sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

EUA decidem discricionária e cirurgicamente quem deve ser abatido


Quando, na madrugada deste dia 3 de janeiro, aterrou no Aeroporto Internacional de Bagdad, no Iraque, o general iraniano Qassam Soleimani, acabado de chegar do Líbano ou da Síria, juntou-se ao comandante Abu Mahdi al-Muhandis numa escolta. Os dois estavam a ser levados para uma reunião com os líderes das milícias iraquianas quando um drone militar MQ-9 Reaper do Comando de Operações Especiais Conjuntas, uma unidade de operações especiais das forças armadas norte-americanas, disparou “vários mísseis” teleguiados sobre o carro em que seguiam, tendo sido atingido mortalmente os dois oficiais generais.
Uma fonte militar iraquiana disse à Associated Press que os soldados das Forças de Mobilização Popular, ao aproximarem-se do local do ataque, numa estrada de acesso ao aeroporto, o cadáver de Soleimani estava desfeito. O corpo do general iraniano, o mais poderoso do país e um herói nacional, só foi identificado por causa do anel que costumava usar. Já os restos mortais de al-Muhandis ainda não tinham sido identificados de manhã.
Na televisão governamental, ao anunciar a morte do general, o pivô recitou uma oração islâmica – “De Deus viemos e para Deus regressamos” – com uma fotografia de Soleimani atrás dele.
Um oficial envolvido na preparação do ataque explicou ao The New York Times que a equipa já estava a postos desde o dia 2. Sabiam onde estava Soleimani graças a pistas confidenciais disponibilizadas por informadores, aeronaves de reconhecimento, satélites de espionagem e interceções eletrónicas. E nesse dia à noite, tinham sido disparados três mísseis junto ao aeroporto sem provocar feridos. Desta feita, a força de elite foi mais certeira.
Os norte-americanos deixaram que dois carros (vindos do Líbano ou da Síria) se aproximassem do avião em que Soleimani seguia, o qual entrou num deles enquanto o outro estava ocupado por Abu Mahdi al-Muhandis. Depois, deram tempo para a escolta começar a sair do aeroporto. E só então lançaram múltiplos mísseis. Pouco depois, Trump publicava a imagem da bandeira norte-americana no Twitter. E Mark Esper, Secretário de Estado da Defesa, reivindicava a autoria do ataque, que destruiu os dois carros e matou os dois generais e mais 8 pessoas. Isto três dias depois dum assalto inédito à embaixada norte-americana, segundo os iraquianos.
Este ataque foi o culminar de 7 dias de tensão entre os Estados Unidos e o Irão, que remonta a maio de 2018 quando Donald Trump saiu do acordo nuclear com o Irão. A 27 de dezembro de 2019, morreu um americano e ficaram feridas 6 pessoas (4 americanos e 2 iraquianos) quando 30 mísseis atingiram uma base militar em Kirkuk. Dois dias depois, morreram no Iraque e na Síria 24 membros duma milícia iraniana por causa de uma série de ataques aéreos norte-americanos.
Em resposta, a 31 de dezembro, uma milícia pró-iraniana atravessou a ponte sobre o Tigre, entrou na Zona Verde de Bagdad, seguiu pela Rua Al Kindi e, incendiada a receção e o posto dos seguranças, entrou na embaixada norte-americana no Iraque e fez reféns os representantes dos EUA no local. Foi alegadamente em resposta a esse ataque, que durou 24 horas, que Trump ordenou ao Comando de Operações Especiais Conjuntas que abatesse Qassam Soleimani.
A Defesa norte-americana, em conferência de imprensa, confirmou esta justificação:
O general Soleimani estava ativamente a desenvolver planos para atacar diplomatas americanos no Iraque e na região. Ele e a Al-Quds foram responsáveis pela morte de centenas de americanos e elementos da coligação e pelo ferimento de outros milhares. Orquestrou ataques a bases da coligação no Iraque nos últimos 7 meses, incluindo o ataque de 27 de dezembro, que culminou com a morte e ferimentos de mais pessoal americano e iraquiano. Também aprovou os ataques desta semana à embaixada americana em Bagdad. O ataque teve como objetivo travar novos planos de ataque iranianos.”.
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Soleimani, o general de elite do Irão morto pelos EUA, era o líder da Guarda Revolucionária Iraniana, um dos homens mais poderosos do Médio Oriente, logo a seguir ao ayatollah, e herói iraniano. Nascido em 1957 numa família pobre, filho dum agricultor, passou de trabalhador da construção civil (profissão que assumiu para pagar dívidas do pai) e amante do ginásio a responsável pelas operações externas da Guarda Revolucionária Iraniana, uma divisão das forças armadas em que entrara a seguir à Revolução Iraniana
Antes de liderar esta força de elite, Soleimani também esteve no campo de batalha. Em 1980, ao eclodir a guerra entre o Irão e o Iraque, disparou, reuniu e liderou as tropas da cidade de Kerman. Tinha apenas 6 semanas de treino militar quando combateu na província de Azerbaijão Oriental. No termo do conflito, Soleimani era um herói, que declarou em 2013:
Entrei na guerra para uma missão de 15 dias, acabei por ficar até ao fim. Éramos todos jovens e queríamos servir a revolução.”.
Não tinha atingido os 30 anos quando emergiu como um nome sonante dentro das forças armadas. Em 1998, já na casa dos 40, tornou-se líder da Força Quds, um líder discreto que “raramente levantava a voz”. Segundo o ayatollah Ali Khamenei, “durante anos foi seu desejo tornar-se um mártir”. Agora era apontado como um possível nome para assumir o comando do Irão, mas “Deus concedeu-lhe o seu mais alto cargo” ao ser abatido pelos EUA, concluiu.
Soleimani não era apenas um general (embora fosse o mais importante de todos no Irão e, em termos de popularidade, só ultrapassado pelo ayatollah, pois até o presidente Hassan Rohani lhe ficava atrás); era também um diplomata, que assentou no Médio Oriente uma influência iraniana que apertou laços com a Síria, onde ajudou Bashar al-Assad a combater o Estado Islâmico. Tudo isto fez dele uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2017 e gerou a comoção iraniana perante a sua morte. “O seu sangue puro foi derramado nas mãos dos seres humanos mais depravados”, condenou Ali Khamenei. Mas, para o Ocidente, é responsável por ter exportado a revolução islâmica do Irão, de apoiar terroristas (…) e de “conduzir as guerras do Irão no estrangeiro”, como anotou Kenneth Pollack.
Em reação à sua morte, iranianos pedem “vingança” (em Teerão e em Kerman, cidade onde Soleimani nasceu, manifestantes acusam os EUA de terrorismo, homenageiam o general e pedem vingança) e os iraquianos celebram nas ruas. Milhares de pessoas estão nas ruas após os EUA matarem o general iraniano, identificado por anel. Irão prometeu: “Vingança será dura”. Trump tweetou: “Irão nunca venceu uma guerra, mas nunca perdeu uma negociação”. E acrescentou depois:
O general Qassem Soleimani matou ou feriu gravemente milhares de americanos durante um longo período de tempo e planeava matar muitos mais… mas foi apanhado! Ele foi direta e indiretamente responsável pela morte de milhões de pessoas, incluindo o grande e recente número de manifestantes mortos no próprio Irão. Embora o Irão nunca seja capaz de admitir adequadamente, Soleimani era odiado e temido no país. (…) Ele deveria ter sido abatido há muitos anos!”.
Porém, o líder supremo do Irão, Ali Khamenei, ordenou três dias de luto e avisou: “A vingança será severa”. E Hassan Rouhani, Presidente do Irão, disse: “A nossa vingança contra a América será terrível”. O chefe de diplomacia iraniano considerou a operação um ato de terrorismo internacional e uma “escalada extremamente perigosa” da tensão entre os dois países.
E o Conselho Supremo da Segurança Nacional do Irão já decidiu como vai responder aos Estados Unidos, mas não revelou qual é a decisão, escreve a Associated Press. Num comunicado emitido após a sua reunião, o Conselho explicou que foram investigados “vários aspetos deste incidente” que consideram ser “o maior erro estratégico dos EUA”. Entretanto, o Pentágono confirmou ainda de madrugada que o Presidente dos EUA ordenara um ataque aéreo com drone para abater Qassem Soleimani, considerado um dos homens mais poderosos do Médio Oriente e figura muito popular no Irão, no aeroporto internacional de Bagdad, no Iraque. E o governo norte-americano pediu aos seus cidadãos para abandonarem “de imediato” o país e solicitou que se mantenham longe da embaixada dos EUA no Iraque. A pari, os EUA anunciaram que reforçarão os meios na zona do Médio Oriente, com o envio de 3500 soldados, avança a CNN.
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As 5 formas de o Irão vingar a morte de Soleimani vão desde um conflito direto no Golfo Pérsico, um ataque cibernético ou uma resposta nuclear para chegar à raiz do problema. O Irão prometeu vingança e diz que até já decidiu como fazê-lo, “no tempo e local apropriados”; e os EUA dizem estar prontos. As armas dos dois países estão apontadas um ao outro desde que Trump ordenou a morte de Soleimani. É o último passo duma tensão que vem aumentando nos últimos meses, e de forma mais visível desde 27 de dezembro. O Irão diz que vai agir contra aquilo que considera ser “um ato de guerra”.
Em entrevista ao The Jerusalem Post, Philip Smyth, investigador do Instituto de Washington para a Política do Oriente Próximo, considerou que o Irão “pode muito bem” atacar os países orientais diplomaticamente mais próximos aos Estados Unidos, nomeadamente disparando mísseis para as posições americanas no Iraque ou recrutar células do Hezbollah no Líbano ou dos Houthis no Iémen. Se for isso, a questão será quando vai acontecer. É possível que o Irão não responda já aos EUA, pois “gostam muito de ser pacientes”, porque “eles sabem que nós, o Ocidente como um todo, temos um intervalo de atenção muito curto”. E o investigador avisa que os iranianos podem aproveitar esse calcanhar de Aquiles do Ocidente para “responder conforme a agenda deles”: “tudo se resume ao que eles querem fazer e à eficácia que eles pensam que isso terá para obter maiores ganhos estratégicos”, conclui Philip Smyth.
Outra opção é o Irão atacar diplomatas ocidentais (não necessariamente apenas norte-americanos) que estejam colocados em países do Médio Oriente. “Os esquemas de segurança do Irão procurarão continuar a política de abrir um corredor para o Mediterrâneo”, explicou o investigador mencionado. Afugentando dali os ocidentais, o objetivo fica mais próximo de ser atingido.
Segundo o especialista, “podem tentar recuperar os dispositivos de terrorismo internacional, utilizando o Hezbollah e uma variedade de outras personagens, inclusivamente o Exército dos Guardiães da Revolução Islâmica”.
Outra hipótese é o Irão escolher o Estreito de Ormuz, o Golfo de Omã ou mesmo o Golfo Pérsico como palco da retaliação. Esta tem sido a preocupação dos britânicos desde que perceberam que os EUA tinham levado a cabo o ataque contra Soleimani sem avisar o Reino Unido. Segundo o Financial Times, o governo britânico teme que o Irão responda aos norte-americanos através do Estreito de Ormuz, onde um navio-tanque britânico foi, há um ano, atacado pelos iranianos. Mais que o impacto dum ataque no trânsito de petróleo para o resto do mundo, inclusivamente para os EUA, isso afetaria o país pondo em risco a vida de milhares de cidadãos norte-americanos que trabalham ali destacados em navios de guerra e aeronaves.
Isso mesmo alerta a Sky News, acrescentando que “seria uma ação altamente perigosa que forçaria os Estados Unidos a atacar diretamente o Irão”: “um ataque de raiva que rapidamente correria o risco de cair em guerra”.
Por isso, o Reino Unido estará a ponderar se deve ou não enviar reforços para o estreito de Ormuz, que é uma região de intenso tráfego de petróleo dos produtores árabes para o resto do mundo. Essa decisão será tomada numa reunião governamental ainda neste dia 3.
Uma hipótese que pode estar a ser considerada pelo Irão é a organização de um ciberataque, que não exige cruzadas até outros países porque pode ser montado dentro do Irão; e porque não coloca forças iranianas em xeque. É essa a análise da Sky News:
É altamente improvável que seja feita qualquer tentativa de lançar um ataque militar convencional em solo americano, como com um míssil de cruzeiro. Mas isso não descarta a possibilidade de ataques cibernéticos.”.
Isso permitiria ao Irão responder aos EUA sem arriscar entrar num conflito direto como o que poderia eclodir se respondesse a Trump a partir dos percursos do petróleo. Além disso, os iranianos já se estrearam no campo dos ataques informáticos. Em novembro passado, o grupo de hackers APT33 atacou várias empresas do ramo petrolífero dos EUA e dos seus aliados norte-americanos, inclusivamente a Saudi Aramco, como escreveu à época a Forbes.
E, como as relações diplomáticas entre os EUA e o Irão têm sido tensas desde os tempos da Revolução Iraniana e a animosidade entre a administração de Trump e o país se aprofundou em maio de 2018, quando o presidente norte-americano decidiu tirar os EUA do acordo nuclear com o Irão e outras potências mundiais alcançado por Barack Obama, Sky News considera que outra hipótese de retaliação é precisamente a partir desse acordo. Ora, se Washington não aceita o acordo, também Teerão “pode cometer violações adicionais de um acordo nuclear em conflito com potências globais”. Os Estados Unidos já não são parte do acordo, mas a Grã-Bretanha, a França e outras potências ainda veem o pacto como a única maneira de impedir que o Irão se torne um estado de armas nucleares.
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Obviamente que o desencadeamento dum ataque nuclear, seja pelo Irão como retaliação da morte destes dois oficiais generais, seja pelo pelos EUA ou outro Estado ocidental como represália contra as vinganças iranianas, será pior cenário e de consequências imprevisíveis. E não podemos descartar essa hipótese porque o mundo está cheio de líderes que não têm escrúpulos de utilizar o poder da forma mais abstrusa que se possa imaginar. Têm recursos: usam-nos. Por isso, é que a democracia norte-americana brincou com o fogo ao intervir insistentemente onde não deve e em ter ofendido a alto nível o Irão, bem como pode ter-se aproximado duma hipotética, mas realizável hecatombe mundial que, a acontecer, tem efeitos incalculáveis por ter enveredado por uma rota irreversível.
Ora, como pensam os observadores e os decisores políticos, importa evitar que a escalada de agressão e violência alastre pelo mundo de lés a lés ou de norte a sul. E a agudização do conflito regional pode provocar mais míngua de recursos, fome, migração e refugiados, desertificação. Mas os EUA parecem só estar bem na indústria da guerra, armas e computadores (ao serviço do mal), testagem de viaturas, aeronaves, estratégias e táticas e técnicas… enfim!
Haja juízo, líderes!
2020.01.03 – Louro de Carvalho

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