Este é o tema da celebração da Solenidade da Epifania do
Senhor. Com efeito, a luz de Deus, encarnada em Cristo na história humana,
ilumina a Terra inteira, atrai a si todos os povos e todos os homens podem
conhecer o Senhor e acolher a Salvação que Ele oferece gratuitamente a todos
sem exceção. Na Liturgia da Palavra, a 1.ª leitura (Is
60,1-6) anuncia a
chegada da luz salvadora que transfigurará Jerusalém pela ternura maternal de
Deus e que atrairá à cidade de Deus os povos de todo o mundo. O texto do
Evangelho (Mt 2,1-11) mostra a concretização desse anúncio,
com os magos que vêm de longe e representam os povos de toda a Terra. Troca-se Jerusalém
por Belém, a mais modesta das cidades de Judá, onde nasceu o Salvador. E a 2.ª
leitura (Ef 3,2-3a.5-6) apresenta o projeto salvador de Deus
como uma realidade que vai atingir toda a humanidade, juntando judeus e pagãos
na comunidade fraterna dos crentes em Jesus.
***
A passagem da 1.ª leitura insere-se no Tritoisaías (capítulos 56-66 do Livro de Isaías), um conjunto de textos cuja
proveniência não é consensual; uns dizem que se trata dum profeta anónimo
pós-exílico, que profetizou em Jerusalém após o regresso dos exilados da Babilónia,
nos anos 537/520 a.C.; mas a maioria pensa que são textos provenientes de
diversos autores pós-exílicos e redigidos ao longo de um longo arco de tempo (entre os séculos. VI e V a.C.). Em todo o caso, trata-se da época
pós-exílica e na reconstrução de Jerusalém, notando-se as marcas do passado nas
pedras calcinadas, com poucos e pobres judeus ali estabelecidos, o que torna
lenta e muito modesta a reconstrução, sendo que os inimigos espreitam a
população desanimada.
Assim, a profecia, anunciando o dia futuro em que Deus vai
chegar em seu esplendor tornando bela, harmoniosa e jubilosa a cidade,
glorifica Jerusalém, a cidade da luz ou “dos dois sóis” (o sol nascente e o sol poente: pela
situação geográfica, a cidade é iluminada desde o nascer do dia até ao pôr do
sol) e Deus habitará
para sempre no seio do seu Povo, como testemunhará o Templo reconstruído.
Inspirado pelo sol nascente que ilumina as pedras brancas das
construções de Jerusalém e faz com que a cidade se transfigure pela manhã e sobressaia
brilhante por entre as montanhas que a circundam, o profeta sonha com uma
Jerusalém mui diferente da que os retornados do Exílio conhecem; essa nova
cidade levantar-se-á quando chegar a luz de Deus, que lhe dará uma nova face.
Então, Jerusalém atrairá os olhares de todos os que esperam a salvação. Por
conseguinte, a cidade será abundantemente repovoada e os povos de toda a terra
– atraídos pela promessa do encontro com a salvação de Deus – convergirão para
lá, inundando-a de riquezas e cantando os louvores de Deus.
Como pano de fundo deste texto está a expressão da constante
preocupação de Deus com a vida e a felicidade daqueles e daquelas que Ele
criou. Deus está sempre presente no coração das pessoas e acompanha a caminhada
do seu Povo oferecendo-lhe a vida definitiva. E esta “fidelidade” de Deus
aquece-nos o coração e renova-nos a esperança. Caminhamos pela vida de fronte
erguida confiantes no amor infinito de Deus e na sua vontade de nos salvar e
libertar.
Na catequese cristã dos primeiros tempos, esta Jerusalém
nova, que já “não necessita de sol nem de lua para a iluminar, porque é
iluminada pela glória de Deus”, é a Igreja – a comunidade dos que aderiram a
Jesus e acolheram a luz salvadora que Ele veio trazer. É, pois, necessário que
nas nossas comunidades e estruturas brilhe a luz libertadora de Deus em Cristo
e aí haja espaço para todos os que buscam a luz libertadora, de modo que os
irmãos que têm a vida destroçada, ou os que não se comportam de acordo com as
regras da Igreja, sejam acolhidos, respeitados e amados e que as diferenças
próprias da diversidade de culturas sejam vistas como uma riqueza que importa
preservar e acarinhar.
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A visita dos magos ao menino de Belém é um episódio terno
que, ao longo dos temos, tem provocado considerável impacto nos sonhos e nas
fantasias dos cristãos. Todavia é de recordar, que estamos no “Evangelho da
Infância” e que os factos narrados não são o relato preciso de acontecimentos
históricos, mas uma catequese sobre Jesus e a sua missão e o modo como é
acolhido ou rejeitado. Ou seja, Mateus não apresenta uma reportagem da visita de
três Chefes de Estado estrangeiros à gruta de Belém, mas, recorrendo a símbolos
e imagens bem expressivos para os primeiros cristãos, apresenta Jesus como o
enviado de Deus Pai, que vem oferecer a salvação de Deus aos homens de toda a
terra. É um relato epifânico, mas não o único. Também a mudança da água em
vinho em Caná, a teofania do Jordão após o Batismo de Jesus por João, a
transfiguração no Tabor, a ressurreição de Lázaro e as aparições do
Ressuscitado são manifestações salvadoras de Cristo com vista à expressão do
seu messianismo em prol de todos os homens. E a epifania continua na ação da
Igreja em saída missionária a todas as periferias.
O relato de Mateus elege os magos como as primícias dos
adoradores. O texto eminentemente catequético localiza reiteradamente o
nascimento de Jesus em Belém, a terra natal do rei David, e liga Jesus aos anúncios
proféticos que falavam do Messias como o descendente de David que havia de
nascer em Belém (cf Mq
5,1.3; 2 Sm 5,2) e
restaurar o reino ideal de seu pai. Quer, assim, Mateus desdizer os que
pensavam que Jesus tinha nascido em Nazaré vendo nisso obstáculo para O
reconhecerem como o Messias.
Depois, o texto mateano releva uma estrela “especial” que
apareceu no céu por esta altura e que conduziu os “magos” para Belém. A
interpretação supostamente histórica desta referência levou alguém a cálculos
astronómicos para concluir que, no ano 6 a.C., uma conjunção de planetas
explicaria o fenómeno luminoso da estrela mencionada por Mateus; outros procuraram
um cometa que, por esta época, devia ter sulcado os céus do antigo Médio
Oriente. Não é disto que se trata. Mateus pede emprestada à crença popular epocal
a ideia de que o nascimento duma importante personagem era acompanhado da
aparição duma nova estrela, tal como a tradição judaica que fazia acompanhar o
nascimento do Messias por uma estrela que surge de Jacob (cf Nm 24,17). Com estes elementos postos ao
serviço da catequese, Mateus fornece aos cristãos da sua comunidade argumentos para
rebater os que negavam que Jesus era o Messias esperado.
Quanto aos magos, importa referir que o termo grego “mágos” usado por Mateus abarca vasta panóplia
de significados e é aplicado a personagens diversas: sacerdotes persas, reis, mágicos,
feiticeiros, charlatães, propagandistas religiosos. Aqui, pode designar
astrólogos mesopotâmicos conhecedores do messianismo judaico. Em todo o caso,
esses “magos” representam, na catequese mateana, os povos estrangeiros de que
fala o Tritoisaías (cf Is
60,1-6), que se põem a
caminho de Jerusalém (os
magos pediram informação em Jerusalém, que ficou com medo) com as suas riquezas (ouro, incenso e mirra) para encontrar a luz salvadora que
brilha sobre a cidade santa e que é Jesus. O que se manifestou na carne, foi
justificado pelo Espírito e foi contemplado pelos anjos não se fechou numa
redoma dourada, mas foi revelado aos gentios, para ser acreditado no mundo e
exaltado na glória. Por isso, merece o louvor de todos os povos (cf 1Tm 3,16).
Além disso, o relato mateano recolhe, de forma paradigmática,
duas atitudes que se repetem ao longo de todo o Evangelho: o Povo de Israel
rejeita Jesus, ao passo que os “magos” do oriente (pagãos) O adoram; Herodes e Jerusalém “ficam perturbados” ante
da notícia do nascimento do menino e planeiam a sua morte, enquanto os pagãos
sentem uma indizível alegria e reconhecem em Jesus o seu salvador. Herodes
dissimula com a promessa de adoração a ideia de O matar.
Mateus anuncia, assim, que Jesus será rejeitado pelos seus,
mas que vai ser acolhido pelos pagãos, que entrarão a fazer parte do novo Povo
de Deus. O itinerário seguido pelos “magos” reflete a caminhada que os pagãos
percorreram para encontrar Jesus: estão atentos aos sinais (estrela), percebem que Jesus é a luz que traz
a salvação, põem-se decididamente a caminho para O encontrarem, perguntam aos
judeus (que conhecem as
Escrituras) o que fazer,
encontram Jesus e adoram-No como “o Senhor”. É muito possível que um grande
número de pagano-cristãos da comunidade de Mateus descobrisse neste relato as etapas
do seu próprio caminho rumo a Jesus.
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A Carta aos Efésios apresenta-se como uma “carta de
cativeiro”, escrita por Paulo da prisão. Os que sustentam a autoria paulina da
carta discutem o lugar onde Paulo está preso, nesta altura, embora a maioria
ligue a carta ao cativeiro de Paulo em Roma entre 61 e 63. É, porém, uma sólida
apresentação duma catequese bem estruturada e amadurecida, parecendo constituir
uma espécie de síntese do pensamento paulino, em que o tema aglutinador é o que
o autor, que evangeliza por força da graça que recebeu em prol da comunidade,
chama de “o mistério”: o projeto salvador de Deus, definido e elaborado desde
sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus,
comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no mundo
pela Igreja.
Na parte dogmática da carta (Ef 1,3-3,19), Paulo apresenta a catequese sobre “o mistério”: depois dum
hino que põe em relevo a ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo na obra da
salvação (cf Ef 1,3-14), o autor fala da soberania de Cristo
sobre os poderes angélicos e do seu papel de cabeça da Igreja (cf Ef 1,15-23); a seguir, reflete sobre a situação
universal do homem, mergulhado no pecado e afirma a iniciativa salvadora e
gratuita de Deus em favor do homem (cf Ef 2,1-10); e expõe como Cristo, realizando “o mistério”, levou a cabo
a reconciliação de judeus e pagãos num só corpo, que é a Igreja (cf 2,11-22). O texto da Solenidade vem na sequência:
o Apóstolo apresenta-se como testemunha do mistério ante judeus e ante pagãos (cf Ef 3,1-13).
A Paulo, como aos Doze, foi revelado “o mistério”. É esse
“mistério” que Paulo aqui desvela aos crentes da Ásia Menor. Paulo insiste que,
em Cristo, chegou a salvação definitiva para os homens; e essa salvação não se
destina só aos judeus, mas a todos os povos da terra. Paulo é, por chamamento
divino, o pregoeiro desta novidade. Agora, judeus e gentios são membros de um
mesmo e único “corpo”, o “corpo de Cristo” ou Igreja, partilham o mesmo projeto
que os faz, em igualdade de circunstâncias com os judeus, “filhos de Deus”; e
todos participam da promessa feita por Deus a Abraão (cf Gn 12,3) – promessa realizada em Cristo com
todo o esplendor espelhado no Tritoisaías. E a grande novidade da Carta aos
Efésios é que Jesus Cristo é a revelação e a realização plena do projeto de
Deus, que não se destina apenas “a Jerusalém” (ao mundo judaico), mas é para ser oferecido a todos os povos, sem exceção.
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Por tudo isto, se nos guindámos, pelo Natal, a trombeteiros
do presépio, agora temos que ser trombeteiros, de coração e de boca, do
episódio da adoração dos magos, apontadores da estrela, vasculhadores corajosos
das Escrituras, lucíferos do Evangelho da Salvação e da Paz, fermento dum novo
mundo segundo o coração de Cristo.
2020.01.05 – Louro de Carvalho
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