Quando, na
madrugada deste dia 3 de janeiro, aterrou no Aeroporto Internacional de Bagdad,
no Iraque, o general iraniano Qassam Soleimani, acabado de chegar do Líbano ou
da Síria, juntou-se ao comandante Abu Mahdi al-Muhandis numa escolta. Os dois
estavam a ser levados para uma reunião com os líderes das milícias iraquianas
quando um drone militar MQ-9 Reaper do Comando de Operações
Especiais Conjuntas, uma unidade de operações especiais das forças armadas
norte-americanas, disparou “vários mísseis” teleguiados sobre o carro em que
seguiam, tendo sido atingido mortalmente os dois oficiais generais.
Uma fonte
militar iraquiana disse à Associated
Press que os soldados das Forças de Mobilização Popular, ao
aproximarem-se do local do ataque, numa estrada de acesso ao aeroporto, o
cadáver de Soleimani estava desfeito. O corpo do general iraniano, o mais
poderoso do país e um herói nacional, só foi identificado por causa do anel que
costumava usar. Já os restos mortais de al-Muhandis ainda não tinham sido
identificados de manhã.
Na televisão
governamental, ao anunciar a morte do general, o pivô recitou uma oração
islâmica – “De Deus viemos e para Deus regressamos” – com uma fotografia de
Soleimani atrás dele.
Um oficial
envolvido na preparação do ataque explicou ao The New York Times que a equipa já estava a postos desde o dia 2. Sabiam onde estava
Soleimani graças a pistas confidenciais disponibilizadas por informadores,
aeronaves de reconhecimento, satélites de espionagem e interceções eletrónicas.
E nesse dia à noite, tinham sido disparados três mísseis junto ao aeroporto sem
provocar feridos. Desta feita, a força de elite foi mais certeira.
Os
norte-americanos deixaram que dois carros (vindos do Líbano ou da Síria) se aproximassem do avião em que Soleimani seguia, o
qual entrou num deles enquanto o outro estava ocupado por Abu Mahdi
al-Muhandis. Depois, deram tempo para a escolta começar a sair do aeroporto. E
só então lançaram múltiplos mísseis. Pouco depois, Trump publicava a imagem da
bandeira norte-americana no Twitter. E Mark Esper, Secretário de Estado da
Defesa, reivindicava a autoria do ataque, que destruiu os dois carros e matou
os dois generais e mais 8 pessoas. Isto três dias depois dum assalto inédito à
embaixada norte-americana, segundo os iraquianos.
Este ataque
foi o culminar de 7 dias de tensão entre os Estados Unidos e o Irão, que
remonta a maio de 2018 quando Donald Trump saiu do acordo nuclear com o Irão. A
27 de dezembro de 2019, morreu um americano e ficaram feridas 6 pessoas (4
americanos e 2 iraquianos) quando 30
mísseis atingiram uma base militar em Kirkuk. Dois dias depois, morreram no
Iraque e na Síria 24 membros duma milícia iraniana por causa de uma série de
ataques aéreos norte-americanos.
Em resposta,
a 31 de dezembro, uma milícia pró-iraniana atravessou a ponte sobre o Tigre,
entrou na Zona Verde de Bagdad, seguiu pela Rua Al Kindi e, incendiada a receção
e o posto dos seguranças, entrou na embaixada norte-americana no Iraque e fez
reféns os representantes dos EUA no local. Foi alegadamente em resposta a esse
ataque, que durou 24 horas, que Trump ordenou ao Comando de Operações Especiais
Conjuntas que abatesse Qassam Soleimani.
A Defesa
norte-americana, em conferência de imprensa, confirmou esta justificação:
“O general Soleimani estava ativamente a desenvolver planos para atacar
diplomatas americanos no Iraque e na região. Ele e a Al-Quds foram
responsáveis pela morte de centenas de americanos e elementos da coligação e
pelo ferimento de outros milhares. Orquestrou ataques a bases da coligação no
Iraque nos últimos 7 meses, incluindo o ataque de 27 de dezembro, que culminou
com a morte e ferimentos de mais pessoal americano e iraquiano. Também aprovou
os ataques desta semana à embaixada americana em Bagdad. O ataque teve como
objetivo travar novos planos de ataque iranianos.”.
***
Soleimani, o general de elite do Irão morto
pelos EUA, era o líder da Guarda
Revolucionária Iraniana, um dos homens mais poderosos do Médio Oriente, logo a
seguir ao ayatollah, e herói iraniano. Nascido em 1957 numa família pobre,
filho dum agricultor, passou de trabalhador da construção civil (profissão
que assumiu para pagar dívidas do pai) e amante do
ginásio a responsável pelas operações externas da Guarda Revolucionária
Iraniana, uma divisão das forças armadas em que entrara a seguir à Revolução
Iraniana
Antes de
liderar esta força de elite, Soleimani também esteve no campo de batalha. Em
1980, ao eclodir a guerra entre o Irão e o Iraque, disparou, reuniu e liderou
as tropas da cidade de Kerman. Tinha apenas 6 semanas de treino militar quando
combateu na província de Azerbaijão Oriental. No termo do conflito, Soleimani
era um herói, que declarou em 2013:
“Entrei na guerra para uma missão de 15 dias, acabei por ficar até ao fim.
Éramos todos jovens e queríamos servir a revolução.”.
Não tinha
atingido os 30 anos quando emergiu como um nome sonante dentro das forças
armadas. Em 1998, já na casa dos 40, tornou-se líder da Força Quds, um líder
discreto que “raramente levantava a voz”. Segundo o ayatollah Ali
Khamenei, “durante anos foi seu
desejo tornar-se um mártir”. Agora era apontado como um possível nome
para assumir o comando do Irão, mas “Deus
concedeu-lhe o seu mais alto cargo” ao ser abatido pelos EUA, concluiu.
Soleimani
não era apenas um general (embora fosse o mais importante de todos no Irão e, em
termos de popularidade, só ultrapassado pelo ayatollah, pois até o presidente
Hassan Rohani lhe ficava atrás); era também
um diplomata, que assentou no Médio Oriente uma influência iraniana que apertou
laços com a Síria, onde ajudou Bashar al-Assad a combater o Estado Islâmico.
Tudo isto fez dele uma das 100
pessoas mais influentes do mundo em 2017 e gerou a comoção iraniana perante
a sua morte. “O seu sangue puro foi
derramado nas mãos dos seres humanos mais depravados”, condenou Ali
Khamenei. Mas, para o Ocidente, é responsável por ter exportado a revolução
islâmica do Irão, de apoiar terroristas (…) e de “conduzir as guerras do Irão
no estrangeiro”, como anotou Kenneth Pollack.
Em reação à sua morte, iranianos pedem “vingança”
(em Teerão e em Kerman,
cidade onde Soleimani nasceu, manifestantes acusam os EUA de terrorismo,
homenageiam o general e pedem vingança) e os iraquianos
celebram nas ruas. Milhares de pessoas estão nas ruas após os EUA
matarem o general iraniano, identificado por anel. Irão prometeu: “Vingança será dura”. Trump tweetou: “Irão nunca venceu uma guerra, mas nunca
perdeu uma negociação”. E acrescentou depois:
“O general Qassem Soleimani matou ou feriu gravemente milhares de
americanos durante um longo período de tempo e planeava matar muitos mais… mas
foi apanhado! Ele foi direta e indiretamente responsável pela morte de milhões
de pessoas, incluindo o grande e recente número de manifestantes mortos no
próprio Irão. Embora o Irão nunca seja capaz de admitir adequadamente,
Soleimani era odiado e temido no país. (…) Ele deveria ter sido abatido há
muitos anos!”.
Porém, o
líder supremo do Irão, Ali Khamenei, ordenou três dias de luto e avisou: “A vingança será severa”. E Hassan
Rouhani, Presidente do Irão, disse: “A
nossa vingança contra a América será terrível”. O chefe de diplomacia
iraniano considerou a operação um ato de terrorismo internacional e uma “escalada extremamente perigosa” da
tensão entre os dois países.
E o Conselho
Supremo da Segurança Nacional do Irão já decidiu como vai responder aos Estados
Unidos, mas não revelou qual é a decisão, escreve a Associated Press. Num comunicado emitido
após a sua reunião, o Conselho explicou que foram investigados “vários aspetos
deste incidente” que consideram ser “o maior erro estratégico dos EUA”. Entretanto,
o Pentágono confirmou ainda de madrugada que o Presidente dos EUA ordenara um
ataque aéreo com drone para abater Qassem Soleimani, considerado um dos
homens mais poderosos do Médio Oriente e figura muito popular no Irão, no
aeroporto internacional de Bagdad, no Iraque. E o governo norte-americano pediu
aos seus cidadãos para abandonarem “de imediato” o país e solicitou que se
mantenham longe da embaixada dos EUA no Iraque. A pari, os EUA anunciaram que reforçarão os meios na zona do Médio
Oriente, com o envio de 3500 soldados, avança a
CNN.
***
As 5 formas de o Irão vingar a morte
de Soleimani vão desde um conflito
direto no Golfo Pérsico, um ataque cibernético ou uma resposta nuclear para
chegar à raiz do problema. O Irão prometeu vingança e diz que até já decidiu
como fazê-lo, “no tempo e local apropriados”; e os EUA dizem estar prontos. As
armas dos dois países estão apontadas um ao outro desde que Trump ordenou a
morte de Soleimani. É o último passo duma tensão que vem aumentando nos últimos
meses, e de forma mais visível desde 27 de dezembro. O Irão diz que vai agir
contra aquilo que considera ser “um ato de guerra”.
Em
entrevista ao The Jerusalem Post,
Philip Smyth, investigador do Instituto de Washington para a Política do
Oriente Próximo, considerou que o Irão “pode muito bem” atacar os países orientais diplomaticamente mais próximos aos
Estados Unidos, nomeadamente disparando mísseis para as posições
americanas no Iraque ou recrutar células do Hezbollah no Líbano ou dos Houthis
no Iémen. Se for isso, a questão será quando vai acontecer. É possível que o
Irão não responda já aos EUA, pois “gostam muito de ser pacientes”, porque
“eles sabem que nós, o Ocidente como um todo, temos um intervalo de atenção
muito curto”. E o investigador avisa que os iranianos podem aproveitar esse
calcanhar de Aquiles do Ocidente para “responder conforme a agenda deles”: “tudo se resume ao que eles querem fazer e à
eficácia que eles pensam que isso terá para obter maiores ganhos estratégicos”,
conclui Philip Smyth.
Outra opção
é o Irão atacar diplomatas ocidentais
(não
necessariamente apenas norte-americanos) que estejam
colocados em países do Médio Oriente. “Os esquemas de segurança do Irão
procurarão continuar a política de abrir um corredor para o Mediterrâneo”,
explicou o investigador mencionado. Afugentando dali os ocidentais, o objetivo fica
mais próximo de ser atingido.
Segundo o
especialista, “podem tentar recuperar os
dispositivos de terrorismo internacional, utilizando o Hezbollah e uma variedade
de outras personagens, inclusivamente o Exército dos Guardiães da Revolução
Islâmica”.
Outra
hipótese é o Irão escolher o Estreito de Ormuz, o Golfo de Omã ou mesmo o Golfo Pérsico como palco da retaliação.
Esta tem sido a preocupação dos britânicos desde que perceberam que os EUA
tinham levado a cabo o ataque contra Soleimani sem avisar o Reino Unido.
Segundo o Financial Times, o
governo britânico teme que o Irão responda aos norte-americanos através do
Estreito de Ormuz, onde um navio-tanque britânico foi, há um ano, atacado pelos
iranianos. Mais que o impacto dum ataque no trânsito de petróleo para o resto
do mundo, inclusivamente para os EUA, isso afetaria o país pondo em risco a
vida de milhares de cidadãos norte-americanos que trabalham ali destacados em
navios de guerra e aeronaves.
Isso mesmo
alerta a Sky News, acrescentando
que “seria uma ação altamente perigosa que forçaria os Estados Unidos a atacar
diretamente o Irão”: “um ataque de raiva
que rapidamente correria o risco de cair em guerra”.
Por isso, o
Reino Unido estará a ponderar se deve ou não enviar reforços para o estreito de
Ormuz, que é uma região de intenso tráfego de petróleo dos produtores árabes
para o resto do mundo. Essa decisão será tomada numa reunião governamental
ainda neste dia 3.
Uma hipótese
que pode estar a ser considerada pelo Irão é a organização de um ciberataque, que não exige cruzadas até
outros países porque pode ser montado dentro do Irão; e porque não coloca
forças iranianas em xeque. É essa a análise da Sky News:
“É altamente improvável que seja feita qualquer tentativa de lançar um
ataque militar convencional em solo americano, como com um míssil de cruzeiro.
Mas isso não descarta a possibilidade de ataques cibernéticos.”.
Isso
permitiria ao Irão responder aos EUA sem arriscar entrar num conflito direto
como o que poderia eclodir se respondesse a Trump a partir dos percursos do
petróleo. Além disso, os iranianos já se estrearam no campo dos ataques
informáticos. Em novembro passado, o grupo de hackers APT33
atacou várias empresas do ramo petrolífero dos EUA e dos seus aliados
norte-americanos, inclusivamente a Saudi Aramco, como escreveu à época a Forbes.
E, como as relações
diplomáticas entre os EUA e o Irão têm sido tensas desde os tempos da Revolução
Iraniana e a animosidade entre a administração de Trump e o país se aprofundou
em maio de 2018, quando o presidente norte-americano decidiu tirar os EUA do
acordo nuclear com o Irão e outras potências mundiais alcançado por Barack
Obama, a Sky News considera que outra hipótese de
retaliação é precisamente a partir desse acordo. Ora, se Washington não aceita
o acordo, também Teerão “pode cometer
violações adicionais de um acordo nuclear em conflito com potências globais”.
Os Estados Unidos já não são parte do acordo, mas a Grã-Bretanha, a França e
outras potências ainda veem o pacto como a única maneira de impedir que o Irão
se torne um estado de armas nucleares.
***
Obviamente
que o desencadeamento dum ataque nuclear, seja
pelo Irão como retaliação da morte destes dois oficiais generais, seja pelo
pelos EUA ou outro Estado ocidental como represália contra as vinganças
iranianas, será pior cenário e de consequências imprevisíveis. E não podemos
descartar essa hipótese porque o mundo está cheio de líderes que não têm
escrúpulos de utilizar o poder da forma mais abstrusa que se possa imaginar.
Têm recursos: usam-nos. Por isso, é que a democracia norte-americana brincou
com o fogo ao intervir insistentemente onde não deve e em ter ofendido a alto
nível o Irão, bem como pode ter-se aproximado duma hipotética, mas realizável
hecatombe mundial que, a acontecer, tem efeitos incalculáveis por ter enveredado
por uma rota irreversível.
Ora, como
pensam os observadores e os decisores políticos, importa evitar que a escalada
de agressão e violência alastre pelo mundo de lés a lés ou de norte a sul. E a agudização
do conflito regional pode provocar mais míngua de recursos, fome, migração e
refugiados, desertificação. Mas os EUA parecem só estar bem na indústria da
guerra, armas e computadores (ao serviço do mal), testagem de viaturas, aeronaves,
estratégias e táticas e técnicas… enfim!
Haja
juízo, líderes!
2020.01.03 –
Louro de Carvalho
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