quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Remendo esfarrapado para a falta de professores


A comunicação social deu voz a um comunicado da Direção-Geral da Administração Educativa (DGAE), segundo o qual o Ministério da Educação (ME) quer acabar com a situação dos alunos com falta de aulas em diversas disciplinas.
Há quem chame a esta pretensão com o formato com que foi divulgada um “penso rápido” para a falta de professores. Antes fosse! Ora, porque não resolve o problema, cuja solução está noutras medidas que o ME não quer tomar ou não o pode fazer porque a ditadura das Finanças se mantém persistente, e porque é pior a emenda que o soneto, prefiro chamar-lhe remendo esfarrapado, que deixa o rasgão à vista sem tapar quase nada.
Em síntese, o que é dito é que os professores de línguas estrangeiras podem lecionar Português no 3.º Ciclo e no Ensino Secundário e as aulas de Geografia podem ser dadas por docentes de História no caso das turmas que continuam sem professor. No caso de Português e Inglês, as aulas podem ser dadas por professores de Francês, Alemão e Espanhol, desde que os docentes tenham “estágio pedagógico habilitante” ou “adequada formação científica”. E, no caso da Informática, as aulas podem ser dadas pelos detentores de habilitações de grau superior no âmbito das TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) e por docentes de qualquer outra área, desde que sejam formadores acreditados pelo Conselho Científico Pedagógico da Formação Contínua, nesta área de informática, ou que aí tenham concluído ações de formação.
Assim, o que importa é que “não haja turmas sem docentes”, pelo que a DGAE refere que a existência de horários ainda por preencher no início do 2.º período obriga a “reajustamentos no circuito delineado para a satisfação das necessidades ligadas à docência” de determinadas disciplinas, nomeadamente Português, Inglês, Geografia e Informática.  
Adianta o ME que as orientações da DGAE vêm no sentido de resolver o problema da falta de professores, esclarecendo que não alteram o enquadramento legal no que respeita às competências exigidas aos docentes (até alteram). A este respeito, diz o comunicado:
Estas medidas visam agilizar o processo de recrutamento de docentes, tratando-se de um conjunto de medidas exclusivamente gestionárias, inseridas predominantemente no domínio da distribuição de serviço docente, não modificando o enquadramento legal das competências concursais, garantindo sempre a habilitação profissional dos docentes”.
Filinto Lima, professor, diretor escolar, presidente da ANDAEP (Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas), entende esta medida, mas vê-a como um paliativo ou uma espécie de penso rápido numa doença muito grave, a escassez de professores que atinge várias escolas e determinados grupos disciplinares: uma realidade que não é de agora, mas que se agravou nos últimos anos, “sobretudo nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e Algarve, associada ao valor exorbitante das rendas e ao baixo salário auferido nos primeiros anos de exercício da profissão” (vd “educare.pt”, 17 de janeiro). Por isso, admite que o facto de a tutela ter emitido um comunicado sobre o assunto é um indicador da importância e dimensão do assunto, que “tem expressão e deve ser significativa para o ME ter vindo a terreiro com um comunicado”.
O presidente da ANDAEP pretende medidas de fundo para combater este problema estrutural, tendo e mantendo, nas escolas públicas, professores com habilitações de excelência, para não retrocedermos “décadas na Educação, fazendo lembrar os anos 80 em que algumas disciplinas eram lecionadas por professores com habilitações mínimas” ou, digo eu, o ano letivo de 1976/77 em que os professores, alegadamente por culpa do computador, eram colocados em grupos de recrutamento totalmente diferentes da sua formação académica e foram obrigados a lecionar durante todo o ano letivo disciplinas para as quais não tinham competência, estudando os livros antes de a vez chegar aos alunos.  
Segundo Filinto Lima, o Governo terá que dignificar e valorizar a carreira docente, acarinhando os professores, revendo os seus vencimentos (sobretudo nos primeiros escalões), proporcionando condições de trabalho, abrindo vagas para concurso por forma a aproveitar os “professores contratados que lecionam há bastante tempo e inverter a tendência da existência de vagas desertas nos cursos da universidade que formam professores”.  
Está na base da medida do ME a impossibilidade de colmatar necessidades temporárias de docentes depois de utilizados os procedimentos habituais, ou seja, duas sucessivas reservas de recrutamento e a contratação de escola. Assim, o predito comunicado aponta:
No início deste 2.º período letivo, por forma a garantir a maximização na gestão do corpo docente, visando assegurar o superior interesse dos alunos, os serviços do ME, sendo confrontados com situações concretas, identificaram casos em que as ferramentas disponíveis para substituir docentes não estavam a ser totalmente utilizadas – nomeadamente a possibilidade de atribuição de horas extraordinárias aos docentes da escola ou a possibilidade de completamento de horário a docentes que têm horários incompletos no mesmo estabelecimento ou noutro estabelecimento”.
A ANPRI (Associação Nacional de Professores de Informática) reage dizendo que não é claro como se implementa a novidade da colaboração entre agrupamentos no sentido da partilha de recursos humanos e lembrando que vem solicitando uma reunião com o Ministro desde novembro. Com efeito, a ausência de resposta revela desconfiança na capacidade dos diretores para a utilização de procedimentos de gestão, aos quais podem recorrer em caso de comprovada necessidade e depois de cumpridos os mecanismos de reservas de recrutamento e de contratação de escola, visto que grande parte carece de procedimentos em plataformas e autorização superior.
Para a ANPRI, a DGAE não acrescenta muito de novo, ou seja, nada que não esteja nos normativos em vigor, e não se pode deixar passar em branco “critérios diferentes que discriminam o acesso à lecionação das disciplinas do grupo de recrutamento de Informática”. Os critérios da DGAE indiciam a desvalorização desta área, pois não é com a frequência duma ação de formação contínua na área das TIC que um docente de qualquer outra área fica preparado para implementar as aprendizagens essenciais nesta disciplina, sendo que ao equipamento desatualizado se juntam agora “docentes pouco preparados”. E a associação é mordaz ao vincar:
Tudo isto revela uma grande falta de estratégia e um manifesto desinteresse para com os problemas com o pessoal docente. A falta de professores, que por sua vez afeta a formação dos alunos, tem de ser tratada com seriedade (…) Chegamos ao momento, em qualquer um, pode lecionar qualquer coisa.” (vd comunicado da ANPRI).
Por seu turno, a API (Associação de Professores de Inglês) diz que a tutela está “a tapar o sol com a peneira” e que não há garantias de que estas indicações sejam temporárias. E questiona:
Quem é que vai avaliar se um professor sem habilitação profissional tem uma ‘adequada formação científica’ para lecionar Inglês?”.
Já a APP (Associação de Professores de Português) está mais tranquila, pois os professores indicados têm a componente de Português na licenciatura e estágio profissional. E realça:
Mesmo não tendo habilitação académica para a disciplina que lecionam, há professores que adquiriram muitas capacidades para a ensinar na prática profissional que lhes foi dada no estágio”.
Do seu lado, a FENPROF (Federação Nacional dos Professores) frisa que as indicações da DGAE passam ao lado do problema de fundo e criam “antecedentes preocupantes”. Em seu entender, as diretivas “nada resolvem ou constituem remendos”. Com efeito, “a falta de professores tem de ser encarada com maior seriedade do que a agora demonstrada pelo ME, antes de se tornar sistémica, levando à urgente adoção de medidas de fundo”. A aprovação dum regime especial de aposentação (a classe está envelhecida e cansada: as escolas precisam de renovação), a abertura de lugares de quadro de escola, a estabilização profissional e a vinculação dos docentes com três ou mais anos de serviço são algumas das suas insistências.
***
Por enquanto a falta de professores não é sistémica, mas arrisca-se a sê-lo. Não sei se as instituições do ensino superior se mantêm interessadas em formar professores ou se não há candidatos por a profissão estar desvalorizada social, económica e politicamente.
A atual falta de docentes recai basicamente sobre horários incompletos (geralmente em regime de substituição) a ocupar por professores contratados que têm um vencimento de miséria, que não dá para pagar alojamento ou deslocação. E o erro passa por não completamento de horários dentro dos grupos ou não recurso a horas extraordinárias ou por não considerar completo o horário letivo a partir de determinado número de horas a completar com outras atividades.
De momento, o ME deveria refletir sobre os motivos por que há tantos professores doentes física e/ou psiquicamente, nomeadamente pelas condições de trabalho, falta de autoridade e exposição permanente ao insulto, à indisciplina, ao escrutínio hipercrítico, ao ataque da escola paralela (vulgo centros de estudos), à sobrecarga de trabalho (a famigerada componente não letiva e as malditas fichas para tudo) à ação discricionária de alguns diretores, à concorrência instalada na avaliação do desempenho docente, à pressão na fabricação do sucesso académico, bem como o exercício docente em idade para lá dos 60 anos de idade.
Subscrevo tudo o que dizem Filinto Lima, a ANPRI, a API e a FENPROF. Não me revejo no que diz na totalidade a APP. Na verdade, a maior parte dos professores de Inglês e de Alemão do ensino secundário não têm Português no curso, mas sim linguísticas, literaturas e culturas inglês, alemã e americana.
Sei que o comunicado da DGAE não inova. Como diz a ANPRI, os normativos já determinam que em situações excecionais, os docentes podem ser obrigados a lecionar disciplinas para as quais tenham preparação científica. Sempre entendi isso como, por exemplo, um docente habilitado profissionalmente para um determinado grupo de disciplinas poder lecionar outras disciplinas para as quais não tem habilitação profissional, mas tem a antigamente dita habilitação própria ou aqueles que têm habilitação profissional para dois grupos e estão colocados num deles. Não obstante – e aqui critico a APP –, pergunto-me como é que professores, mesmo com habilitação própria e ou profissional para português, que estão, há anos, arredados da lecionação da disciplina, se darão com o novo dicionário terminológico (até os que estavam no terreno tiveram dificuldade). Isto para não falar dos docentes preparados para grupos bidisciplinares que, por inércia ou comodidade, passaram o tempo a lecionar só uma disciplina.
Pode um professor de História lecionar Geografia e vice-versa? Sim, dará boa conta do recado, por que sabe ler e interpretar documentos, gráficos e tabelas, mas tem que estudar muito antes dos alunos. Já não sei se um professor de Alemão ou de Inglês lecionaria Francês…
Em suma, o ME com estas medidas mostra falta de respeito para com os professores. Não creio que as altas sumidades ministeriais não conheçam os curricula dos cursos superiores nem os programas das disciplinas do ensino não superior. Fazem lembrar os arquitetos da reforma administrativa que ordenaram o país a régua e a esquadro ou o autarca que pretendia que três bandas filarmónicas tocassem em conjunto a mesma peça sem a terem ensaiado!
2020.01.21 – Louro de Carvalho   

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