sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A esperança, para os cristãos, é uma virtude fundamental


Disse-o o Papa ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé aquando das felicitações de ano novo, a 9 de janeiro, querendo que a esperança anime “o olhar com que sondamos o tempo que está diante de nós”, embora com o realismo que se exige.
Tal realismo implica a consciência dos problemas e desafios, a sua nomeação sem hipocrisia e a noção dos sinais e feridas das guerras que assolam a humanidade que se corporizam na “intensificação de tensões e violências”. Não obstante, impõe-se a coragem da espera ativa e o esforço incessante pela “pacífica convivência entre os povos”.
E, considerando que “a paz e o desenvolvimento humano integral são o objetivo principal da Santa Sé no campo do seu empenho diplomático”, Francisco fez a retrospetiva dos atos de 2019 salientando os acordos com Estados, as viagens apostólicas e as cimeiras – o que tem posto em evidência “realidades significativas” e “algumas questões problemáticas do nosso tempo”.
A par da satisfação por encontrar tantos jovens na XXXIV JMJ, vincou o drama dos adultos, incluindo clérigos, “responsáveis de delitos gravíssimos contra a dignidade dos jovens, crianças e adolescentes, violando a sua inocência e intimidade”, a que tentou obviar com a cimeira com os representantes do episcopado de todo o mundo e em razão do que pretende promover “um evento mundial a 14 de maio, com o tema Reconstruir o pacto educativo global, visando “reavivar o compromisso em prol e com as gerações jovens, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão”. Depois, o Pontífice frisou o modo como muitos jovens estão a empenhar-se por “sensibilizar os líderes políticos para a questão das alterações climáticas”, pois “o cuidado da nossa casa comum deve ser uma preocupação de todos, e não objeto de contraposição ideológica entre diferentes visões da realidade e, menos ainda, entre as gerações”, pois “no contacto com a natureza, como recordava Bento XVI, a pessoa reencontra a sua justa dimensão, redescobre-se criatura, pequena, mas ao mesmo tempo única, ‘capaz de Deus’, porque interiormente aberta ao Infinito”, pelo que “a salvaguarda do lugar que nos foi dado pelo Criador para viver não pode ser negligenciada nem reduzida a uma problemática de elite”.
E referiu a XXV Sessão da Conferência dos Estados Parceiros da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP25), de se Madrid, como “um sério toque de alarme sobre a vontade que tem a Comunidade Internacional de enfrentar, com sabedoria e eficácia, o fenómeno do aquecimento global, que requer uma resposta coletiva, capaz de fazer prevalecer o bem comum sobre os interesses particulares”.
Considerou que o Sínodo para a Amazónia – um evento essencialmente eclesial, motivado pela vontade da escuta das esperanças e desafios da Igreja na Amazónia e da abertura de novos caminhos para o anúncio do Evangelho ao Povo de Deus, especialmente às populações indígenas – também teve necessariamente em conta as questões da ecologia integral, bem como a constatação da multiplicação de crises políticas num número crescente de países do continente americano, “com tensões e insólitas formas de violência que agravam os conflitos sociais e geram graves consequências socioeconómicas e humanitárias” como, aliás, em todo o planeta.
Relevou a assinatura conjunta com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb, em Abu Dhabi, do Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum, bem como a assinatura conjunta com o Rei Mohammed VI do Apelo sobre Jerusalém, “reconhecendo a singularidade e sacralidade de Jerusalém / Al Qods Acharif e tendo a peito o seu significado espiritual e a sua vocação peculiar de Cidade da Paz”.
Na evocação das crises de guerra e refugiados do Médio Oriente, da grande Ásia e da África, salientou “a recrudescência da tensão entre o Irão e os Estados Unidos que se arrisca, antes de tudo, a colocar a dura prova o lento processo de reconstrução do Iraque, bem como a criar as bases dum conflito de mais vasta escala que todos quereríamos poder esconjurar”. E não deixou de apelar, em termos europeus, ao diálogo e ao respeito da “legalidade internacional para resolver os ‘conflitos congelados’ que persistem no continente, alguns deles há já decénios”.
Recordou que, em 1949, na Europa ocidental, com a criação do Conselho da Europa e sucessiva adoção da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, se lançaram “as bases do processo de integração europeia, que encontraram um pilar fundamental na Declaração de 9 de maio de 1950 do Ministro francês dos Negócios Estrangeiros de então, Robert Schuman”. E fez votos por que “a Europa não perca o sentido de solidariedade que, há séculos, a carateriza”, nem perca aquele espírito, “cujas raízes brotam, para além do mais, da pietas romana e da caritas cristã, que descrevem bem a alma dos povos europeus”.
Disse que o 30.º aniversário da queda do Muro de Berlim nos mostra “um dos símbolos mais dilacerantes da história recente do continente, lembrando-nos como é fácil erguer barreiras”.
Porém, o Papa sublinhou a evidência dos sinais de paz e reconciliação que pôde ver na viagem à África “a começar pelos renovados progressos realizados em Moçambique, com a assinatura do Acordo para a cessação definitiva das hostilidades no dia 1 de agosto passado”, com a possibilidade da construção da segurança em Madagáscar e com a junção das várias religiões, nas Ilhas Maurícias, a contribuir “para a paz social” e a recordar “o valor transcendente da vida contra todo o tipo de reducionismo”.
Evocou o recente início do trabalho do Painel de Alto Nível das Nações Unidas sobre Deslocamentos Internos, que espera “possa favorecer a atenção e o apoio global aos deslocados, formulando recomendações concretas”, almejando que os países em conflito interno enveredem pela via da paz e da prosperidade, do crescimento democrático e económico. E disse esperar ir este ano ao Sudão.
Da visita ao Japão inferiu que é possível e desejável “um mundo sem armas nucleares” devendo tornar-se disto cientes “quantos têm responsabilidades políticas, porque não é a posse dissuasora de poderosos meios de destruição de massa que torna o mundo mais seguro, mas o trabalho paciente de todas as pessoas de boa vontade que se dedicam concretamente, cada uma na sua própria área, a construir um mundo de paz, solidariedade e respeito mútuo”.
Referiu que 2020 oferece uma oportunidade importante neste sentido, porque, de 27 de abril a 22 de maio, se realizará em Nova Iorque a X Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.
E dirigiu uma palavra de conforto a um país que ainda não visitou, a Austrália, “duramente flagelada nos últimos meses por persistentes incêndios, cujos efeitos se fizeram sentir também noutras regiões da Oceânia, certificando da sua proximidade e oração o povo australiano, em especial as vítimas, e quantos vivem nas regiões atingidas pelos fogos.
Falando da comemoração, neste ano, do 75º aniversário de fundação das Nações Unidas, disse:
Na sequência das tragédias experimentadas nas duas Guerras Mundiais, 46 países deram vida – com a Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945 – a uma nova forma de colaboração multilateral. As quatro finalidades da Organização, delineadas no artigo 1.º da Carta, permanecem válidas ainda hoje e podemos dizer que o serviço das Nações Unidas nestes 75 anos foi, em grande parte, um sucesso, especialmente para evitar outra guerra mundial.”.
E considerou que “os princípios fundantes da Organização (o desejo de paz, a busca da justiça, o respeito pela dignidade da pessoa, a cooperação humanitária e a assistência) traduzem as justas aspirações do espírito humano e constituem os ideais que deveriam guiar as relações internacionais”. Por isso, entende que temos de reafirmar “o propósito de toda a família humana trabalhar pelo bem comum, como critério de orientação da ação moral e perspetiva que deve comprometer cada país a colaborar para garantir a existência e a segurança na paz de cada um dos outros Estados, num espírito de igual dignidade e efetiva solidariedade, no contexto dum ordenamento jurídico baseado na justiça e na busca de compromissos équos”.
Por fim, mencionou mais duas efemérides. A primeira é o V centenário da morte de Rafael Sanzio, de Urbino, que morreu em Roma a 6 de abril de 1520 e a quem devemos “um enorme património de beleza inestimável”, pois este filho do Renascimento – época, não isenta de dificuldades, mas animada pela confiança e a esperança, que enriqueceu toda a humanidade – ensina-nos que, “tal como o génio do artista sabe compor de maneira harmoniosa materiais toscos, cores e sons diferentes, tornando-os parte duma única obra de arte, assim também a diplomacia é chamada a harmonizar as peculiaridades dos vários povos e Estados para construir um mundo de justiça e paz, que é o belo quadro que gostaríamos de poder admirar”.
E, como um dos temas preferidos da pintura de Rafael era Maria, a quem dedicou numerosas pinturas, que hoje se podem admirar em vários museus do mundo, o Santo Padre encontrou espaço para evocar para este ano o LXX aniversário da proclamação dogmática da Assunção da Virgem Maria ao Céu (1 de novembro de 1950), o que lhe deu ensejo de “dirigir uma saudação particular a todas as mulheres, 25 anos depois da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim no ano de 1995, com votos de que em todo o mundo se reconheça cada vez mais o precioso papel das mulheres na sociedade e cessem todas as formas de injustiça, desigualdade e violência contra elas”. E, a propósito, disse:
Toda a violência infligida à mulher é profanação de Deus. A violência exercida contra uma mulher ou a sua exploração não é um simples reato; é um crime que destrói a harmonia, a poesia e a beleza que Deus quis dar ao mundo.”.
Depois, falou aos diplomatas sobre a Assunção de Maria e as implicações da sua glorificação celeste para a esperança de paz e para a boa diplomacia com vista à sã convivência, vincando:
A Assunção de Maria convida-nos a olhar ainda mais além, para a conclusão do nosso caminho terreno, para o dia em que serão totalmente restabelecidas a justiça e a paz. Deste modo sentimo-nos encorajados – através da diplomacia, que é a nossa tentativa humana, imperfeita, mas sempre preciosa – a trabalhar zelosamente para antecipar os frutos deste desejo de paz, sabendo que a meta é possível.
***
Em suma, toda a atividade papal e da Santa Sé, incluindo a diplomacia e as artes, radica na missão da Igreja de estabelecer pontes de diálogo com vista à construção da paz e da edificação do Reino de Deus como consequência do anúncio da Boa Nova que é mister dos discípulos de Cristo. Se o Evangelho é anúncio da salvação aos homens, a diplomacia do diálogo e das boas relações entre os povos tem em vista a sã convivência e a arte manifesta a beleza de Deus que o artífice vê na natureza, no ser humano e nos espíritos angélicos e em tudo o que atinge Deus e as suas criaturas – tudo no horizonte do Reino que há de vir e que já está entre nós como semente que germina e cresce por todo o lado e que apela à nossa paciência e persistência. E, enquanto a esperança teologal gera a espera jubilosa, a esperança humana augura um futuro de equidade.  
2020.01.10 – Louro de Carvalho

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