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O
português que se ensina na escola, com vista à prática fluente, desenvolta e
culta, é predominantemente a língua-padrão através da gramática normativa. Digo
predominantemente porque, a par das regras fonomorfológicas, sintáticas e
semânticas que enformam a gramática normativa, os programas de ensino atêm-se
abundantemente aos diversos registos de língua, remetendo recorrentemente para
a língua corrente, para a língua do povo genuíno, para a língua familiar ou
coloquial (em que tantas vezes damos uns pontapés na gramática
normativa, usamos os diminutivos, os hipocorismos familiares, as abreviações,
as designações impróprias…),
para a linguagem técnica e científica (própria das diversas
artes e ofícios e das diversas ciências),
para a língua de grupos sociais e/ou profissionais
(a gíria), para a
linguagem de rua ou de bairro e de marginais (o calão, com
termos soezes, palavrões, apoucamentos…),
tal como se remete para a poesia e se pratica, a qual é tantas vezes palco de
licenças poéticas que se demarcam da norma da língua – pela dificuldade
sintática (anacolutos, anástrofe e hipérbato), pelo vocabulário mais raro ou
empregue em contexto mais sentimentalista ou profundo ou pelo estilo acima do
médio, tantas vezes sublime.
Em certa
medida, a gramática que a escola ensina hoje vagueia, por vezes, pela vertente
descritiva em que emerge a pragmática, a comunicação em situação, o significado
dos diversos atos ilocutórios, o valor modal, os regionalismos e os populismos
linguísticos.
Obviamente
a língua-padrão que a escola ensina, embora geralmente possa coincidir com a
língua materna, pode também não coincidir. Esta é a que o ser humano aprende na
infância até aos 5/6 anos. A este respeito, David Crystal (in
A Dictionary of Linguistics and Phonetics) regista o termo “native speaker”,
o falante nativo, para designar o indivíduo que, tendo em criança adquirido uma
língua particular, possui as intuições e os juízos mais seguros sobre o
funcionamento da mesma – o que explica que a investigação linguística considera
como mais fiável a informação obtida junto de falantes nativos. Não obstante,
muitas pessoas conseguem falar uma segunda língua como se fosse a materna e
outras aprenderam duas ou mais línguas na primeira infância. São casos de bilinguismo
e até polilinguismo.
Ora,
segundo Carlos Rocha (in Ciberdúvidas
da Língua Portuguesa, site hoje consultado), Língua-padrão é a maneira de falar e escrever
considerada correta por uma dada comunidade. Historicamente, é uma modalidade
linguística que, servindo para controlar a variação dialectal inerente aos
sistemas linguísticos, se tornou um meio de comunicação unificado nos ‘media’ e
no ensino.
A
definição de língua-padrão conduz à discussão do que é a norma duma língua. Para
Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pg 4), a língua-padrão corresponde a “uma
entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa, porque atua
como modelo, como norma, como ideal linguístico de uma comunidade”. Serve de
apoio a este enunciado a reflexão de Eugénio Coseriu a assinalar que, se uma
língua pode abarcar vários sistemas, poderá abranger várias normas “que
representam modelos, escolhas que se consagraram dentro das possibilidades de
realizações de um sistema linguístico”.
Já
Evanildo Bechara (Moderna
Gramática da Língua Portuguesa, 2003, pg 37) define “língua histórica” como um “produto cultural
histórico, constituída como unidade ideal, reconhecida pelos falantes nativos
ou por falantes de outras línguas e praticada por todas as comunidades
integrantes desse domínio linguístico”. Este gramático não usa o termo
língua-padrão, mas fala da norma, da língua comum, língua exemplar. Assim,
refere que norma é tudo o “que é tradicional, comum e constante” ou, por outras
palavras, tudo o que se diz “assim e não de outra maneira”. Língua comum é uma
“unidade linguística ideal – que nem sempre cala o prestígio de outros dialetos
nem afoga localismos linguísticos”. E, com base em Eugénio Coseriu, refere-se à
língua exemplar como “um tipo de outra língua comum, mais disciplinada,
normatizada idealmente, mediante a eleição de usos fonético-fonológicos,
gramaticais e léxicos como padrões exemplares a toda a comunidade e a toda a
nação, a serem praticados em determinadas situações sociais, culturais e
administrativas do intercâmbio superior”. Por isso, fala da “exemplaridade do português
do Brasil ao lado da exemplaridade do português de Portugal”, o que significará
que se refere a dois padrões ou duas normas diferentes no domínio da língua
portuguesa.
***
Admitindo
que na linguagem coloquial se dispense muitas vezes o rigor da correção
gramatical, nem por isso se dispensa a abundância, a diversidade e a riqueza
vocabular. E a linguagem corrente – e, por maioria de razão, a linguagem das pessoas
cultas e dos comunicadores (jornalistas, locutores de rádio,
apresentadores de TV, técnicos de marketing, relações públicas, advogados,
políticos, eclesiásticos, professores, formadores, chefes militares,
administradores…) – postula
a correção gramatical, tal como o exige a linguagem verbal ou escrita entre a
administração pública e empresarial e os administrados e clientes. Para tanto,
há que dar atenção assídua à leitura, que pode ser em suporte digital, mas sem
esquecer a leitura de textos em suporte de papel. E, entre as leituras a
selecionar, devem privilegiar-se as dos grandes escritores portugueses ou
estrangeiros desde que a tradução para português seja boa.
Ora, o
mal está precisamente na falta de leituras ou de boas leituras. As pessoas leem
muito pouco e muitas vezes arriscam-se a escrever. E escrevem como falam, não
sabendo que o código escrito é diferente do oral, que é menos formal, pois,
muitas vezes, pratica-se sem refletir o suficiente. Por outro lado, campeia a
pobreza de vocabulário e a falta de assunção das estruturas da língua. Ver
filmes e telenovelas não substitui a leitura do romance e da novela escritos. O
filme e a novela não fazem as descrições (vemos os ambientes, mas
sem nos fornecerem as palavras e as técnicas da descrição) nem fazem a narrativa, que apreendemos
pela sequência das cenas, mas sem palavras e técnicas narrativas para a
sequencialização, para os resumos e saltos.
Os
auscultadores, telemóveis e tablets ocupam demasiado as pessoas, sobretudo os jovens,
que não dispõem de amplitude vocabular, falam por monossílabos, síncopes,
abreviações, siglas, acrónimos e clichés, não aguentam uma conversa corrente,
veem filmes e vídeos mal legendados.
E os apresentadores
de televisão, jornalistas e detentores de cargos públicos fazem tudo menos
falar de modo que se perceba e escrever corretamente. Interessa-lhes mais o espetáculo,
o saltimbanquismo, que a língua. E os ouvintes e espectadores aplaudem. Perdem-se
no trivial e evitam a correta sintaxe; perdem-se no estrangeirismo
desnecessário. E a universidade privilegia o inglês em detrimento do português.
Não temos palavras para a ciência, para a técnica ou é o servilismo bacoco ao
estrangeiro (disfarçado de ciência, técnica, cosmopolitismo) que impera?
E acenam
com políticas da língua para português ler e inglês ver! Ora, a primeira condição
para a política da língua é falá-la correntemente e escrevê-la corretamente e
com elevação, não lhe retirar espaço na escola, na universidade, na comunidade científica,
na atividade técnica e artística e granjear-lhe espaço em todos os fóruns internacionais.
Porém, temos de compreender que não é apenas o português de Portugal que tem de
ficar de pé. A lusofonia é bem mais ampla.
2020.01.23 –
Louro de Carvalho
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