sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Uma medida de coação aparentemente justa, mas excessiva na verdade


Foram agredidas, a 15 de janeiro, pelas 11 horas, num gabinete do Tribunal de Família e Menores de Matosinhos, uma juíza e uma procuradora do Ministério Público, tendo as agressões, segundo a ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses), ocorrido no âmbito de uma audiência de regulação do poder parental, por parte duma mulher com cerca de 30 anos, que foi, na sequência do incidente, detida e conduzida às celas do Tribunal de Matosinhos.
A mesma fonte, sem precisar o motivo da discordância, disse que o pai do menor sobre o qual decorria a audiência “estaria presente na diligência”, sendo que a criança está cargo de avós.
“A juíza teve ferimentos ligeiros na face, mas não houve necessidade de recorrer a ajuda hospitalar”, referiu Maximiano Vale, secretário da direção da ASJP, mas, segundo a edição online do Jornal de Notícias, a juíza e a procuradora tiveram de receber assistência médica.
O presidente da ASJP disse ao Público que, depois de uma parte da audiência ter decorrido de forma normal, a mãe da criança “exaltou-se”, “deu um murro na juíza e tentou atingi-la com um candeeiro”. A seguir, “quis virar a mesa, mas a juíza segurou o monitor e impediu que isso acontecesse”. Por seu turno, “a procuradora tentou deter a mãe da criança e foi arranhada”.
Após a agressão, a mulher tentou fugir, mas foi interceptada por um segurança. Começou por ser presente a um JIC (juiz de instrução criminal) de Matosinhos, que pediu que a avaliação da medida de coação fosse feita por outro JIC, na circunstância da Comarca do Porto.
À Rádio Renascença o supradito dirigente sindical lamentou que muitos tribunais não disponham das ferramentas necessárias para dissuadir situações extremas e apontou:   
Há muitos tribunais que não têm seguranças, policiamento, botões de pânico, detetores de metais. Portanto, este tipo de situação pode ocorrer com facilidade noutro tribunal do país.”.
A ASJ manifestou o receio de que situações destas se “banalizem” porque “a generalidade dos tribunais carece de segurança”. Neste sentido, a Direção Regional do Norte da ASJP assinalou:
Há tribunais que pontualmente dispõem dessas ferramentas [de segurança], mas a maioria não. Isto é algo transversal não só à justiça, mas, como temos assistido recentemente, às áreas da saúde e da educação. Os serviços públicos que prestam serviços de relevância muitas vezes lidam com interesses que podem gerar situações conflituantes. Impõe-se uma atenção especial de todos para evitar que estas situações se banalizem.”.
A ASJP diz serem frequentes as agressões a funcionários, testemunhas, arguidos e magistrados e pede que o problema seja resolvido de uma vez por todas. Para Manuel Ramos Soares, estas situações “são frequentes”. É certo que “nem sempre partem para a agressão física, muitas vezes a agressão não chega a consumar-se, mas situações de insultos, ameaças, vidros partidos, acontecem com frequência e às vezes parte-se mesmo para agressões”. As situações mais recentes aconteceram num gabinete pequeno. “Naturalmente, não ia estar lá um polícia sentado, disse, mas a juíza podia ter um botão para acionar o socorro”. Esta é uma das reivindicações da ASJP. “Os tribunais têm de ter áreas reservadas de acesso e circulação, botões de pânico nos gabinetes e salas de audiência, policiamento fardado e armado e um sistema eficaz de controlo de entradas”. E Ramos Soares lembra que “muitos tribunais não tinham pórticos de segurança; alguns passaram a ter, mas já não estão outra vez ativos” e denuncia:
Há pórticos que funcionam com segurança privada, que não pode fazer detenções no caso de alguém aparecer com uma arma. Só pode vedar a entrada. Não há policiamento público na maior parte dos tribunais. Não têm sequer um polícia fardado e com arma no edifício.”.
A ASJP vai solicitar ao Ministério da Justiça uma reunião e quer tratar da matéria com prioridade junto dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, pois critica:
Em Portugal, somos muito bons a fazer planos, mas depois para gastar dinheiro e colocá-los em prática já não somos bons. (…) Também somos bons a dizer que vamos resolver. Não me admiro que apareçam declarações e reuniões nos próximos dias e toda a gente a dizer que vai resolver, até que aconteça a próxima agressão.”.
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A mulher agressora, que ficou em prisão preventiva, medida de coação decretada por um JIC, está indiciada pela prática de três crimes, um de coação contra órgão constitucional e dois crimes de ofensas à integridade física qualificada. O juiz José Rodrigues Cunha, presidente da Comarca do Porto, explicou:
(...) Dado que foi praticado sob duas magistradas e que nessa medida é agravado, entendeu o tribunal que se verificam os requisitos para aplicar a medida de coação mais grave, prisão preventiva, e foi isso que foi decidido. Portanto, a arguida aguardará os termos do processo em prisão preventiva.”.
Em comunicado, o tribunal afirma que o comportamento da arguida foi “extremamente grave” e “altamente censurável”, tendo ainda em conta que o mesmo atingiu “um dos pilares da democracia, dos tribunais, como órgão de soberania a quem incumbe a administração da justiça em nome do povo e a realização do Estado de Direito”. E o comunicado prossegue: 
A atitude da arguida, a forma de realização dos factos, especialmente desvaliosa – desferiu um murro na face, atingindo as zonas do nariz e da boca da juiz [juíza – diria eu] de direito, agarrou e atirou um candeeiro à mesma, como agarrou a secretária levantando-a, inclinando-a em direção da juiz [juíza – diria eu] de direito, desorganizando todos os objetos de trabalho que estavam em cima da mesma. Agarrou e apertou o pescoço da magistrada do MP [Ministério Público] que se encontrava presente à diligência, magoando-a –, não pode deixar de ser fortemente censurável.”.
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O Ministério da Justiça “lamenta profundamente” estas as agressões. Em comunicado, refere que, apesar das condições de segurança existentes no edifício, “não foi possível evitar” a agressão, e garante continuar “fortemente empenhado no reforço” de medidas que protejam os magistrados. E, enquanto “manifesta total solidariedade” às magistradas envolvidas no caso, elenca as medidas de segurança existentes no edifício para onde o tribunal se mudou em agosto de 2018 e que tem condições de segurança melhores do que as existentes no anterior e lamenta:
Não foi possível evitar esta situação apesar de o edifício em causa se encontrar munido de sistema automático de deteção de intrusão, de sistema automático de controlo de acessos nas portas exteriores de acesso ao edifício, de sistema de videovigilância e de pórtico e raquetes de detecção de metais”.
O local tem ainda “três postos de segurança e vigilância privada”, o mais recente dos quais entrou em funcionamento apenas a 8 de janeiro, precisamente “para reforço de segurança”. Porém, apesar de este caso demonstrar que nem sempre é possível evitar casos de agressão, mesmo que existam diversas medidas de segurança, o ministério de Van Dunem garante que não vai desistir de reforçar essas medidas nos tribunais “através da implementação de sistemas automáticos de deteção de intrusão e controlo de acessos, botões de pânico, sistemas de videovigilância e de deteção de metais através de pórtico e de raquete”.
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Obviamente o sucedido é totalmente condenável. Porém, não se entende como, dada a periculosidade de processos destes, as partes são convocadas para um gabinete onde pessoas e materiais estão próximos, e não para um salão de audiências. Não vale dizer, no caso, que há, como meios de segurança, detetores de metais, videovigilância, seguranças, pois a agressão foi manual e com materiais que não foram levados do exterior
Quanto à medida de coação, apesar de a moldura penal do crime perpetrado poder ser superior a 5 anos, não é crível que estivesse iminente o perigo de fuga do país, a perturbação do inquérito ou a continuação do crime. É certo que se alega que a agressora tem antecedentes de agressão a polícias, mas a polícia deve estar precavida e, no caso de magistrados, ela só se aproximará com a autorização de alguém. E só se requer que a segurança dos tribunais, a nível de pessoal e tecnológico, seja reforçada e funcione mesmo.
De resto, como refere o art.º 193.º/2 do CPP (Código do Processo Penal), “a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação” menos gravosas.
Veja-se se o caso da agressora se encaixa nalguma das alíneas do n.º 1 do art.º 202.º do CPP:  
a) houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; b) houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta; c) houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; d) houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; e) houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; f) se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.”.
Espera-se que a justificação de ataque a órgãos constitucionais – os Tribunais são órgãos de soberania e o Ministério Público é protegido constitucionalmente com vista à participação na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania e o exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defesa da legalidade democrática – não se cifre na defesa privilegiada da classe dos juízes e da dos procuradores, não se usando de critério semelhante, embora eventualmente noutra proporção (apenas de grau) para os casos de agressão a outros servidores públicos como os professores e profissionais de saúde, talvez mais expostos.
Quanto ao alarme social que alguns juristas aduzem nestes casos, o que não devíamos dizer de tantos indiciados que andam por aí à solta (por exemplo, assaltantes, banqueiros, alguns políticos, corruptos, corruptores, foragidos à justiça, alguns falidos e insolventes dolosos)! E, ainda quanto a órgãos de soberania, porque não há, por exemplo, medidas de coação contra esses que foram ao Parlamento apoucar a Casa da Democracia e insultar, através dos deputados, todos os portugueses (não se lembram, têm uma vaga ideia; não sabem quanto e a quem pagam rendas, não têm nada em seu nome, mas vivem à grande…)?    
Se calhar, em nome do povo, a justiça protege os seus melhor que os outros. Os JIC não essencialmente os juízes das liberdades, direitos e garantias? Mas aquela agressora não tem direitos, não carece de garantias, não merece ser livre. Mísera sorte, estranha condição!
2020.01.17 – Louro de Carvalho

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