Disse-o o
Papa ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé aquando das felicitações
de ano novo, a 9 de janeiro, querendo que a esperança anime “o olhar com que
sondamos o tempo que está diante de nós”, embora com o realismo que se exige.
Tal realismo
implica a consciência dos problemas e desafios, a sua nomeação sem hipocrisia e
a noção dos sinais e feridas das guerras que assolam a humanidade que se
corporizam na “intensificação de tensões e violências”. Não obstante, impõe-se
a coragem da espera ativa e o esforço incessante pela “pacífica convivência
entre os povos”.
E,
considerando que “a paz e o desenvolvimento humano integral são o objetivo
principal da Santa Sé no campo do seu empenho diplomático”, Francisco fez a
retrospetiva dos atos de 2019 salientando os acordos com Estados, as viagens
apostólicas e as cimeiras – o que tem posto em evidência “realidades
significativas” e “algumas questões problemáticas do nosso tempo”.
A par da
satisfação por encontrar tantos jovens na XXXIV JMJ, vincou o drama dos
adultos, incluindo clérigos, “responsáveis de delitos gravíssimos contra a
dignidade dos jovens, crianças e adolescentes, violando a sua inocência e
intimidade”, a que tentou obviar com a cimeira com os representantes do
episcopado de todo o mundo e em razão do que pretende promover “um evento mundial
a 14 de maio, com o tema Reconstruir o pacto educativo global, visando
“reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão
por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo
construtivo e mútua compreensão”. Depois, o Pontífice frisou o modo como muitos
jovens estão a empenhar-se por “sensibilizar os líderes políticos para a
questão das alterações climáticas”, pois “o cuidado da nossa casa comum deve
ser uma preocupação de todos, e não objeto de contraposição ideológica entre
diferentes visões da realidade e, menos ainda, entre as gerações”, pois “no
contacto com a natureza, como recordava Bento XVI, a pessoa reencontra a
sua justa dimensão, redescobre-se criatura, pequena, mas ao mesmo tempo única,
‘capaz de Deus’, porque interiormente aberta ao Infinito”,
pelo que “a salvaguarda do lugar que nos foi dado pelo Criador para viver
não pode ser negligenciada nem reduzida a uma problemática de elite”.
E referiu a XXV
Sessão da Conferência dos Estados Parceiros da Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre a Mudança do Clima (COP25),
de se Madrid, como “um sério toque de alarme sobre a vontade que tem a
Comunidade Internacional de enfrentar, com sabedoria e eficácia, o fenómeno do
aquecimento global, que requer uma resposta coletiva, capaz de fazer prevalecer
o bem comum sobre os interesses particulares”.
Considerou
que o Sínodo para a Amazónia – um evento essencialmente eclesial, motivado pela
vontade da escuta das esperanças e desafios da Igreja na Amazónia e da abertura
de novos caminhos para o anúncio do Evangelho ao Povo de Deus, especialmente às
populações indígenas – também teve necessariamente em conta as questões da
ecologia integral, bem como a constatação da multiplicação de crises políticas
num número crescente de países do continente americano, “com tensões e
insólitas formas de violência que agravam os conflitos sociais e geram graves
consequências socioeconómicas e humanitárias” como, aliás, em todo o planeta.
Relevou a
assinatura conjunta com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb, em Abu
Dhabi, do Documento sobre a Fraternidade
Humana em prol da paz mundial e da convivência comum, bem como a assinatura
conjunta com o Rei Mohammed VI do Apelo
sobre Jerusalém, “reconhecendo a singularidade e sacralidade de Jerusalém
/ Al Qods Acharif e tendo a peito o seu significado espiritual
e a sua vocação peculiar de Cidade da Paz”.
Na evocação das crises de guerra e refugiados do Médio
Oriente, da grande Ásia e da África, salientou “a recrudescência da tensão entre o
Irão e os Estados Unidos que se arrisca, antes de tudo, a colocar a dura prova
o lento processo de reconstrução do Iraque, bem como a criar as bases dum
conflito de mais vasta escala que todos quereríamos poder esconjurar”. E não
deixou de apelar, em termos europeus, ao diálogo e ao respeito da “legalidade internacional
para resolver os ‘conflitos congelados’ que persistem no continente, alguns
deles há já decénios”.
Recordou que,
em 1949, na Europa ocidental, com a criação do Conselho da Europa e sucessiva adoção da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, se lançaram “as bases do processo de integração
europeia, que encontraram um pilar fundamental na Declaração de 9 de maio de
1950 do Ministro francês dos Negócios Estrangeiros de então, Robert Schuman”. E
fez votos por que “a Europa não perca o sentido de solidariedade que, há
séculos, a carateriza”, nem perca aquele espírito, “cujas raízes brotam, para
além do mais, da pietas romana e da caritas cristã,
que descrevem bem a alma dos povos europeus”.
Disse que o
30.º aniversário da queda do Muro de Berlim nos mostra “um dos símbolos mais
dilacerantes da história recente do continente, lembrando-nos como é fácil
erguer barreiras”.
Porém, o Papa
sublinhou a evidência dos sinais de paz e reconciliação que pôde ver na viagem
à África “a começar pelos renovados progressos realizados em Moçambique, com a
assinatura do Acordo para a cessação definitiva das hostilidades no dia 1 de
agosto passado”, com a possibilidade da construção da segurança em Madagáscar e
com a junção das várias religiões, nas Ilhas Maurícias, a contribuir “para a
paz social” e a recordar “o valor transcendente da vida contra todo o tipo de
reducionismo”.
Evocou o
recente início do trabalho do Painel de Alto Nível das Nações Unidas
sobre Deslocamentos Internos, que espera “possa favorecer a atenção e o
apoio global aos deslocados, formulando recomendações concretas”, almejando que
os países em conflito interno enveredem pela via da paz e da prosperidade, do crescimento
democrático e económico. E disse esperar ir este ano ao Sudão.
Da visita ao
Japão inferiu que é possível e desejável “um mundo sem armas nucleares” devendo
tornar-se disto cientes “quantos têm responsabilidades políticas, porque não é
a posse dissuasora de poderosos meios de destruição de massa que torna o mundo
mais seguro, mas o trabalho paciente de todas as pessoas de boa vontade que se
dedicam concretamente, cada uma na sua própria área, a construir um mundo de
paz, solidariedade e respeito mútuo”.
Referiu que 2020
oferece uma oportunidade importante neste sentido, porque, de 27 de abril a 22
de maio, se realizará em Nova Iorque a X Conferência de Revisão do
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.
E dirigiu uma
palavra de conforto a um país que ainda não visitou, a Austrália, “duramente
flagelada nos últimos meses por persistentes incêndios, cujos efeitos se
fizeram sentir também noutras regiões da Oceânia, certificando da sua
proximidade e oração o povo australiano, em especial as vítimas, e quantos
vivem nas regiões atingidas pelos fogos.
Falando da
comemoração, neste ano, do 75º aniversário de fundação das Nações Unidas,
disse:
“Na
sequência das tragédias experimentadas nas duas Guerras Mundiais, 46 países
deram vida – com a Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho
de 1945 – a uma nova forma de colaboração multilateral. As quatro finalidades
da Organização, delineadas no artigo 1.º da Carta, permanecem
válidas ainda hoje e podemos dizer que o serviço das Nações Unidas nestes 75
anos foi, em grande parte, um sucesso, especialmente para evitar outra guerra
mundial.”.
E considerou
que “os princípios fundantes da Organização (o desejo de paz,
a busca da justiça, o respeito pela dignidade da pessoa, a cooperação humanitária e a assistência) traduzem as justas aspirações do
espírito humano e constituem os ideais que deveriam guiar as relações
internacionais”. Por isso, entende que temos de reafirmar “o propósito de toda a família humana trabalhar pelo bem comum, como
critério de orientação da ação moral e perspetiva que deve comprometer cada
país a colaborar para garantir a existência e a segurança na paz de cada um dos
outros Estados, num espírito de igual dignidade e efetiva solidariedade, no
contexto dum ordenamento jurídico baseado na justiça e na busca de compromissos
équos”.
Por fim,
mencionou mais duas efemérides. A primeira é o V centenário da morte de Rafael
Sanzio, de Urbino, que morreu em Roma a 6 de abril de 1520 e a quem devemos “um
enorme património de beleza inestimável”, pois este filho do Renascimento –
época, não isenta de dificuldades, mas animada pela confiança e a esperança,
que enriqueceu toda a humanidade – ensina-nos que, “tal como o génio do artista
sabe compor de maneira harmoniosa materiais toscos, cores e sons diferentes,
tornando-os parte duma única obra de arte, assim também a diplomacia é chamada
a harmonizar as peculiaridades dos vários povos e Estados para construir um
mundo de justiça e paz, que é o belo quadro que gostaríamos de poder admirar”.
E, como um dos
temas preferidos da pintura de Rafael era Maria, a quem dedicou numerosas
pinturas, que hoje se podem admirar em vários museus do mundo, o Santo Padre
encontrou espaço para evocar para este ano o LXX aniversário da proclamação
dogmática da Assunção da Virgem Maria ao Céu (1 de novembro de 1950), o que lhe deu ensejo de “dirigir uma saudação
particular a todas as mulheres, 25 anos
depois da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher,
realizada em Pequim no ano de 1995, com votos de que em todo o mundo se
reconheça cada vez mais o precioso papel das mulheres na sociedade e cessem
todas as formas de injustiça, desigualdade e violência contra elas”. E, a
propósito, disse:
“Toda
a violência infligida à mulher é profanação de Deus. A violência exercida
contra uma mulher ou a sua exploração não é um simples reato; é um crime que
destrói a harmonia, a poesia e a beleza que Deus quis dar
ao mundo.”.
Depois, falou
aos diplomatas sobre a Assunção de Maria e as implicações da sua glorificação
celeste para a esperança de paz e para a boa diplomacia com vista à sã
convivência, vincando:
“A
Assunção de Maria convida-nos a olhar ainda mais além, para a conclusão do
nosso caminho terreno, para o dia em que serão totalmente restabelecidas a
justiça e a paz. Deste modo sentimo-nos encorajados – através da diplomacia,
que é a nossa tentativa humana, imperfeita, mas sempre preciosa – a trabalhar
zelosamente para antecipar os frutos deste desejo de paz, sabendo que a meta é
possível.”
***
Em suma, toda
a atividade papal e da Santa Sé, incluindo a diplomacia e as artes, radica na
missão da Igreja de estabelecer pontes de diálogo com vista à construção da paz
e da edificação do Reino de Deus como consequência do anúncio da Boa Nova que é
mister dos discípulos de Cristo. Se o Evangelho é anúncio da salvação aos
homens, a diplomacia do diálogo e das boas relações entre os povos tem em vista
a sã convivência e a arte manifesta a beleza de Deus que o artífice vê na
natureza, no ser humano e nos espíritos angélicos e em tudo o que atinge Deus e
as suas criaturas – tudo no horizonte do Reino que há de vir e que já está
entre nós como semente que germina e cresce por todo o lado e que apela à nossa
paciência e persistência. E, enquanto a esperança teologal gera a espera
jubilosa, a esperança humana augura um futuro de equidade.
2020.01.10 – Louro de Carvalho
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