1,23). E, questionado porque batiza não sendo o profeta, respondeu que apenas batiza em água, mas que no meio deles estava já quem não conheciam: aquele que veio a seguir a ele e de quem não é digno de desatar as sandálias.  
Porém, no dia seguinte, o seu testemunho é mais explícito. Ao ver que Jesus, que batizara no Jordão, se aproximava, exclamou: “Eis o cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo”. E acrescentou: “É aquele de quem eu disse: ‘Depois de mim vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de mim’.(Jo 1,29.30).
Refira-se, antes de mais, que aqui é o cordeiro, o que tira o pecado – não só os pecados pessoais deste ou daquele indivíduo, mas o pecado enquanto raiz de todo o mal e de todos os erros. Tanto assim é que o texto grego refere no acusativo do singular “tèn amartían” e não no plural “tàs amartías”. E temos a seguir a “Íde ho amnós toû Theoû, a repetição do artigo definido “ho” como determinante do particípio presente “aírôn” (agente de ação) – o que tira. E não se diz que tira o pecado do homem, mas do mundo – “toû kósmou”. É diferente o caso do paralítico de Cafarnaum que os amigos desceram do teto, depois de terem arrombado a cobertura da casa onde Jesus estava a ensinar. Jesus disse: Tem confiança, filho, os teus pecados estão perdoados – “Thársei, técnon, aphéôntai sou ai amartiái”. Trata-se aqui dos pecados pessoais, como passou para a liturgia na versão “Agnus Dei qui tollis peccata mundi…”, sendo que a tradução oficial litúrgica portuguesa, com engulhos de alguns, retoma o sentido de João 1,29 – mais radical.
E, no dia seguinte, João encontrava-se ali com dois dos seus discípulos e, pondo o olhar em Jesus, que passava, testemunhou: “Eis o cordeiro de Deus”.
A razão por que o Batista pôde dar testemunho é a de que, além de ter sido vocacionado como precursor do Messias, preparando-lhe assim o caminho (“foi para Ele se manifestar a Israel que eu vim batizar com água), ele batizou Jesus e pôde contemplar o que se passou:
Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre Ele. E eu não o conhecia, mas quem me enviou a batizar com água é que me disse: ‘Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre Ele é o que batiza com o Espírito Santo’. Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.” (Jo 1,32-34).
Conhecemos pelos sinóticos o episódio do batismo de Jesus: depois do batismo, Jesus pôs-se a orar, os céus abriram-se. E Jesus viu o Espírito Santo a descer sob a forma de pomba a permanecer sobre si e, ao mesmo tempo, uma voz clamava: Este é o meu Filho muito amado em quem pus toda a minha complacência. (cf Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22). E, como Jesus viu e ouviu, também João viu e ouviu.
João Batista, com o seu testemunho, além de precursor, é o apresentador de Jesus. E o autor do 4.º Evangelho, também chamado João, faz uma catequese cristo-messiânica através de duas asserções de profundo impacto teológico: é o cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo; e é o Filho de Deus com a plenitude do Espírito e que batiza no Espírito.
A primeira asserção evoca duas sugestivas imagens da tradição bíblica: a do “servo sofredor”, o cordeiro levado para o matadouro, que assume os pecados do seu Povo e realiza a expiação (cf Is 52,13-53,12); e a do cordeiro pascal, símbolo da ação libertadora de Deus em favor de Israel (cf Ex 12,1-28). Em qualquer dos casos, se sugere que Jesus é o libertador dos homens. Cristo imolado é a nossa Páscoa. É o que o Novo Testamento assume e a Liturgia canta.
A ideia é, aliás, explicitada pela definição da missão de Jesus: veio para eliminar “o pecado do mundo”, o “pecado” fontal que oprime o ser humano e o leva à recusa da proposta de vida com que Deus, desde sempre, quis presentear a humanidade. O “mundo” designa aqui a humanidade que resiste à salvação, reduzida à escravidão e que recusa a luz/vida que Jesus lhe oferece.
A segunda asserção completa a primeira. Há, de facto, aqui vários elementos sugestivos: o “cordeiro” é o Filho de Deus, recebeu a plenitude do Espírito e tem por missão batizar os homens no Espírito. Assim, Jesus é o Deus que encarna, vem ao encontro dos homens e arma a sua tenda (em grego, skênê, a traduzir a palavra hebraica que significa tabernáculo) no meio dos homens – em nós (no grego, en hêmin) para lhes oferecer a plenitude da vida erradicando “o pecado” que escraviza o homem e o impede de abrir o coração a Deus e aos irmãos. Por seu turno, o Espírito desce sobre Jesus e nele permanece, ou seja, confere-lhe a plenitude da vida divina com toda a sua indizível riqueza e amor infinito e, ungindo-o, investe-o na missão messiânica. Retoma-se o quadro do Deuteroisaías, onde aparece como o eleito de Jahwéh o “Servo” sobre quem Deus derramou o seu Espírito (cf Is 42,1), a quem ungiu e enviou para “anunciar a Boa Nova aos pobres, curar os corações destroçados, proclamar a libertação aos cativos, anunciar aos prisioneiros a liberdade” (Is 61,1-2; cf Lc 4,18-19). Jesus é aquele que batiza no Espírito Santo.
O verbo grego “baptízô” tem dois sentidos: “submergir” e “empapar” (como a chuva empapa a terra). Mas implica sempre um contacto com a água. “Batizar no Espírito” significa, assim, um contacto total entre o Espírito e o homem. A missão de Jesus consiste, pois, em derramar o Espírito sobre o homem; e o homem que adere a Jesus, transformado por essa fonte de vida, abandona a experiência da escuridão e alcança o seu pleno desenvolvimento na luz e na paz.
As asserções testemunhais do Batista impelem os homens de todos os tempos a voltarem-se para Jesus e a acolherem a proposta libertadora que Ele faz em nome de Deus. E, a partir do encontro com Jesus, é possível chegar à meta final do Homem Novo, porque Ele é verdadeiramente o Cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo.
Por tudo, graças a Deus!
2020.01.19 – Louro de Carvalho

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