quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Sobre a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus – 2020


A Solenidade da Theotokos, isto é, Santa Maria, Mãe de Deus é a mais antiga que se conhece no Ocidente. Nas Catacumbas de Roma, onde se reuniam os cristãos para celebrar a Santa Missa, encontram-se pinturas com esta inscrição, tal como em antigos monumentos do Oriente (Grécia, Turquia, Egito). Segundo um escrito do século III, os cristãos do Egito dirigiam-se a Maria nos seguintes termos:
À vossa proteção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita.” (Liturgia das Horas).
No século IV, o termo Theotokos era usado frequentemente no Oriente e Ocidente porque já fazia parte do património da fé da Igreja. Entretanto, no século V, o herege Nestório dizia que Maria não era Mãe de Deus, aduzindo que, se Deus tem uma mãe, não podemos condenar a mitologia grega, que atribui uma mãe aos deuses. Dizia-o, porque tinha dificuldade em admitir a unidade da pessoa de Cristo e sua interpretação errónea da distinção entre as duas naturezas – divina e humana – presentes Nele.
Porém, os Bispos, reunidos no Concílio de Éfeso (ano 431), afirmaram categoricamente a subsistência da natureza divina e da natureza humana na única pessoa do Filho. E declararam que a Virgem Maria é Mãe de Deus porque o seu Filho, Cristo, é Deus”. Logo, acompanhados pelo povo e levando tochas acesas, fizeram uma grande procissão cantando: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte. Amém”.
E a Lumen Gentium (LG), constituição dogmática sobre a Igreja, no seu n.º 66, refere que “a Santíssima Virgem é, desde os tempos mais antigos, honrada com o título de Mãe de Deus”.
São João Paulo II, em novembro de 1996, refletiu sobre as objeções nestorianas para que se compreenda melhor o título “Maria, Mãe de Deus”. E explicitou:
A expressão Theotokos, que literalmente significa ‘aquela que gerou Deus’, à primeira vista pode resultar surpreendente; suscita, com efeito, a questão sobre como é possível que uma criatura humana gere Deus. A resposta da fé da Igreja é clara: a maternidade divina de Maria refere-se à geração humana do Filho de Deus e não à sua geração divina.”.
Depois, acrescentou:
O Filho de Deus foi desde sempre gerado por Deus Pai e é-Lhe consubstancial. Nesta geração eterna Maria não desempenha, evidentemente, nenhum papel. O Filho de Deus, porém, há dois mil anos, assumiu a nossa natureza humana e foi então concebido e dado à luz por Maria.”.
Também assinalou que a maternidade da Maria, por apropriação, “não se refere a toda a Trindade, mas unicamente à segunda Pessoa, ao Filho que, ao encarnar-se, assumiu dela a natureza humana”, mas declarou que “uma mãe não é Mãe apenas do corpo ou da criatura física saída do seu seio, mas da pessoa que ela gera”. Concluiu que que “a expressão ‘Mãe de Deus’ nos dirige ao Verbo de Deus, que na Encarnação assumiu a humildade da condição humana para elevar o homem à filiação divina”. E acrescentou:
Esse título, à luz da sublime dignidade concedida à Virgem de Nazaré, proclama também a nobreza da mulher e sua altíssima vocação. De facto, Deus trata Maria como pessoa livre e responsável e não realiza a encarnação de seu Filho a não ser depois de ter obtido seu consentimento.”.
Por fim, é importante recordar que Maria não é só Mãe de Deus, mas também nossa porque assim quis Jesus na cruz, quando a confiou a João.
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A festa era celebrada a 11 de outubro, mas a reforma do calendário litúrgico e a distribuição das celebrações por outro tipo de categorização, tornou-a solenidade e colocou-a no termo da oitava do Natal (que a liturgia oriental designa significativamente por a Páscoa do Natal, diz Dom António Couto) – um conjunto de 8 dias que funcionam como se foram um só dia, o que significa que, na lógica natalina, se celebra coerentemente, a par, o nascimento de Jesus e o facto de Maria ser Mãe de Jesus homem-Deus.  
No Antigo Testamento (Gn 17,9-14), Deus fez uma aliança com Abraão e sua descendência, cujo sinal era a circuncisão ao 8.º dia após o nascimento. O Filho de Deus, também descendente de Abraão, viveu assim e recebeu, nesse momento, o nome anunciado a Maria e a José (cf Lc 2,21).
Obviamente, o título de “Mãe de Deus” (“Theotokos”) não existia e foi criado pelos cristãos para expressarem a sua fé cristológica.
Conta-se que, por volta do século V, em Bizâncio, havia uma “memória da Mãe de Deus”, que se celebrava no dia 26 de dezembro, o dia seguinte ao Natal. Aos poucos, foi-se introduzindo na liturgia romana num dia da Oitava de Natal e, já no século VIII, se encontram para esta comemoração antífonas com o título de “Natale Sanctae Mariae”, assim como orações e responsórios com os quais se honrava a divina “Maternidade de Maria”. Com o tempo, esta memória da Virgem foi transferida para outra época para se poder comemorar a “Circuncisão do Senhor”, mas mantendo-se o caráter mariano do dia. Em 1931, o Papa Pio XI colocou-a no dia 11 de outubro, pelo XV centenário do Concílio de Éfeso e deu-lhe a categoria de festa dúplex de 2.ª classe. Anos depois, nesta data, São João XXIII inaugurou o Concílio Vaticano II (1962).
Como se disse, com a reforma litúrgica de 1969, a “Maternidade de Maria” passou a ser celebrada a 1 de janeiro, dia em que se inicia o “calendário civil”, o que mostra umbilical ligação ao Natal. Um ano antes, em 1968, São Paulo VI havia instituído para esta data o Dia Mundial da Paz. Assim, o primeiro dia do ano celebra Maria e reza pela paz.
O título “Mãe de Deus” é o principal dogma sobre a Virgem Maria e todos os demais dogmas marianos encontram o seu sentido nesta verdade de fé. Os outros dogmas marianos são que Maria teve uma Imaculada Conceção, Perpétua Virgindade e que foi levada em corpo e alma para o céu, Assunção. Todavia, Nossa Senhora tem muitos títulos, como: Mãe dos homens, Mãe da Igreja, Advogada nossa, Corredentora, Medianeira de todas as graças, Rainha e Senhora de toda a criação e Digna de todo louvor, muitos deles contidos nas ladainhas do Rosário.
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Dom António Couto, Bispo de Lamego, em texto que me chegou pela mão da Fraternitas, mais propriamente de João Guerra, assenta em que “a figura que enche este Dia e que motiva a nossa Alegria” é “Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento”. E menciona o lacónico texto paulino que se refere “à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: ‘Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei’.” (Gl 4,4). E comenta:
Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma ‘mulher’, verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que Ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.”.
A seguir, menciona o Evangelho (Lucas 2,16-21), que encerra uma preciosidade:
Lucas diz[-nos] que ‘todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria GUARDAVA (synetêrei) todas estas Palavras que aconteceram (tà rhêmata), COMPONDO-as (symbállousa) no seu coração’.” (Lc 2,18-19).
Esta postura de Maria está em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, mas segundo o quadro mariano pintado por Lucas, Ela guardava e compunha as palavras que ouvia. E o prelado lamecense anota “o espanto e a maravilha” que se exprimem no louvor e no canto, como “no silêncio e na escuta qualificada e comovida”. Para o Bispo de Lamego, “o verbo GUARDAR implica uma atenção extremada e carinhosa, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa”, que não é “o ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração”.
No âmbito do verbo ‘symbállô’ – COMPOR, isto é, ‘pôr em conjunto’, simbolizar, organizar, para melhor compreender e se fazer compreender – Maria “é como quem, com aquelas Palavras, COMPÕE um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria”.
E é nesta atividade discreta de Maria que António Couto parece vislumbrar que a solicitude maternal da Virgem, “habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus e nos reconcilia, levou o Papa Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz”. E já vamos no 53.º Dia Mundial da Paz. E considera que Francisco deu à mensagem “para este dia de Maria o título oportuno e significativo de ‘Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca da paz”, desenhando “diante de todos os homens e mulheres de boa vontade o cenário do mundo de que somos nós hoje os habitantes, e de que devemos ser também os cuidadores”. E o prelado da cidade (tida como) das cortes observa:
Os muitos e diversificados grupos de homens e mulheres, nossos irmãos e irmãs, que hoje se movimentam no mundo, fazem-no fugindo de situações de guerra, de fome e de miséria, e vão em busca da paz e de dignidade. Nós sabemos que a justiça é o sabor que vem de Deus, e que a paz não é a paz romana, assente no poder das armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes.”.
E, considerando um contrassenso combater pela Paz, pois, “quando nos sentamos a fazer acordos de Paz, é porque já antes perdemos a razão”, diz-nos:
A paz é primeira. É um Dom de Deus para todo o ser humano que vem a este mundo. Portanto, num mundo tantas vezes às avessas, o Papa exorta-nos a aprender outra vez a acolher, proteger, promover e integrar.”.
Depois, além da paz e para a paz, é necessária a bênção, pelo que o Bispo de Lamego pede:
Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: ‘O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz’.” (Nm 6,24-26).
Assim, sugere que juntemos, com o Salmo 67, nossas vozes às dos povos de toda a terra no mesmo louvor ao Deus que a todos faz graça e misericórdia. Este salmo é uma oração de bênção em forma de petição e equivale a uma epíclese: não “eu Te bendigo”, mas “Deus nos bendiga”. E recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, mas pondo o plural onde estava o singular, “democratizando” a bênção, agora dirigida a todos, quando, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia a Israel.
Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro são títulos que António Couto dá a Maria para lhe dizer que a 1.ª página do ano é toda dela. É bom que Senhora da bênção nos abençoe, que a acariciada por Deus no acaricie a nós acariciando Deus. E nós a proclamemos “Bem-aventurada”.
E o Bispo de Lamego pede que Ela nos sente “em casa ao redor do amor, do coração”, pois somos “tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade”. Pensamos que “temos tudo, mas falta-nos, se calhar, o essencial”: a simplicidade e alegria. Que Ela nos faça sentir o calor da sua mão “no nosso rosto frio, insensível, enrugado” e nos faça “correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados, dos migrantes e refugiados”.
E termina o seu texto poeticamente como segue e como leu o Padre César Costa na missa das 12 horas em Santa Maria da Feira:
Que Deus nos abençoe e nos guarde,
Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,
Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,
Cheios de amor, de paz e de alegria,
Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,
E nos ponha no caminho de Maria.

O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
O Fiat que disseste, Maria, é de quem se fia
Num amor maior do que um letreiro.
Vela por nós, Maria, em cada dia
Deste ano inteiro,
Para que levemos a cada enfermaria,
A cada periferia,
Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.

***
Na Missa da Solenidade, as palavras do Papa foram para todas as mulheres vítimas de diferentes formas de violência, pois “toda a violência infligida à mulher é profanação de Deus, nascido de uma mulher”: “a salvação chegou à humanidade, a partir do corpo de uma mulher” e, “pelo modo como tratamos o corpo da mulher, vê-se o nosso nível de humanidade.
Francisco, lembrando que o “renascimento da humanidade começou pela mulher”, criticou a exploração do corpo da mulher na publicidade e a prostituição. E disse:
Quantas vezes o corpo da mulher acaba sacrificado nos altares profanos da publicidade, do lucro, da pornografia, explorado como se usa uma superfície qualquer. Há que libertá-lo do consumismo, deve ser respeitado e honrado; é a carne mais nobre do mundo: concebeu e deu à luz o Amor que nos salvou! Ainda hoje a maternidade é humilhada, porque o único crescimento que interessa é o económico.”.
Deixou uma palavra para as mães migrantes que, “na busca desesperada de dar um futuro melhor ao fruto do seu seio, se arriscam a viagens impraticáveis e acabam julgadas como número excedente por pessoas que têm a barriga cheia, mas de coisas, e o coração vazio de amor.” Exprimiu o voto de que as mulheres tenham mais cargos de poder: Uma conquista a favor da mulher é uma conquista em prol da humanidade inteira” – declarou.
Por outro lado, meditando a maternidade divina de Maria, deixou um rasgo eclesiológico dizendo que também a Igreja, como Maria, é mulher e mãe e se sente chamada a anunciar o nascimento do Senhor e a gerá-lo em nossas vidas. E concluiu:
Aproximando-se de Maria, a Igreja reencontra o seu centro e a sua unidade. Ao contrário, o inimigo da natureza humana, o demónio, procura dividi-la, enfatizando diferenças, ideologias, pensamentos unilaterais e partidos. Jamais poderemos compreender a Igreja, se a olharmos só a partir das estruturas, programas e tendências e não do coração. A Igreja tem coração de mãe.”.
E o Santo Padre concluiu a sua homilia, pedindo à Mãe de Jesus, à Mãe da Igreja a unidade e a esperança. Sob o seu manto materno confiou este ano novo de 2020, que está em início.
2020.01.02 – Louro de Carvalho

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