quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Porque se torna difícil praticar o português que se ensina na escola…


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O português que se ensina na escola, com vista à prática fluente, desenvolta e culta, é predominantemente a língua-padrão através da gramática normativa. Digo predominantemente porque, a par das regras fonomorfológicas, sintáticas e semânticas que enformam a gramática normativa, os programas de ensino atêm-se abundantemente aos diversos registos de língua, remetendo recorrentemente para a língua corrente, para a língua do povo genuíno, para a língua familiar ou coloquial (em que tantas vezes damos uns pontapés na gramática normativa, usamos os diminutivos, os hipocorismos familiares, as abreviações, as designações impróprias…), para a linguagem técnica e científica (própria das diversas artes e ofícios e das diversas ciências), para a língua de grupos sociais e/ou profissionais (a gíria), para a linguagem de rua ou de bairro e de marginais (o calão, com termos soezes, palavrões, apoucamentos…), tal como se remete para a poesia e se pratica, a qual é tantas vezes palco de licenças poéticas que se demarcam da norma da língua – pela dificuldade sintática (anacolutos, anástrofe e hipérbato), pelo vocabulário mais raro ou empregue em contexto mais sentimentalista ou profundo ou pelo estilo acima do médio, tantas vezes sublime.
Em certa medida, a gramática que a escola ensina hoje vagueia, por vezes, pela vertente descritiva em que emerge a pragmática, a comunicação em situação, o significado dos diversos atos ilocutórios, o valor modal, os regionalismos e os populismos linguísticos.     
Obviamente a língua-padrão que a escola ensina, embora geralmente possa coincidir com a língua materna, pode também não coincidir. Esta é a que o ser humano aprende na infância até aos 5/6 anos. A este respeito, David Crystal (in A Dictionary of Linguistics and Phonetics) regista o termo “native speaker”, o falante nativo, para designar o indivíduo que, tendo em criança adquirido uma língua particular, possui as intuições e os juízos mais seguros sobre o funcionamento da mesma – o que explica que a investigação linguística considera como mais fiável a informação obtida junto de falantes nativos. Não obstante, muitas pessoas conseguem falar uma segunda língua como se fosse a materna e outras aprenderam duas ou mais línguas na primeira infância. São casos de bilinguismo e até polilinguismo.
Ora, segundo Carlos Rocha (in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, site hoje consultado), Língua-padrão é a maneira de falar e escrever considerada correta por uma dada comunidade. Historicamente, é uma modalidade linguística que, servindo para controlar a variação dialectal inerente aos sistemas linguísticos, se tornou um meio de comunicação unificado nos ‘media’ e no ensino.
A definição de língua-padrão conduz à discussão do que é a norma duma língua. Para Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pg 4), a língua-padrão corresponde a “uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa, porque atua como modelo, como norma, como ideal linguístico de uma comunidade”. Serve de apoio a este enunciado a reflexão de Eugénio Coseriu a assinalar que, se uma língua pode abarcar vários sistemas, poderá abranger várias normas “que representam modelos, escolhas que se consagraram dentro das possibilidades de realizações de um sistema linguístico”.
Já Evanildo Bechara (Moderna Gramática da Língua Portuguesa, 2003, pg 37) define “língua histórica” como um “produto cultural histórico, constituída como unidade ideal, reconhecida pelos falantes nativos ou por falantes de outras línguas e praticada por todas as comunidades integrantes desse domínio linguístico”. Este gramático não usa o termo língua-padrão, mas fala da norma, da língua comum, língua exemplar. Assim, refere que norma é tudo o “que é tradicional, comum e constante” ou, por outras palavras, tudo o que se diz “assim e não de outra maneira”. Língua comum é uma “unidade linguística ideal – que nem sempre cala o prestígio de outros dialetos nem afoga localismos linguísticos”. E, com base em Eugénio Coseriu, refere-se à língua exemplar como “um tipo de outra língua comum, mais disciplinada, normatizada idealmente, mediante a eleição de usos fonético-fonológicos, gramaticais e léxicos como padrões exemplares a toda a comunidade e a toda a nação, a serem praticados em determinadas situações sociais, culturais e administrativas do intercâmbio superior”. Por isso, fala da “exemplaridade do português do Brasil ao lado da exemplaridade do português de Portugal”, o que significará que se refere a dois padrões ou duas normas diferentes no domínio da língua portuguesa.
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Admitindo que na linguagem coloquial se dispense muitas vezes o rigor da correção gramatical, nem por isso se dispensa a abundância, a diversidade e a riqueza vocabular. E a linguagem corrente – e, por maioria de razão, a linguagem das pessoas cultas e dos comunicadores (jornalistas, locutores de rádio, apresentadores de TV, técnicos de marketing, relações públicas, advogados, políticos, eclesiásticos, professores, formadores, chefes militares, administradores…) – postula a correção gramatical, tal como o exige a linguagem verbal ou escrita entre a administração pública e empresarial e os administrados e clientes. Para tanto, há que dar atenção assídua à leitura, que pode ser em suporte digital, mas sem esquecer a leitura de textos em suporte de papel. E, entre as leituras a selecionar, devem privilegiar-se as dos grandes escritores portugueses ou estrangeiros desde que a tradução para português seja boa.
Ora, o mal está precisamente na falta de leituras ou de boas leituras. As pessoas leem muito pouco e muitas vezes arriscam-se a escrever. E escrevem como falam, não sabendo que o código escrito é diferente do oral, que é menos formal, pois, muitas vezes, pratica-se sem refletir o suficiente. Por outro lado, campeia a pobreza de vocabulário e a falta de assunção das estruturas da língua. Ver filmes e telenovelas não substitui a leitura do romance e da novela escritos. O filme e a novela não fazem as descrições (vemos os ambientes, mas sem nos fornecerem as palavras e as técnicas da descrição) nem fazem a narrativa, que apreendemos pela sequência das cenas, mas sem palavras e técnicas narrativas para a sequencialização, para os resumos e saltos.  
Os auscultadores, telemóveis e tablets ocupam demasiado as pessoas, sobretudo os jovens, que não dispõem de amplitude vocabular, falam por monossílabos, síncopes, abreviações, siglas, acrónimos e clichés, não aguentam uma conversa corrente, veem filmes e vídeos mal legendados.
E os apresentadores de televisão, jornalistas e detentores de cargos públicos fazem tudo menos falar de modo que se perceba e escrever corretamente. Interessa-lhes mais o espetáculo, o saltimbanquismo, que a língua. E os ouvintes e espectadores aplaudem. Perdem-se no trivial e evitam a correta sintaxe; perdem-se no estrangeirismo desnecessário. E a universidade privilegia o inglês em detrimento do português. Não temos palavras para a ciência, para a técnica ou é o servilismo bacoco ao estrangeiro (disfarçado de ciência, técnica, cosmopolitismo) que impera?
E acenam com políticas da língua para português ler e inglês ver! Ora, a primeira condição para a política da língua é falá-la correntemente e escrevê-la corretamente e com elevação, não lhe retirar espaço na escola, na universidade, na comunidade científica, na atividade técnica e artística e granjear-lhe espaço em todos os fóruns internacionais. Porém, temos de compreender que não é apenas o português de Portugal que tem de ficar de pé. A lusofonia é bem mais ampla.
2020.01.23 – Louro de Carvalho

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