quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Sobre a poeirada em torno de Isabel dos Santos e Rui Pinto


Está na berra o Luanda Leaks, com a principal visada a prometer agir judicialmente contra o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ ou, à portuguesa, CIJI), alegadamente por a informação sobre a riqueza de Isabel dos Santos e modos como a conseguiu ter sido obtida de forma ilegal por intrusiva. E, do outro lado, está Rui Pinto em prisão preventiva e que vai ser julgado por 90 crimes do âmbito da intrusão, sabotagem informática e tentativa de negócio ilícito, para quem muitos pedem o estatuto de denunciante. 
Na verdade, a atual sorte judiciária de Rui Pinto e a tentativa incriminatória de Isabel dos Santos ao ICIJ têm respaldo na Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece, no n.º 8 do seu art.º 32.º: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. Também o art.º 34.º estabelece a inviolabilidade do domicílio e do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, dizendo peremptoriamente:
A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei (n.º 2).
Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento, salvo em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei (n.º 3).
É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal (n.º 4).”.
E o n.º 4 do art.º 35.º estipula: “É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excecionais previstos na lei”.
É óbvio que, à face da lei, têm sido feitas, a cada passo, buscas em domicílios, escritórios, repartições do Estado e instalações de empresas, etc., com mandato judicial, tal como têm sido interceptadas e escutadas conversas telefónicas e e-mails, observando o que a Lei prescreve segundo as exceções que a CRP admite. Entende-se que a competência para a investigação por parte das entidades previstas na Lei, que tem acolhido o estabelecido constitucionalmente, deve ser exercida sob a direção dum juiz, pois o n.º 4 do art.º do n.º 32.º determina:
Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais”.
Ora, se o prurido constitucional for imperativo sem que se atenda concomitantemente a outros valores e possibilidades, Rui Pinto pode ser condenado por pirataria informática e crimes conexos, pois violou correspondência alheia, e o ICIJ também por ter utilizado e propagado informação colhida ilegalmente, pelos vistos fornecida por Rui Pinto.  
Porém, sem duvidar da ilegalidade da denúncia ICIJ/Rui Pinto, não percebo como, perante o alarido social, comercial e político – em que Isabel dos Santos diz que todos ficam a perder e lamenta a perda de postos de trabalho, um dos seus gestores no Eurobic se terá suicidado, seus representantes em empresas em que participa se demitem, o Banco de Portugal põe em causa a idoneidade de alguns gestores, uma empresa declara falência – as autoridades judiciárias não desencadeiam uma investigação adequada com a necessária cobertura legal para apuramento dos factos e de responsabilidades. Não será possível ter como estímulo a postura do denunciante (que não usou de tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa) e do ICIJ para um processo investigatório legal para apurar tudo o que se passa? É óbvio que sim, mas não é óbvia a razão por que não se faz. Sabe a pouco ter sido constituída arguida Isabel dos Santos e 4 portugueses e vir o Procurador-Geral da República de Angola solicitar ajuda à homóloga portuguesa.
É indigno remeter para o limbo constitucional da nulidade a informação colhida ilegalmente, porque é possível colhê-la por outras vias legais no todo ou em parte. Aliás, o enriquecimento ilícito de Isabel e de outros angolanos, com a conivência de auditores, gestores e advogados portugueses, foi já denunciado por Rafael Marques e outros ativistas, a que o poder judiciário português não deu qualquer atenção. Não obstante, insistia em julgar em Portugal Manuel Vicente, quando alegadamente Angola o queria julgar, aduzindo o nosso MP que a justiça angolana não tinha capacidade para o julgar, tendo criado, assim, um incidente diplomático.
Pode dizer-se que era impossível agir no tempo da presidência de José Eduardo dos Santos, o pai da multimilionária que alcançou um empório à custa do empobrecimento de tantos, segundo dizem uns, ou à custa de inteligência, habilidade e trabalho, segundo ela e seus admiradores. Porém, a presidência de Angola mudou e alegadamente o combate à corrupção foi inaugurado ou intensificado. Por isso, não se vê como suficiente e satisfatório que as autoridades judiciárias de Portugal e de Angola digam que estão atentas e que vão agir. Resta saber se a possível investigação se circunscreve à empresária angolana esquecendo os outros implicados, nomeadamente generais e outras figuras públicas do regime angolano. Não vá o diabo tecê-las e dar-se razão à empresária de que está a ser vítima de perseguição pessoal e/ou política.
Não me parece que a justiça fará muito em Portugal sobre o caso, pois, por mais que se diga em contrário, Isabel dos Santos foi ajudada, obviamente a troco de contrapartidas pecuniárias e de outra ordem por gestores, auditores, banca e políticos. As declarações de autoridades bancárias, a demissão na PwC, as demissões da NOS, as intenções de venda das participações no Eurobic, NOS e Efacec (o BCP mantem prudente silêncio) – vendas que levarão o seu tempo – são bons sintomas do que se acabou de afirmar. E não podemos esquecer que, para Isabel deixar o BPI, houve diligências do Banco de Portugal, do Ministro das Finanças, do Primeiro-Ministro e do Presidente da República, que veio a terreiro dizer que interveio porque tinha de intervir. Assim, não vale a pena virem os políticos dizer que a empresária não teve tratamento especial entre nós.
***
Quanto a Rui Pinto, é de registar o que diz a ex-eurodeputada Ana Gomes que veio criticar os “dois pesos e duas medidas” da nossa justiça no atinente à fonte dos documentos que levaram ao Luanda Leaks, exigindo que o ‘hacker’ tenha estatuto de denunciante. Com efeito, apesar de ao arrepio da lei, expor a criminalidade organizada, prestou um serviço público pondo a nu a incapacidade dos reguladores e supervisores e a ineficácia do sistema judiciário. Na verdade, é mais fácil investigar, julgar e condenar um crime informático que um largo crime económico.
O ‘hacker’ está a ser julgado por Portugal por acesso ilegal a documentos, mas incoerentemente a nossa justiça já aceitou colaborar com a homóloga angolana, que utiliza documentação recolhida por Rui Pinto para acusar a empresária Isabel dos Santos de má gestão de dinheiros públicos. Há, de facto, dois pesos e duas medidas. Ou melhor, esta posição da justiça portuguesa, ao contrário de outros países europeus que aceitaram a documentação de Rui Pinto, serve a criminalidade que capturou o sistema” judicial, como disse a ex-eurodeputada.
Assim, os advogados de Rui Pinto assumiram, numa nota de imprensa, que o seu cliente é a fonte dos documentos que deram origem ao Luanda Leaks, uma investigação jornalística internacional, que visou o enriquecimento da filha do ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos e que motivou a ação da justiça de Angola contra a empresária, acusada de má gestão e desvios de dinheiro quanto era administradora da petrolífera estatal Sonangol. Com efeito, Rui Pinto assume a responsabilidade de ter entregado, no final de 2018, à Plataforma de Proteção de Denunciantes na África (PPLAAF) “um disco rígido contendo todos os dados relacionados com as recentes revelações sobre a fortuna de Isabel dos Santos, sua família e todos os indivíduos que podem estar envolvidos nas operações fraudulentas cometidas à custa do Estado angolano e, eventualmente, de outros países estrangeiros”.
E, comentando o propósito de cooperação entre a justiça de Angola e a nossa, Ana Gomes diz:
Bem-vindos à era digital: serve para o mal, mas também serve para combater o mal e sem dúvida que está mais do que demonstrado aquilo que vinha há muito tempo dizendo: é que Rui Pinto prestou um extraordinário serviço à luta contra a criminalidade organizada e contra a corrupção em Portugal, para além de Portugal”.
Um denunciante que presta um serviço público tem de ser protegido da eventual vingança e fúria dos atingidos, independentemente de ter ou não um estatuto próprio. Mas, se a UE produziu uma diretiva para a implantação do estatuto do denunciante, é de perguntar porque espera Portugal para o introduzir no nosso ordenamento jurídico. E tanto Ana Gomes como os advogados asseguram que Rui Pinto “é um denunciante e tem de ter um estatuto de denunciante para as autoridades portuguesas”, considerando que o ‘hacker’ “tem de ser aproveitado” pela justiça portuguesa para “dar combate à corrupção e criminalidade organizada, branqueamento de capitais, financiamento de terrorismo e outra criminalidade associada”. Mais: como conclui Ana Gomes, a “justiça portuguesa tinha muitos destes dados que são públicos, designadamente desde a operação furacão”, pelo que “poderia ter atuado e escolheu não atuar em consonância com o poder político, que foi absolutamente conivente com o saque organizado a Angola feito por Isabel dos Santos e outros elementos da cleptocracia angolana”.
Será que o pequeno vai mesmo ser condenado e os grandes caem no limbo da impunidade? Depois, admiram-se de a opinião pública vir fazer a justiça que devia caber aos tribunais!
2020.01.30 – Louro de Carvalho

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