Está na berra o
Luanda Leaks, com a principal visada a prometer agir judicialmente contra o
Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ ou, à portuguesa, CIJI),
alegadamente por a informação sobre a riqueza de Isabel dos Santos e modos como
a conseguiu ter sido obtida de forma ilegal por intrusiva. E, do outro lado,
está Rui Pinto em prisão preventiva e que vai ser julgado por 90 crimes do
âmbito da intrusão, sabotagem informática e tentativa de negócio ilícito, para
quem muitos pedem o estatuto de denunciante.
Na verdade, a atual
sorte judiciária de Rui Pinto e a tentativa incriminatória de Isabel dos Santos
ao ICIJ têm respaldo na Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece, no n.º 8 do seu art.º 32.º: “São
nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade
física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no
domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Também o art.º 34.º estabelece
a inviolabilidade do domicílio e do sigilo da correspondência e dos outros
meios de comunicação privada, dizendo peremptoriamente:
“A entrada no
domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela
autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei (n.º
2).
“Ninguém pode
entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento,
salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos
de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada,
incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes,
nos termos previstos na lei (n.º 3).
“É proibida
toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas
telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos
previstos na lei em matéria de processo criminal (n.º 4).”.
E o n.º 4 do art.º
35.º estipula: “É proibido o acesso a dados
pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais previstos na lei”.
É óbvio que, à face
da lei, têm sido feitas, a cada passo, buscas em domicílios, escritórios, repartições
do Estado e instalações de empresas, etc., com mandato judicial, tal como têm
sido interceptadas e escutadas conversas telefónicas e e-mails, observando o
que a Lei prescreve segundo as exceções que a CRP admite. Entende-se que a
competência para a investigação por parte das entidades previstas na Lei, que
tem acolhido o estabelecido constitucionalmente, deve ser exercida sob a
direção dum juiz, pois o n.º 4 do art.º do n.º 32.º determina:
“Toda a instrução é da competência
de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática
dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais”.
Ora, se o prurido
constitucional for imperativo sem que se atenda concomitantemente a outros valores
e possibilidades, Rui Pinto pode ser condenado por pirataria informática e
crimes conexos, pois violou correspondência alheia, e o ICIJ também por ter
utilizado e propagado informação colhida ilegalmente, pelos vistos fornecida por
Rui Pinto.
Porém, sem duvidar da
ilegalidade da denúncia ICIJ/Rui Pinto, não percebo como, perante o alarido
social, comercial e político – em que Isabel dos Santos diz que todos ficam a
perder e lamenta a perda de postos de trabalho, um dos seus gestores no Eurobic
se terá suicidado, seus representantes em empresas em que participa se demitem,
o Banco de Portugal põe em causa a idoneidade de alguns gestores, uma empresa
declara falência – as autoridades judiciárias não desencadeiam uma investigação
adequada com a necessária cobertura legal para apuramento dos factos e de responsabilidades.
Não será possível ter como estímulo a postura do denunciante (que não usou de tortura, coação,
ofensa da integridade física ou moral da pessoa) e do ICIJ para um processo investigatório legal para apurar tudo o que se
passa? É óbvio que sim, mas não é óbvia a razão por que não se faz. Sabe a
pouco ter sido constituída arguida Isabel dos Santos e 4 portugueses e vir o
Procurador-Geral da República de Angola solicitar ajuda à homóloga portuguesa.
É indigno remeter
para o limbo constitucional da nulidade a informação colhida ilegalmente,
porque é possível colhê-la por outras vias legais no todo ou em parte. Aliás, o
enriquecimento ilícito de Isabel e de outros angolanos, com a conivência de
auditores, gestores e advogados portugueses, foi já denunciado por Rafael
Marques e outros ativistas, a que o poder judiciário português não deu qualquer
atenção. Não obstante, insistia em julgar em Portugal Manuel Vicente, quando alegadamente
Angola o queria julgar, aduzindo o nosso MP que a justiça angolana não tinha
capacidade para o julgar, tendo criado, assim, um incidente diplomático.
Pode dizer-se que era
impossível agir no tempo da presidência de José Eduardo dos Santos, o pai da
multimilionária que alcançou um empório à custa do empobrecimento de tantos, segundo
dizem uns, ou à custa de inteligência, habilidade e trabalho, segundo ela e
seus admiradores. Porém, a presidência de Angola mudou e alegadamente o combate
à corrupção foi inaugurado ou intensificado. Por isso, não se vê como
suficiente e satisfatório que as autoridades judiciárias de Portugal e de
Angola digam que estão atentas e que vão agir. Resta saber se a possível investigação
se circunscreve à empresária angolana esquecendo os outros implicados, nomeadamente
generais e outras figuras públicas do regime angolano. Não vá o diabo tecê-las
e dar-se razão à empresária de que está a ser vítima de perseguição pessoal
e/ou política.
Não me parece que a
justiça fará muito em Portugal sobre o caso, pois, por mais que se diga em
contrário, Isabel dos Santos foi ajudada, obviamente a troco de contrapartidas
pecuniárias e de outra ordem por gestores, auditores, banca e políticos. As declarações
de autoridades bancárias, a demissão na PwC, as demissões da NOS, as intenções de
venda das participações no Eurobic, NOS e Efacec (o BCP mantem prudente silêncio) – vendas que levarão o seu tempo – são bons sintomas
do que se acabou de afirmar. E não podemos esquecer que, para Isabel deixar o
BPI, houve diligências do Banco de Portugal, do Ministro das Finanças, do Primeiro-Ministro
e do Presidente da República, que veio a terreiro dizer que interveio porque
tinha de intervir. Assim, não vale a pena virem os políticos dizer que a empresária
não teve tratamento especial entre nós.
***
Quanto a Rui Pinto, é
de registar o que diz a ex-eurodeputada Ana Gomes que
veio criticar os “dois pesos e duas medidas” da nossa justiça no atinente à
fonte dos documentos que levaram ao Luanda Leaks, exigindo que o ‘hacker’ tenha
estatuto de denunciante. Com efeito, apesar de ao arrepio da lei, expor a
criminalidade organizada, prestou um serviço público pondo a nu a incapacidade
dos reguladores e supervisores e a ineficácia do sistema judiciário. Na verdade,
é mais fácil investigar, julgar e condenar um crime informático que um largo crime
económico.
O ‘hacker’ está a ser julgado por Portugal por acesso ilegal a documentos,
mas incoerentemente a nossa justiça já aceitou colaborar com a homóloga
angolana, que utiliza documentação recolhida por Rui Pinto para acusar a
empresária Isabel dos Santos de má gestão de dinheiros públicos. Há, de facto, dois
pesos e duas medidas. Ou melhor, esta posição da justiça portuguesa, ao
contrário de outros países europeus que aceitaram a documentação de Rui Pinto, serve
a criminalidade que capturou o sistema” judicial, como disse a ex-eurodeputada.
Assim, os advogados de Rui Pinto assumiram, numa nota de imprensa, que o
seu cliente é a fonte dos documentos que deram origem ao Luanda Leaks, uma
investigação jornalística internacional, que visou o enriquecimento da filha do
ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos e que motivou a ação da justiça
de Angola contra a empresária, acusada de má gestão e desvios de dinheiro
quanto era administradora da petrolífera estatal Sonangol. Com efeito, Rui
Pinto assume a responsabilidade de ter entregado, no final de 2018, à
Plataforma de Proteção de Denunciantes na África (PPLAAF) “um disco rígido contendo todos os dados relacionados
com as recentes revelações sobre a fortuna de Isabel dos Santos, sua família e
todos os indivíduos que podem estar envolvidos nas operações fraudulentas
cometidas à custa do Estado angolano e, eventualmente, de outros países
estrangeiros”.
E, comentando o propósito de cooperação entre a justiça de Angola e a
nossa, Ana Gomes diz:
“Bem-vindos à era digital: serve para o mal,
mas também serve para combater o mal e sem dúvida que está mais do que
demonstrado aquilo que vinha há muito tempo dizendo: é que Rui Pinto prestou um
extraordinário serviço à luta contra a criminalidade organizada e contra a
corrupção em Portugal, para além de Portugal”.
Um denunciante que presta um serviço público tem de ser protegido da
eventual vingança e fúria dos atingidos, independentemente de ter ou não um
estatuto próprio. Mas, se a UE produziu uma diretiva para a implantação do
estatuto do denunciante, é de perguntar porque espera Portugal para o introduzir
no nosso ordenamento jurídico. E tanto Ana Gomes como os advogados asseguram
que Rui Pinto “é um denunciante e tem de ter um estatuto de denunciante para as
autoridades portuguesas”, considerando que o ‘hacker’ “tem de ser aproveitado”
pela justiça portuguesa para “dar combate à corrupção e criminalidade
organizada, branqueamento de capitais, financiamento de terrorismo e outra
criminalidade associada”. Mais: como conclui Ana Gomes, a “justiça portuguesa
tinha muitos destes dados que são públicos, designadamente desde a operação
furacão”, pelo que “poderia ter atuado e escolheu não atuar em consonância com
o poder político, que foi absolutamente conivente com o saque organizado a
Angola feito por Isabel dos Santos e outros elementos da cleptocracia angolana”.
Será que o pequeno vai mesmo ser condenado e os grandes caem no limbo da
impunidade? Depois, admiram-se de a opinião pública vir fazer a justiça que
devia caber aos tribunais!
2020.01.30 –
Louro de Carvalho
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