Quem
o diz é Catarina Belo, católica, filha do poeta Ruy Belo e de Maria Teresa Belo
e, há 14 anos, professora de Filosofia Islâmica Medieval no Egito.
Em entrevista à Ecclesia
e à Renascença, publicada a 17 de janeiro, assegura que “o terrorismo é
sobretudo político e tem nos muçulmanos as primeiras vítimas”, advoga que “o
conhecimento é a via para criar aproximações com o mundo islâmico, sublinha a
importância das lideranças religiosas na promoção da paz e analisa o crescimento
do islamismo na Europa, em contexto minoritário”, mas mais “pluralista” e com
novas experiências “até teológicas”.
Descobriu o gosto pela
Filosofia na biblioteca da família. O que a levou à especialização em filosofia
islâmica medieval foi o interesse pela história de
Portugal, onde sobressai a presença da filosofia islâmica, e o facto
de o Médio Oriente estar nas notícias há várias décadas, reconhecendo que
se trata duma “área que ainda precisa de mais investigação e de estudo”, pois “ainda
há muita coisa para fazer”, de modo que “quem se quiser dedicar tem ali muito
trabalho e temas muito interessantes”. Por outro lado, diz que tem havido um interesse crescente a nível
académico em saber mais sobre o mundo islâmico, referindo:
“Por exemplo, quando aconteceu o 11 de
Setembro eu estava a fazer o doutoramento em Oxford e os pedidos de inscrição
em cursos de estudos árabes e islâmicos dispararam nessa altura”.
Frisa que houve mais interesse a partir de 2001. “Foi uma
situação crítica, mas “o interesse continua, justamente por causa das
notícias”.
Tem acompanhado o conflito EUA-Irão, pois vive no
Médio Oriente e trabalha numa universidade americana, “lugar de
interação entre esses dois mundos” (ocidental e islâmico) e entre os colegas egípcios e os colegas americanos. E,
sobre os pontos de vista diferentes,
discorre:
“No Médio Oriente há a ideia de
que nada acontece por acaso, não sei se tem a ver com uma perspetiva mais
religiosa, mas eles acham sempre que há uma intenção, que nada
acontece por acaso. Depois há outras questões, já de várias
décadas, como a questão de Israel, que é uma questão muito
sensível.”.
Diz que as diferenças
culturais e de pensamento se manifestam no dia a dia, não apenas a nível
político, mas a todos os níveis, explicitando:
“Na universidade americana não há só alunos
muçulmanos, também há cristãos e de outras religiões, porque temos várias
nacionalidades. Por exemplo, temos alunos libaneses que pertencem a vários
grupos cristãos e islâmicos.”.
É verdade que há uma
maneira diferente de pensar e encarar as coisas, mas “também há muitos pontos em comum”. E as diferenças não
impedem a convivência, como explica:
“Sobretudo na sala de aula e falando sobre
certos temas. A minha investigação é mais sobre a filosofia medieval, mas há
muitos alunos interessados em ciências políticas e sociologia e aí são as
questões da atualidade que vêm ao de cima.”.
***
Questionada sobre se o terrorismo
mina definitivamente a confiança do Ocidente em relação ao mundo
árabe, não hesitou na resposta:
“O terrorismo pode ser analisado a vários
níveis. Pode ser um terrorismo estatal, mas a maior parte dos grupos que
são estudados agora, a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, não são grupos
estatais – se bem que o ISIS estava a tentar ser um Estado, o Estado Islâmico, e
replicar o califado. Mas depende, pode ou não haver ligações com o
Estado, e há vários tipos de terrorismo. Alguns grupos acham que estão a
resistir, eles próprios não se autodenominam ‘terroristas’, acham que é uma
resistência a certas agressões.”.
Quanto ao juízo de valor
sobre tal resistência e se tem fundamento no Islão, opina dizendo:
“Acho que é mais uma questão política.
Por exemplo, o Hezbollah surgiu especificamente como movimento de
resistência à ocupação do Líbano por Israel, ocupação da parte de Beirute
e do sul do Líbano. Eles têm o seu próprio discurso, a sua narrativa e maneira
de ver as coisas. Mas o terrorismo é um fenómeno muito complexo, com muitos
atores.”.
Admite que haja preconceito
por parte do Ocidente em relação ao Islão em alguns aspetos, mas não deixa
de esclarecer que “também há
vários tipos de Islão”. E explica:
“Por exemplo, os Estados Unidos há muito
tempo que são aliados da Arábia Saudita, que é um país maioritariamente
sunita. Portanto pode haver uma união política havendo uma visão religiosa
diferente, é perfeitamente possível. Por isso é que eu acho que a questão
política talvez seja mais importante, ou mais saliente quando há confrontos.
Claro que a religião está relacionada, mas é uma religião misturada com
política, não é só religião.”.
Interpelada quanto à
ignorância em relação ao mundo islâmico, mais que preconceito, expõe:
“É importante conhecer a religião e a diversidade
religiosa desses países. Por exemplo, o Líbano reconhece oficialmente 18 grupos
religiosos diferentes, 12 cristãos e seis islâmicos. É um país que em termos de
território é um décimo de Portugal, e é impressionante a diversidade religiosa.
Portanto, é importante conhecer a diversidade – os países são diferentes,
os grupos religiosos são diferentes, até os grupos cristãos são
diferentes – e conhecer a história.”.
Depois, fala da importante questão do
colonialismo, em relação às fronteiras dos países no Médio Oriente, que
ainda permanece, lembrando:
“Há um século terminava o Império
Otomano, e havia uma conceção completamente diferente da comunidade
islâmica. Por isso, é muito importante conhecer a história,
conhecer os diversos tipos de religião ou grupos religiosos.”.
***
Os entrevistadores quiseram
saber se, na opinião de Catarina Belo, matar Soleimani dirigente do Irão,
país de maioria xiita, revela inabilidade e falta de conhecimento por
parte do presidente dos EUA, ao que a entrevistada responde com conhecimento de
causa e segurança:
“Foi
um ataque a um nível muito alto…. Atacar assim era como se os
iranianos de repente enviassem um drone e matassem o vice-presidente dos EUA,
acho que os Estados Unidos nunca esperariam que lhes acontecesse isso a eles.
Isto só vai exacerbar os problemas, os próprios iranianos disseram que pode
enfraquecer momentaneamente o Irão, mas vai fortalecer alguns grupos radicais
sunitas, como a Al Qaeda, ou o Estado Islâmico. É uma situação muito complexa.”.
A seguir, ataca a
incoerência de Trump, observando:
“Ele há de ter os seus conselheiros,
mas não há muita coerência, porque por um lado o presidente
Trump queria diminuir a presença militar dos Estados Unidos no Médio Oriente,
retirar tropas do Afeganistão, depois volta a colocar. A mesma coisa no
Iraque, dizem que vão retirar, depois voltam. Julgo que há uma falta
de consistência e de visão em relação àquilo que é a realidade.”.
Admite que será a
proximidade das eleições nos Estados Unidos que está a motivar esta
manifestação de força, pois, “quando há
eleições, a situação altera-se e ajusta-se sempre aos objetivos eleitorais, não só
nos Estados Unidos, também noutros países”.
Reconhece que “não é
possível olhar para estes conflitos sem ter em conta a religião e até a
filosofia” e especifica denunciando um certo atraso cultural e as diferenças
entre os islamitas:
“A religião, a filosofia e até a teologia
também é muito importante. E há uma ligação entre a teologia e a
filosofia, como na Idade Média e na Europa. São questões muito importantes.
E, se o sunismo é um pouco mais homogéneo, dentro do xiismo há vários
grupos, se bem que neste momento estão unidos. Por exemplo, o
presidente sírio Bashar Al Assad não pertence ao mesmo grupo xiita dos
iranianos, mas estão mais próximos uns dos outros do que dos sunitas.
Portanto, há toda esta complexidade.”.
Tais
diferenças e divisões dificultam que o Islão seja visto como uma
religião de paz, diz, “na medida em
que há conflitos entre muçulmanos no Médio Oriente”. Porém, em sua opinião,
apesar dos ataques na Europa e na América do Norte e noutros países, “as
primeiras vítimas do terrorismo de caráter islâmico são os próprios muçulmanos”,
bem como as minorias cristãs – isto devido aos conflitos
entre diferentes grupos muçulmanos.
***
Também comenta o papel dos
líderes religiosos na promoção da paz:
“São muito
importantes! Os apelos do Papa e também do líder da Al-Azhar, a Universidade e
a mesquita, Ahmed el-Tayeb, que assinou o documento nos Emirados Árabes
Unidos. É uma mensagem de paz! As coisas podem começar pelos crentes, mas
é muito importante haver esta mensagem dos líderes religiosos em relação à paz.”.
Reconhece como desejável
que os líderes islâmicos tenham um papel mais ativo, mas aponta uma
dificuldade: os muçulmanos não têm a mesma unidade que os católicos: para os católicos o Papa fala por todos, ao passo que,
no mundo islâmico não há uma figura equivalente. E diz:
“No Islão, cada muçulmano pode representar
todo o Islão e a questão da autoridade é diferente, como é diferente no sunismo
e no xiismo. Há o grande Íman da mesquita de al-Azhar (…), mas não é
equivalente ao Papa. Tem as suas posições, condena sempre estes atentados, mas
cada muçulmano pode seguir a opinião que desejar.”.
***
Sobre o seu modo de ser
católica no Egito, conta:
“Há questões
práticas: no centro há muitas igrejas católicas. E também poderia ir às igrejas
coptas. Mas, eu moro no novo Cairo e a igreja mais próxima está a uns 15
quilómetros. De resto não há problema.”.
De no atinente ao nível de
convivência, regista:
“É muito interessante ver a diversidade que
existe, com a presença dos cristãos do Médio Oriente, os melquitas, os
caldeus… É impressionante essa diversidade. Há uma unidade teológica,
mas o culto é ligeiramente diferente. É uma experiência muito interessante. Em
relação aos coptas, há os coptas ortodoxos, que seguem o Papa [Patriarca] de
Alexandria, e há os coptas católicos, porque algumas dessas igrejas orientais
decidiram unir-se à Igreja Católica. É uma grande riqueza.”.
Julga que, de momento, está
melhor, no Egito, a relação entre a maioria muçulmana e as minorias cristãs,
havendo “uma tentativa do atual Governo de defender
a minoria cristã, de haver um equilíbrio entre as várias comunidades”. E diz
sentir-se segura a
viver no Cairo, apesar de o Egito ter sido palco de atentados, alguns contra
cristãos.
Também diz que “até
agora não houve problemas” em trabalhar na universidade americana,
apesar de esta ser mais um alvo. E aponta:
“Quando vamos para a Universidade, temos de
passar as bolsas (malas) pelo raio X. Dizem que é mais uma questão de defender
os alunos de ataques como os que há nos EUA, nas escolas secundárias…”.
Por outro lado, fala de
algumas cautelas e do facto de ser mulher a viver no Egito:
“É quase o
melhor de dois mundos: por um lado trabalho numa universidade americana e,
sendo estrangeira, não há a expectativa de seguir os preceitos islâmicos. Claro
que é preciso respeitar, não vestir de certas maneiras, isso é importante! Mas,
ao mesmo tempo, achar que a mulher não deve ser exposta e explorada de uma
certa maneira, isso é muito saudável. Eu sinto-me lindamente!”.
***
No respeitante à ‘Primavera
Árabe’ que acompanhou, pois, vive no Egito desde 2006, observa que a região, de um modo geral, se tornou “um pouco mais
instável por causa da guerra na Síria, na Líbia, que fica logo ao lado do Egito”,
mas que “há experiências importantes na Tunísia”. E faz a seguinte valoração:
“Foi uma
experiência importante. Mas agora as pessoas são cautelosas, justamente em
relação aos problemas que surgiram nalguns países. A situação mudou, de novo.”.
***
Sendo-lhe recordado que, a
partir de hoje, dia 18, as igrejas cristãs assinalam a Semana de Oração pela
Unidade dos Cristãos, evocando a realidade dos migrantes e refugiados que
tentam chegar à Europa e acabam vítimas de naufrágios no Mediterrâneo, explana:
“Nós vemos as coisas na perspetiva europeia
e os migrantes a tentarem chegar à Europa. Mas o Egito também acolhe muitos
refugiados, do Sudão, por exemplo, da Eritreia, da Síria. (…) O Egito tem uma
população que ultrapassa os 100 milhões e conseguiu absorver esses refugiados.”.
Não se pronuncia sobre a posição oficial da Europa por
não ter certezas, mas concede:
“Naqueles países é mais difícil controlar as
fronteiras. Talvez haja mais recetividade em relação aos
migrantes. Por exemplo, o Líbano tem uma população de quatro milhões e
agora mais um milhão de sírios, o que veio desestabilizar muito o país e
economia. Apesar disso, não expulsam esses migrantes sírios. Ainda por
cima sendo da Síria, que ocupou o Líbano durante anos. Há uma posição menos
formal e mais acolhedora nesses países.”.
Confrontada com uma
criminalização da assistência humanitária por parte de alguns países, julga que
se trata de choques culturais a que estamos a assistir e acusa:
“Ainda não há uma posição unida da Europa,
dos vários países. Isso cria problemas, porque alguns estão mais expostos
ao fenómeno da migração no Mediterrâneo, teria de haver mais acordos em relação
à Europa do Norte. Cada país tem governos e posições diferentes em relação às
migrações.”.
***
Por fim, comenta o aumento
considerável da população e o impacto que isso terá na Europa a nível cultural
e religioso, aflorando a emergência de um novo Islão. E começa por referir:
“Parece-me que a maioria dessa população
está a integrar-se (depende do sítio onde vivem, dos países, das
circunstâncias) e acabam por seguir o secularismo: praticam a religião, mas não
a impõem. Por exemplo, em Londres há um Mayor (presidente da câmara) muçulmano. E
não temos de ter receio disso.”.
Será, como sugerem os
entrevistadores, um Islão com características muito específicas o que se vive
na Europa, um Islão diferente, até com “certos
desenvolvimentos teológicos que são muito diferentes, por haver um contexto
político diferente”, um Islão que tem de se adaptar. Com efeito, se “no Médio
Oriente os muçulmanos são maioritários, na Europa são minoritários e as
circunstâncias políticas são diferentes”. Assim, a entrevistada considera que “há
outras experiências, até em termos teológicos, de pensar a integração e como
viver o Islão em contexto minoritário e em certos aspetos mais pluralistas”. E,
a este nível do pluralismo, entende como bom exemplo o de Portugal no âmbito da liberdade religiosa e no
acolhimento aos refugiados. “Os vários grupos religiosos, diz, estão
representados cá e Portugal tem acolhido”: “não estamos tão expostos
como a Espanha”.
***
Adicionalmente, porque
interpelada sobre o assunto, disse que o projeto de criar a ‘Casa Ruy Belo’, em
Óbidos, uma residência para escritores, está a avançar. E detalhou:
“Estive em
contacto há pouco com um represente da câmara que me diz que as obras estão a
avançar e possivelmente no verão vai ser possível inaugurar a ‘Casa Rui Belo’.
(…) O espólio ainda está onde estou a morar (casa de família em Queluz) e ainda
não está todo catalogado e organizado. Houve uma parte da biblioteca que já
seguiu para Óbidos. Eu própria fiz a catalogação desses exemplares, mas há
espólio que ainda está à espera de ser catalogado e espero que surja uma
oportunidade.”.
***
Assim, espera-se que a
‘Casa Ruy Belo”, o poeta que o Cardeal José Tolentino Mendonça já considerou “um
dos escritores mais espirituais do século XX português”, constitua uma
mais-valia cultural e literária para o país e para os escritores mais
desamparados. E, quanto ao Islão, espera-se que o futuro dê inteira razão
a Catarina Belo e que sejam desmentidas na realidade as informações que chegam
de países de extrema intolerância, como a Arábia Saudita, e as notícias de ódio
que se dizem vir de alguns setores, incluindo escolas.
A paz merece tudo de bom. A
família humana tem de cavar o diálogo e o entendimento!
2020.01.18 – Louro de
Carvalho
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