É usual os indicados de irregularidades e/ou
crimes queixarem-se de perseguição, caça às bruxas, assassinato político e, no
caso de cidadãos das ex-colónias portuguesas, de vitimização de racismo e
colonialismo.
O caso de Isabel dos Santos, a filha mais velha do homem que presidiu a Angola
durante 38 anos
não foge à regra, antes a amplia.
O Luanda Leaks constitui “fuga” massiva de
documentos anunciada como prova de que a sua mais que milionária fortuna foi
construída com base em nepotismo e negócios duvidosos, à custa de Angola e dos
angolanos e com o envolvimento de portugueses.
No epicentro
do caso esta um email
da firma de advogados PMLJ dirigido
a um Vasco:
“Como
combinado, junto enviamos proposta do Decreto-Presidencial. A lei (quer a lei
das terras quer a urbanística) fala em resolução do conselho de ministros, mas
é anterior à nova Constituição da República Angolana de 2010). Nesse sentido,
hoje, será um decreto-presidencial. Tentámos abranger (mas não de forma
descarada) todos os pontos. Naturalmente, estamos à tua disposição para
qualquer alteração. Vou-te ligar para saber se necessitas de mais alguma coisa.
Obrigado.” (vd DN, de 20.01.2020).
De
assinatura tapada, o email provirá de Diogo Duarte de Campos, um dos sócios da
firma e “coordenador da área do público”, pois é o seu nome que surge em baixo
como identificação formatada tal como o da firma.
Segundo o
texto do CIJI (Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação) – consórcio que inclui o The Guardiam, a BBC, o New
Yor Times, o Expresso e a SIC –, o tema do email referente à forma “como a mulher mais rica
de África explorou laços familiares, empresas fantasma e contratos duvidosos
para construir um império”, é o decreto do presidente José Eduardo dos Santos
para aprovar o empreendimento imobiliário “Marginal da Corimba”, a autorizar
que o Governo a celebrar contrato com uma concessionária à qual se dão “poderes
excecionais da função e autoridade pública urbanística”, ou seja, a Landscape, detida
por Isabel dos Santos. E a minuta do decreto terá sido elaborada pelos seus advogados
portugueses.
O predito email,
com o respetivo anexo, é apenas um dos 715 mil documentos do Luanda Leaks, o conjunto de mails,
contratos, auditorias e outros documentos que foi obtido pela PPLAAF, Platform
to Protect Whistleblowers in Africa, uma organização anticorrupção que o
entregou ao CIJI. E, ainda no atinente ao empreendimento imobiliário em
referência, os documentos incluem emails de Isabel dos Santos que evidenciam
que a sua empresa recebeu, para o trabalho referente a estradas, propostas de
duas empresas portuguesas e de uma chinesa (a China Road and Bridge Corp). Um mês depois, a Landscape anunciava que a empresa
chinesa tinha ganhado o concurso com uma proposta que custava mais 50 milhões
que a proposta mais baixa. Essa empresa chinesa, uma das mais escolhidas pelo
governo angolano para empreitadas, estava, no momento em que foi escolhida,
proibida de participar em qualquer projeto financiado pelo Banco Mundial,
devido a alegações de que estaria envolvida em práticas fraudulentas
relacionadas com obras de estradas nas Filipinas.
Duas empresas de Isabel terão recebido 531 milhões, mais de 40% do total
do investimento, e não se sabe com quanto desse montante ficaram depois de
pagarem a subcontratadas, sendo que a empresária disse à BBC que não ganhou nada com o negócio. Outro conjunto de documentos demonstra que o projeto teve uma derrapagem
de 232,5 milhões e um jurista do Ministério das Finanças de Angola comunicou a
alguém duma dessas empresas que não seria possível cobri-la. Porém, Isabel terá
respondido, através do seu iPhone, que não era problema, pois ia falar com o
Ministério (vd DN, de 20 de janeiro).
Os documentos,
que durante 7 meses atraíram a atenção do CIJI, revelam uma rede de 400
empresas, muitas delas offshore, relacionadas com Isabel dos Santos
e o marido Sindika Dokolo, assim como a assistência que lhes foi dada por uma
série de consultores e juristas europeus e americanos, incluindo portugueses. A revelação destes documentos surge três semanas
depois do arresto de bens de que Isabel foi alvo por ordem da justiça
angolana e quando José
Filomeno dos Santos, seu meio-irmão, está a ser julgado por alegadamente ter tentado
ficar com meio milhão de dólares do Fundo Soberano de Angola, para cujo conselho
de administração o pai o tinha nomeado aquando da sua criação em 2012.
Isabel dos
Santos fala em “caça às bruxas”, “perseguição política”, racismo e colonialismo,
tendo dado várias entrevistas – uma das quais à RTP no dia 15 – nos últimos dias
e passado grande parte do dia 19 no Twitter a refutar as acusações e a apelidar
de mentirosos jornalistas e a ex-eurodeputada Ana Gomes, que recentemente levou
a tribunal por causa de twites em que a socialista lhe imputava lavagem de
dinheiro, entre outras acusações.
Podem os documentos revelados não consubstanciar essa acusação, mas haverá
evidências de promiscuidade e nepotismo, além de
práticas fraudulentas, como a que parece evidenciar um documento respeitante a
um empréstimo efetuado pela empresa de comunicações móveis Unitel à empresa
holandesa Jadeium, identificada como uma empresa fantasma de Isabel, que como
presidente do conselho de administração da Unitel assinou o documento do
empréstimo pela Unitel e pela Jadeium, ou seja, simultaneamente como
emprestadora e tomadora de empréstimo.
E não terá
sido este o único empréstimo efetuado pela Unitel a uma empresa holandesa de
Isabel: em 2013, a portuguesa PT Ventures, acionista da Unitel, questionou a
legalidade duma transferência de 460 milhões para a Unitel International
Holdings, também da empresária angolana. E a PT Ventures viria a fazer uma
denúncia formal na Câmara de Comércio de Paris, alegando que centenas de
milhões em empréstimos efetuados pela Unitel àquelas empresas fantasma eram
esquema para pilhar os ativos da Unitel em benefício da bilionária angolana.
Haverá, diz-se, também evidência de fluxos financeiros na esfera de
empresas da senhora Dos Santos e marido, pois terão sido questionadas por
auditores e por gerentes de companhias fantasma, caso de John Murphy, que dirigia uma empresa dessas sediada no offshore da
Ilha de Man que era usada pela empresária para negócios imobiliários em
Londres, e que descobriu que 50 milhões tinham misteriosamente ‘aterrado na
conta da empresa.
A rede de
empresas envolvidas – em março de 2013, quando Isabel dos Santos foi integrada
pela revista americana Forbes na lista dos bilionários, como a única mulher
africana, o casal Isabel dos Santos e Sindika Dokolo tinha já criado ou
investido em pelo menos 94 empresas em 19 países, um terço das quais empresas
fantasma ou “shell companies” (denominação para empresas veículos
ou carapaças para transferência de fundos) – torna a investigação e compreensão dos fluxos financeiros da empresária
angolana, e também russa, um verdadeiro quebra-cabeças. Só em Portugal tem
parcelas no banco EUROBIC, NOS. Galp e Efacec.
O banco já
cortou relações comerciais com Isabel dos Santos; o Banco de Portugal vai
prestar atenção ao caso; e o Ministério Público português, bem como o angolano,
promete analisar toda a informação disponibilizada e desencadear os
procedimentos adequados.
Isabel dos
Santos, como era de esperar, em comunicado hoje enviado às redações, protesta a
sua inocência, acusa a ilegalidade da obtenção dos sobreditos documentos,
perguntando a quem beneficiará tal obtenção ilegal, fala de “ataque político orquestrado e bem coordenado, numa tentativa de me neutralizar”
e chora lágrimas de crocodilo por “milhares de empregos nas empresas angolanas
das quais faço parte” que “podem ser prejudicados”.
***
Ora, discute-se a validade do alarido
ora surgido na opinião pública em torno dos putativos desmandos de Isabel dos
Santos, quando o angolano Rafael Marques se esfalfou por tudo quanto é sítio a
denunciar o caso, entre outros, apontando o dedo aos poderes angolanos e a
portugueses e às nossas instituições. E tudo ficou em silêncio prudente. Só
queriam apanhar Manuel Vicente!
Que vai fazer o Banco de Portugal? O
mesmo que fez em relação a outros bancos? Dispensa-se.
Que vai fazer o Ministério Público?
Investigar tudo para que tudo fique na mesma por prescrição, falta de provas ou
falta de meios? E os magistrados? Garantirão que desta vez a justiça funciona? É
que ninguém pode ser condenado sem provas e estas serão difíceis de obter, dada
a complexidade do caso.
Quanto a Isabel dos Santos, inocente
até sentença condenatória, se a houver, transitada em julgado, que se deixe de
síndrome de perseguição. Ninguém é racista só por denunciar erros de outrem,
por dizer que “outrem” é angolano, guineense ou simplesmente negro, amarelo ou
vermelho. Só se é racista pelas desrespeitosas atitudes, comportamentos e
discursos.
Quanto a colonialismos, fique sabendo
que Angola é independente desde 11 de novembro de 1975. Talvez o MPLA tenha
assumido posições colonialistas em relação ao povo angolano. Uma presidência de
38 anos é obra pouco democrática, sobretudo se deu para enriquecer ao máximo a
família, a família presidencial, não por excesso de trabalho, educação, sorte,
inteligência e habilidade. E é discutível qual guerra fez mais vítimas: a
colonial ou a civil.
Por isso, a política à política, os negócios
aos negócios. Racismos, colonialismos e vitimizações não são para aqui
chamados. Há racistas e neocolonialistas em Portugal, certo, mas não são a
maioria. E há-os em muitos outros países, mesmo africanos (o racismo endógeno), e não se lhes viram as costas.
2020.01.20 – Louro de Carvalho
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