A Solenidade
da Theotokos, isto é, Santa Maria, Mãe de Deus é a mais antiga que se conhece
no Ocidente. Nas Catacumbas de Roma, onde se reuniam os cristãos para celebrar
a Santa Missa, encontram-se pinturas com esta inscrição, tal como em
antigos monumentos do Oriente (Grécia, Turquia, Egito). Segundo um escrito do século III, os cristãos do Egito dirigiam-se a
Maria nos seguintes termos:
“À
vossa proteção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas
súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem
gloriosa e bendita.” (Liturgia das Horas).
No século IV,
o termo Theotokos era usado frequentemente no Oriente e Ocidente porque já
fazia parte do património da fé da Igreja. Entretanto, no século V, o
herege Nestório dizia que Maria não era Mãe de Deus, aduzindo que, se Deus tem
uma mãe, não podemos condenar a mitologia grega, que atribui uma mãe aos deuses.
Dizia-o, porque tinha dificuldade em admitir a unidade da pessoa de Cristo e
sua interpretação errónea da distinção entre as duas naturezas – divina e
humana – presentes Nele.
Porém, os Bispos,
reunidos no Concílio de Éfeso (ano 431), afirmaram categoricamente a
subsistência da natureza divina e da natureza humana na única pessoa do Filho. E
declararam que a Virgem Maria é Mãe de Deus porque o seu Filho, Cristo, é
Deus”. Logo, acompanhados pelo povo e levando tochas acesas, fizeram uma grande
procissão cantando: “Santa Maria, Mãe de
Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte. Amém”.
E a Lumen Gentium (LG), constituição dogmática sobre a Igreja, no seu n.º
66, refere que “a Santíssima Virgem é, desde os tempos mais antigos, honrada
com o título de Mãe de Deus”.
São João
Paulo II, em novembro de 1996, refletiu sobre as objeções nestorianas para que
se compreenda melhor o título “Maria, Mãe de Deus”. E explicitou:
“A
expressão Theotokos, que literalmente significa ‘aquela que gerou Deus’, à
primeira vista pode resultar surpreendente; suscita, com efeito, a questão
sobre como é possível que uma criatura humana gere Deus. A resposta da fé da
Igreja é clara: a maternidade divina de Maria refere-se à geração
humana do Filho de Deus e não à sua geração divina.”.
Depois,
acrescentou:
“O
Filho de Deus foi desde sempre gerado por Deus Pai e é-Lhe consubstancial.
Nesta geração eterna Maria não desempenha, evidentemente, nenhum papel. O Filho
de Deus, porém, há dois mil anos, assumiu a nossa natureza humana e foi então
concebido e dado à luz por Maria.”.
Também assinalou
que a maternidade da Maria, por apropriação, “não se refere a toda a Trindade,
mas unicamente à segunda Pessoa, ao Filho que, ao encarnar-se, assumiu dela a
natureza humana”, mas declarou que “uma mãe não é Mãe apenas do corpo ou da
criatura física saída do seu seio, mas da pessoa que ela gera”. Concluiu que
que “a expressão ‘Mãe de Deus’ nos dirige ao Verbo de Deus, que na Encarnação
assumiu a humildade da condição humana para elevar o homem à filiação divina”.
E acrescentou:
“Esse
título, à luz da sublime dignidade concedida à Virgem de Nazaré, proclama
também a nobreza da mulher e sua altíssima vocação. De facto, Deus trata Maria
como pessoa livre e responsável e não realiza a encarnação de seu Filho a não
ser depois de ter obtido seu consentimento.”.
Por fim, é
importante recordar que Maria não é só Mãe de Deus, mas também nossa porque
assim quis Jesus na cruz, quando a confiou a João.
***
A
festa era celebrada a 11 de outubro, mas a reforma do calendário litúrgico e a
distribuição das celebrações por outro tipo de categorização, tornou-a
solenidade e colocou-a no termo da oitava do Natal (que a liturgia oriental designa
significativamente por a Páscoa do Natal, diz Dom António Couto) – um conjunto de 8 dias que funcionam como se foram um só dia, o que significa
que, na lógica natalina, se celebra coerentemente, a par, o nascimento de Jesus
e o facto de Maria ser Mãe de Jesus homem-Deus.
No Antigo
Testamento (Gn 17,9-14), Deus fez uma aliança com Abraão e
sua descendência, cujo sinal era a circuncisão ao 8.º dia após o nascimento. O
Filho de Deus, também descendente de Abraão, viveu assim e recebeu, nesse
momento, o nome anunciado a Maria e a José (cf Lc 2,21).
Obviamente, o
título de “Mãe de Deus” (“Theotokos”) não existia e foi criado pelos
cristãos para expressarem a sua fé cristológica.
Conta-se que,
por volta do século V, em Bizâncio, havia uma “memória da Mãe de Deus”, que se
celebrava no dia 26 de dezembro, o dia seguinte ao Natal. Aos poucos, foi-se introduzindo
na liturgia romana num dia da Oitava de Natal e, já no século VIII, se
encontram para esta comemoração antífonas com o título de “Natale Sanctae
Mariae”, assim como orações e responsórios com os quais se honrava a divina “Maternidade
de Maria”. Com o tempo, esta memória da Virgem foi transferida para outra época
para se poder comemorar a “Circuncisão do Senhor”, mas mantendo-se o caráter
mariano do dia. Em 1931, o Papa Pio XI colocou-a no dia 11 de outubro, pelo XV
centenário do Concílio de Éfeso e deu-lhe a categoria de festa dúplex de 2.ª
classe. Anos depois, nesta data, São João XXIII inaugurou o Concílio Vaticano
II (1962).
Como se
disse, com a reforma litúrgica de 1969, a “Maternidade de Maria” passou a ser celebrada
a 1 de janeiro, dia em que se inicia o “calendário civil”, o que mostra
umbilical ligação ao Natal. Um ano antes, em 1968, São Paulo VI havia
instituído para esta data o Dia Mundial
da Paz. Assim, o primeiro dia do ano celebra Maria e reza pela paz.
O título “Mãe
de Deus” é o principal dogma sobre a Virgem Maria e todos os demais dogmas
marianos encontram o seu sentido nesta verdade de fé. Os outros dogmas marianos
são que Maria teve uma Imaculada Conceção, Perpétua Virgindade e que foi levada
em corpo e alma para o céu, Assunção. Todavia, Nossa Senhora tem muitos
títulos, como: Mãe dos homens, Mãe da Igreja, Advogada nossa, Corredentora,
Medianeira de todas as graças, Rainha e Senhora de toda a criação e Digna de todo
louvor, muitos deles contidos nas ladainhas do Rosário.
***
Dom
António Couto, Bispo de Lamego, em texto que me chegou pela mão da Fraternitas, mais propriamente de João
Guerra, assenta em que “a figura que enche este Dia e que motiva a nossa
Alegria” é “Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi
solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente
desenhada nas páginas do Novo Testamento”. E menciona o lacónico texto paulino
que se refere “à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: ‘Deus mandou o seu
Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei’.” (Gl
4,4). E comenta:
“Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação,
ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é
grande em si mesma; é, na verdade, uma ‘mulher’, verdadeiramente nossa irmã na
sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser
a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que Ela nos ultrapassa, imaculada por graça,
bem-aventurada, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma;
vem-lhe de Deus essa grandeza.”.
A
seguir, menciona o Evangelho (Lucas 2,16-21), que encerra uma preciosidade:
“Lucas diz[-nos] que ‘todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos
pastores ficaram maravilhados, mas Maria GUARDAVA (synetêrei) todas estas
Palavras que aconteceram (tà rhêmata), COMPONDO-as (symbállousa) no seu
coração’.” (Lc
2,18-19).
Esta postura de Maria está em
contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, mas
segundo o quadro mariano pintado por Lucas, Ela guardava e compunha as palavras
que ouvia. E o prelado lamecense anota “o espanto e a maravilha” que se
exprimem no louvor e no canto, como “no silêncio e na escuta qualificada e
comovida”. Para o Bispo de Lamego, “o verbo GUARDAR implica uma atenção
extremada e carinhosa, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa”, que
não é “o ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo
grego está no imperfeito, que implica duração”.
No âmbito do verbo ‘symbállô’ – COMPOR,
isto é, ‘pôr em conjunto’, simbolizar, organizar, para melhor compreender e se
fazer compreender – Maria “é como quem, com aquelas Palavras, COMPÕE um Poema,
uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar
novos acordes de alegria”.
E é nesta atividade discreta de Maria
que António Couto parece vislumbrar que a solicitude maternal da Virgem, “habitada
por esta imensa melodia que nos vem de Deus e nos reconcilia, levou o Papa
Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a
celebração do Dia Mundial da Paz”. E já vamos no 53.º Dia Mundial da Paz. E considera que Francisco deu à mensagem “para
este dia de Maria o título oportuno e significativo de ‘Migrantes e refugiados:
homens e mulheres em busca da paz”, desenhando “diante de todos os homens e
mulheres de boa vontade o cenário do mundo de que somos nós hoje os habitantes,
e de que devemos ser também os cuidadores”. E o prelado da cidade (tida como) das cortes observa:
“Os
muitos e diversificados grupos de homens e mulheres, nossos irmãos e irmãs, que
hoje se movimentam no mundo, fazem-no fugindo de situações de guerra, de fome e
de miséria, e vão em busca da paz e de dignidade. Nós sabemos que a justiça é o
sabor que vem de Deus, e que a paz não é a paz romana, assente no poder das
armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes.”.
E, considerando um contrassenso
combater pela Paz, pois, “quando nos sentamos a fazer acordos de Paz, é porque
já antes perdemos a razão”, diz-nos:
“A
paz é primeira. É um Dom de Deus para todo o ser humano que vem a este mundo.
Portanto, num mundo tantas vezes às avessas, o Papa exorta-nos a aprender outra
vez a acolher, proteger, promover e integrar.”.
Depois, além da paz e para a paz, é
necessária a bênção, pelo que o Bispo de Lamego pede:
“Que
o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária
bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: ‘O
Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te
seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz’.”
(Nm 6,24-26).
Assim, sugere que juntemos, com o
Salmo 67, nossas vozes às dos povos de toda a terra no mesmo louvor ao Deus que
a todos faz graça e misericórdia. Este salmo é uma oração de bênção em forma de
petição e equivale a uma epíclese: não “eu Te bendigo”, mas “Deus nos bendiga”.
E recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a
luz, a benevolência, a paz, mas pondo o plural onde estava o singular, “democratizando”
a bênção, agora dirigida a todos, quando, na bênção sacerdotal do Livro dos
Números, se dirigia a Israel.
Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe
igual ao Dia Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de
Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia
primeiro e do Ano inteiro são títulos que António Couto dá a Maria para lhe dizer
que a 1.ª página do ano é toda dela. É bom que Senhora da bênção nos abençoe,
que a acariciada por Deus no acaricie a nós acariciando Deus. E nós a
proclamemos “Bem-aventurada”.
E o Bispo de Lamego pede que Ela nos
sente “em casa ao redor do amor, do coração”, pois somos “tão cheios de coisas
e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade”. Pensamos que “temos
tudo, mas falta-nos, se calhar, o essencial”: a simplicidade e alegria. Que Ela
nos faça sentir o calor da sua mão “no nosso rosto frio, insensível, enrugado”
e nos faça “correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados, dos
migrantes e refugiados”.
E termina o seu texto poeticamente
como segue e como leu o Padre César Costa na missa das 12 horas em Santa Maria
da Feira:
Que Deus nos abençoe e nos guarde,
Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,
Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,
Cheios de amor, de paz e de alegria,
Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,
E nos ponha no caminho de Maria.
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O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
O Fiat que disseste, Maria, é de quem se fia
Num amor maior do que um letreiro.
Vela por nós, Maria, em cada dia
Deste ano inteiro,
Para que levemos a cada enfermaria,
A cada periferia,
Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.
|
***
Na Missa
da Solenidade, as palavras do Papa foram para todas as mulheres vítimas de diferentes
formas de violência, pois “toda a violência infligida à mulher é profanação de
Deus, nascido de uma mulher”: “a salvação chegou à humanidade, a partir do
corpo de uma mulher” e, “pelo modo como tratamos o corpo da mulher, vê-se o
nosso nível de humanidade.
Francisco, lembrando que o “renascimento da humanidade começou pela
mulher”, criticou a exploração do corpo da mulher na publicidade e a
prostituição. E disse:
“Quantas vezes o corpo da mulher acaba
sacrificado nos altares profanos da publicidade, do lucro, da pornografia,
explorado como se usa uma superfície qualquer. Há que libertá-lo do consumismo,
deve ser respeitado e honrado; é a carne mais nobre do mundo: concebeu e deu à
luz o Amor que nos salvou! Ainda hoje a maternidade é humilhada, porque o único
crescimento que interessa é o económico.”.
Deixou uma palavra para as mães migrantes que, “na busca desesperada de dar
um futuro melhor ao fruto do seu seio, se arriscam a viagens impraticáveis e
acabam julgadas como número excedente por pessoas que têm a barriga cheia, mas
de coisas, e o coração vazio de amor.” Exprimiu o voto de que as mulheres
tenham mais cargos de poder: “Uma conquista a favor da mulher é uma conquista em prol da humanidade
inteira” – declarou.
Por outro
lado, meditando a maternidade divina de Maria, deixou um rasgo eclesiológico dizendo
que também a Igreja, como Maria, é mulher e mãe e se sente chamada a anunciar o
nascimento do Senhor e a gerá-lo em nossas vidas. E concluiu:
“Aproximando-se de Maria, a Igreja
reencontra o seu centro e a sua unidade. Ao contrário, o inimigo da natureza
humana, o demónio, procura dividi-la, enfatizando diferenças, ideologias,
pensamentos unilaterais e partidos. Jamais poderemos compreender a Igreja, se a
olharmos só a partir das estruturas, programas e tendências e não do coração. A
Igreja tem coração de mãe.”.
E o Santo
Padre concluiu a sua homilia, pedindo à Mãe de Jesus, à Mãe da Igreja a unidade
e a esperança. Sob o seu manto materno confiou este ano novo de 2020, que está
em início.
2020.01.02 –
Louro de Carvalho
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