sábado, 18 de janeiro de 2020

Está a crescer um “novo Islão” na Europa


Quem o diz é Catarina Belo, católica, filha do poeta Ruy Belo e de Maria Teresa Belo e, há 14 anos, professora de Filosofia Islâmica Medieval no Egito.
Em entrevista à Ecclesia e à Renascença, publicada a 17 de janeiro, assegura que “o terrorismo é sobretudo político e tem nos muçulmanos as primeiras vítimas”, advoga que “o conhecimento é a via para criar aproximações com o mundo islâmico, sublinha a importância das lideranças religiosas na promoção da paz e analisa o crescimento do islamismo na Europa, em contexto minoritário”, mas mais “pluralista” e com novas experiências “até teológicas”.
Descobriu o gosto pela Filosofia na biblioteca da família. O que a levou à especialização em filosofia islâmica medieval foi o interesse pela história de Portugal, onde sobressai a presença da filosofia islâmica,  e o facto de o Médio Oriente estar nas notícias há várias décadas, reconhecendo que se trata duma “área que ainda precisa de mais investigação e de estudo”, pois “ainda há muita coisa para fazer”, de modo que “quem se quiser dedicar tem ali muito trabalho e temas muito interessantes”. Por outro lado, diz que tem havido um interesse crescente a nível académico em saber mais sobre o mundo islâmico, referindo: 
Por exemplo, quando aconteceu o 11 de Setembro eu estava a fazer o doutoramento em Oxford e os pedidos de inscrição em cursos de estudos árabes e islâmicos dispararam nessa altura”.
Frisa que houve mais interesse a partir de 2001. “Foi uma situação crítica, mas “o interesse continua, justamente por causa das notícias”.
Tem acompanhado o conflito EUA-Irão, pois vive no Médio Oriente e trabalha numa universidade americana, “lugar de interação entre esses dois mundos” (ocidental e islâmico) e entre os colegas egípcios e os colegas americanos. E, sobre os pontos de vista diferentes, discorre:
No Médio Oriente há a ideia de que nada acontece por acaso, não sei se tem a ver com uma perspetiva mais religiosa, mas eles acham sempre que há uma intenção, que nada acontece por acaso. Depois há outras questões, já de várias décadas, como a questão de Israel, que é uma questão muito sensível.”.
Diz que as diferenças culturais e de pensamento se manifestam no dia a dia, não apenas a nível político, mas a todos os níveis, explicitando:
Na universidade americana não há só alunos muçulmanos, também há cristãos e de outras religiões, porque temos várias nacionalidades. Por exemplo, temos alunos libaneses que pertencem a vários grupos cristãos e islâmicos.”.
É verdade que há uma maneira diferente de pensar e encarar as coisas, mas “também há muitos pontos em comum”. E as diferenças não impedem a convivência, como explica:
Sobretudo na sala de aula e falando sobre certos temas. A minha investigação é mais sobre a filosofia medieval, mas há muitos alunos interessados em ciências políticas e sociologia e aí são as questões da atualidade que vêm ao de cima.”.
***
Questionada sobre se o terrorismo mina definitivamente a confiança do Ocidente em relação ao mundo árabe, não hesitou na resposta: 
O terrorismo pode ser analisado a vários níveis. Pode ser um terrorismo estatal, mas a maior parte dos grupos que são estudados agora, a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, não são grupos estatais – se bem que o ISIS estava a tentar ser um Estado, o Estado Islâmico, e replicar o califado. Mas depende, pode ou não haver ligações com o Estado, e há vários tipos de terrorismo. Alguns grupos acham que estão a resistir, eles próprios não se autodenominam ‘terroristas’, acham que é uma resistência a certas agressões.”.
Quanto ao juízo de valor sobre tal resistência e se tem fundamento no Islão, opina dizendo:
Acho que é mais uma questão política. Por exemplo, o Hezbollah surgiu especificamente como movimento de resistência à ocupação do Líbano por Israel, ocupação da parte de Beirute e do sul do Líbano. Eles têm o seu próprio discurso, a sua narrativa e maneira de ver as coisas. Mas o terrorismo é um fenómeno muito complexo, com muitos atores.”.
Admite que haja preconceito por parte do Ocidente em relação ao Islão em alguns aspetos, mas não deixa de esclarecer que “também há vários tipos de Islão”. E explica:
Por exemplo, os Estados Unidos há muito tempo que são aliados da Arábia Saudita, que é um país maioritariamente sunita. Portanto pode haver uma união política havendo uma visão religiosa diferente, é perfeitamente possível. Por isso é que eu acho que a questão política talvez seja mais importante, ou mais saliente quando há confrontos. Claro que a religião está relacionada, mas é uma religião misturada com política, não é só religião.”.
Interpelada quanto à ignorância em relação ao mundo islâmico, mais que preconceito, expõe:
É importante conhecer a religião e a diversidade religiosa desses países. Por exemplo, o Líbano reconhece oficialmente 18 grupos religiosos diferentes, 12 cristãos e seis islâmicos. É um país que em termos de território é um décimo de Portugal, e é impressionante a diversidade religiosa. Portanto, é importante conhecer a diversidade – os países são diferentes, os grupos religiosos são diferentes, até os grupos cristãos são diferentes – e conhecer a história.”.
Depois, fala da importante questão do colonialismo, em relação às fronteiras dos países no Médio Oriente, que ainda permanece, lembrando:
Há um século terminava o Império Otomano, e havia uma conceção completamente diferente da comunidade islâmica. Por isso, é muito importante conhecer a história, conhecer os diversos tipos de religião ou grupos religiosos.”.
***
Os entrevistadores quiseram saber se, na opinião de Catarina Belo, matar Soleimani  dirigente do Irão, país de maioria xiita, revela inabilidade e falta de conhecimento por parte do presidente dos EUA, ao que a entrevistada responde com conhecimento de causa e segurança: 
Foi um ataque a um nível muito alto…. Atacar assim era como se os iranianos de repente enviassem um drone e matassem o vice-presidente dos EUA, acho que os Estados Unidos nunca esperariam que lhes acontecesse isso a eles. Isto só vai exacerbar os problemas, os próprios iranianos disseram que pode enfraquecer momentaneamente o Irão, mas vai fortalecer alguns grupos radicais sunitas, como a Al Qaeda, ou o Estado Islâmico. É uma situação muito complexa.”.
A seguir, ataca a incoerência de Trump, observando:
Ele há de ter os seus conselheiros, mas não há muita coerência, porque por um lado o presidente Trump queria diminuir a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente, retirar tropas do Afeganistão, depois volta a colocar. A mesma coisa no Iraque, dizem que vão retirar, depois voltam. Julgo que há uma falta de consistência e de visão em relação àquilo que é a realidade.”.
Admite que será a proximidade das eleições nos Estados Unidos que está a motivar esta manifestação de força, pois, “quando há eleições, a situação altera-se e ajusta-se sempre aos objetivos eleitorais, não só nos Estados Unidos, também noutros países”.
Reconhece que “não é possível olhar para estes conflitos sem ter em conta a religião e até a filosofia” e especifica denunciando um certo atraso cultural e as diferenças entre os islamitas:
A religião, a filosofia e até a teologia também é muito importante. E há uma ligação entre a teologia e a filosofia, como na Idade Média e na Europa. São questões muito importantes. E, se o sunismo é um pouco mais homogéneo, dentro do xiismo há vários grupos, se bem que neste momento estão unidos. Por exemplo, o presidente sírio Bashar Al Assad não pertence ao mesmo grupo xiita dos iranianos, mas estão mais próximos uns dos outros do que dos sunitas. Portanto, há toda esta complexidade.”.
Tais diferenças e divisões dificultam que o Islão seja visto como uma religião de paz, diz, “na medida em que há conflitos entre muçulmanos no Médio Oriente”. Porém, em sua opinião, apesar dos ataques na Europa e na América do Norte e noutros países, “as primeiras vítimas do terrorismo de caráter islâmico são os próprios muçulmanos”, bem como as minorias cristãs – isto devido aos conflitos entre diferentes grupos muçulmanos.
***
Também comenta o papel dos líderes religiosos na promoção da paz:
São muito importantes! Os apelos do Papa e também do líder da Al-Azhar, a Universidade e a mesquita, Ahmed el-Tayeb, que assinou o documento nos Emirados Árabes Unidos. É uma mensagem de paz! As coisas podem começar pelos crentes, mas é muito importante haver esta mensagem dos líderes religiosos em relação à paz.”.
Reconhece como desejável que os líderes islâmicos tenham um papel mais ativo, mas aponta uma dificuldade: os muçulmanos não têm a mesma unidade que os católicos: para os católicos o Papa fala por todos, ao passo que, no mundo islâmico não há uma figura equivalente. E diz:   
No Islão, cada muçulmano pode representar todo o Islão e a questão da autoridade é diferente, como é diferente no sunismo e no xiismo. Há o grande Íman da mesquita de al-Azhar (…), mas não é equivalente ao Papa. Tem as suas posições, condena sempre estes atentados, mas cada muçulmano pode seguir a opinião que desejar.”.
***
Sobre o seu modo de ser católica no Egito, conta:
Há questões práticas: no centro há muitas igrejas católicas. E também poderia ir às igrejas coptas. Mas, eu moro no novo Cairo e a igreja mais próxima está a uns 15 quilómetros. De resto não há problema.”.
De no atinente ao nível de convivência, regista:
É muito interessante ver a diversidade que existe, com a presença dos cristãos do Médio Oriente, os melquitas, os caldeus… É impressionante essa diversidade. Há uma unidade teológica, mas o culto é ligeiramente diferente. É uma experiência muito interessante. Em relação aos coptas, há os coptas ortodoxos, que seguem o Papa [Patriarca] de Alexandria, e há os coptas católicos, porque algumas dessas igrejas orientais decidiram unir-se à Igreja Católica. É uma grande riqueza.”.
Julga que, de momento, está melhor, no Egito, a relação entre a maioria muçulmana e as minorias cristãs, havendo “uma tentativa do atual Governo de defender a minoria cristã, de haver um equilíbrio entre as várias comunidades”. E diz sentir-se segura a viver no Cairo, apesar de o Egito ter sido palco de atentados, alguns contra cristãos.
Também diz que “até agora não houve problemas” em trabalhar na universidade americana, apesar de esta ser mais um alvo. E aponta:
Quando vamos para a Universidade, temos de passar as bolsas (malas) pelo raio X. Dizem que é mais uma questão de defender os alunos de ataques como os que há nos EUA, nas escolas secundárias…”.
Por outro lado, fala de algumas cautelas e do facto de ser mulher a viver no Egito:
É quase o melhor de dois mundos: por um lado trabalho numa universidade americana e, sendo estrangeira, não há a expectativa de seguir os preceitos islâmicos. Claro que é preciso respeitar, não vestir de certas maneiras, isso é importante! Mas, ao mesmo tempo, achar que a mulher não deve ser exposta e explorada de uma certa maneira, isso é muito saudável. Eu sinto-me lindamente!”.
***
No respeitante à ‘Primavera Árabe’ que acompanhou, pois, vive no Egito desde 2006, observa que a região, de um modo geral, se tornou “um pouco mais instável por causa da guerra na Síria, na Líbia, que fica logo ao lado do Egito”, mas que “há experiências importantes na Tunísia”. E faz a seguinte valoração:
Foi uma experiência importante. Mas agora as pessoas são cautelosas, justamente em relação aos problemas que surgiram nalguns países. A situação mudou, de novo.”.
***
Sendo-lhe recordado que, a partir de hoje, dia 18, as igrejas cristãs assinalam a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, evocando a realidade dos migrantes e refugiados que tentam chegar à Europa e acabam vítimas de naufrágios no Mediterrâneo,  explana:
Nós vemos as coisas na perspetiva europeia e os migrantes a tentarem chegar à Europa. Mas o Egito também acolhe muitos refugiados, do Sudão, por exemplo, da Eritreia, da Síria. (…) O Egito tem uma população que ultrapassa os 100 milhões e conseguiu absorver esses refugiados.”.
Não se pronuncia sobre a posição oficial da Europa por não ter certezas, mas concede:
Naqueles países é mais difícil controlar as fronteiras. Talvez haja mais recetividade em relação aos migrantes. Por exemplo, o Líbano tem uma população de quatro milhões e agora mais um milhão de sírios, o que veio desestabilizar muito o país e economia. Apesar disso, não expulsam esses migrantes sírios. Ainda por cima sendo da Síria, que ocupou o Líbano durante anos. Há uma posição menos formal e mais acolhedora nesses países.”.
Confrontada com uma criminalização da assistência humanitária por parte de alguns países, julga que se trata de choques culturais a que estamos a assistir e acusa:
Ainda não há uma posição unida da Europa, dos vários países. Isso cria problemas, porque alguns estão mais expostos ao fenómeno da migração no Mediterrâneo, teria de haver mais acordos em relação à Europa do Norte. Cada país tem governos e posições diferentes em relação às migrações.”.
***
Por fim, comenta o aumento considerável da população e o impacto que isso terá na Europa a nível cultural e religioso, aflorando a emergência de um novo Islão. E começa por referir:
Parece-me que a maioria dessa população está a integrar-se (depende do sítio onde vivem, dos países, das circunstâncias) e acabam por seguir o secularismo: praticam a religião, mas não a impõem. Por exemplo, em Londres há um Mayor (presidente da câmara) muçulmano. E não temos de ter receio disso.”.
Será, como sugerem os entrevistadores, um Islão com características muito específicas o que se vive na Europa, um Islão diferente, até com “certos desenvolvimentos teológicos que são muito diferentes, por haver um contexto político diferente”, um Islão que tem de se adaptar. Com efeito, se “no Médio Oriente os muçulmanos são maioritários, na Europa são minoritários e as circunstâncias políticas são diferentes”. Assim, a entrevistada considera que “há outras experiências, até em termos teológicos, de pensar a integração e como viver o Islão em contexto minoritário e em certos aspetos mais pluralistas”. E, a este nível do pluralismo, entende como bom exemplo o de Portugal no âmbito da liberdade religiosa e no acolhimento aos refugiados. “Os vários grupos religiosos, diz, estão representados cá e Portugal tem acolhido”: “não estamos tão expostos como a Espanha”.
***
Adicionalmente, porque interpelada sobre o assunto, disse que o projeto de criar a ‘Casa Ruy Belo’, em Óbidos, uma residência para escritores, está a avançar. E detalhou:
Estive em contacto há pouco com um represente da câmara que me diz que as obras estão a avançar e possivelmente no verão vai ser possível inaugurar a ‘Casa Rui Belo’. (…) O espólio ainda está onde estou a morar (casa de família em Queluz) e ainda não está todo catalogado e organizado. Houve uma parte da biblioteca que já seguiu para Óbidos. Eu própria fiz a catalogação desses exemplares, mas há espólio que ainda está à espera de ser catalogado e espero que surja uma oportunidade.”.
***
Assim, espera-se que a ‘Casa Ruy Belo”, o poeta que o Cardeal José Tolentino Mendonça já considerou “um dos escritores mais espirituais do século XX português”, constitua uma mais-valia cultural e literária para o país e para os escritores mais desamparados. E, quanto ao Islão, espera-se que o futuro dê inteira razão a Catarina Belo e que sejam desmentidas na realidade as informações que chegam de países de extrema intolerância, como a Arábia Saudita, e as notícias de ódio que se dizem vir de alguns setores, incluindo escolas.
A paz merece tudo de bom. A família humana tem de cavar o diálogo e o entendimento!
2020.01.18 – Louro de Carvalho 

Sem comentários:

Enviar um comentário