sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Esquecimento, proteção, zelo, violência, racismo…


Como revelou ao jornal Contacto, uma cidadã portuguesa negra, de 42 anos, foi detida pela polícia da Amadora no passado dia 19, tendo o incidente começado no autocarro 163 depois de se verificar que a filha de 8 anos, se esquecera do passe. Entraram as duas no autocarro e, quando a filha viu que não tinha o passe com ela, o motorista disse-lhe para sair. A mãe respondeu que ela tem o passe e que, quando chegassem ao destino, o filho iria lá estar com o passe da menina. Até aqui, registam-se apenas fenómenos de esquecimento da menina, zelo do motorista pelo pagamento da viagem e a proteção materna da filha.
Tendo as duas tomado lugar no autocarro, a mãe não se dirigiu mais ao motorista, mas, quando o autocarro parou no seu destino, no Bairro do Bosque, o condutor saíra disparado em direção a um agente da polícia de segurança pública (PSP) que estava ali perto. E não há notícia de ter chegado o filho com o passe da irmã. Aliás, se o passe ficou em casa, já teria havido mais uma viagem de autocarro sem passe, referência que ninguém faz.
Segundo as declarações da cidadã, que ficou com os lábios feridos e ensanguentados e os olhos inchados, marcas visíveis e tidas como incompatíveis com as técnicas de imobilização utilizadas pelas forças de segurança, a detida foi algemada diante da filha e arrastada para um dos carros patrulha que acorreram ao local. E recordou:
Ninguém me ajudou (…) Quando me meteram no carro, eu não queria aquele polícia comigo e garantiram-me que ele ia noutro carro, mas mentiram-me. Ele entrou para o meu lado, enquanto outros dois agentes iam à frente. Durante o caminho todo, fui esmurrada enquanto estava algemada. Eu estava cheia de sangue e gritava muito. Então, subiram o volume da música para não me ouvirem na rua.”.
Por seu turno, a PSP relata que, para travar as agressões, o polícia procedeu à algemagem da mulher, utilizando a força estritamente necessária para o efeito face à sua resistência, e regista que ela, “para se tentar libertar, mordeu repetidamente o polícia, ficando este com a mão e o braço direitos com marcas das mordidelas que sofreu e das quais recebeu tratamento hospitalar”.
Presente a um juiz de instrução criminal, a cidadã ficou indiciada do crime de resistência e coação sobre agente da autoridade, enquanto o polícia envolvido “não foi constituído arguido”.
Na verdade, a Direção Nacional da PSP informou que o polícia acusado de agredir a mulher detida “foi abordado pelo motorista de autocarro de transporte público que solicitou auxílio em face da recusa de uma cidadã em proceder ao pagamento da utilização do transporte da sua filha e também pelo facto de o ter ameaçado e injuriado”. Ao invés da denúncia da cidadã contra o polícia, a PSP afirmou que a mulher reagiu de forma “agressiva” perante a iniciativa do polícia em tentar dialogar, “tendo por diversas vezes empurrado o polícia com violência, motivo pelo qual lhe foi dada voz de detenção”. E, a partir da detenção da mulher, alguns cidadãos que se encontravam no interior do autocarro tentaram impedir a ação policial, nomeadamente “pontapeando e empurrando o polícia”, que se encontrava sozinho, e feriram o motorista.
A versão da cidadã garante que o polícia a agarrou, fez um mata-leão e caiu com ela de costas, enquanto a filha gritava: “Não mate a minha mãe, por favor”. Admite que mordeu a mão do polícia, porque estar a sufocar e pensar que ia morrer. Argumenta que agentes, que chegaram entretanto, terão tentado levá-la para a esquadra da Boba, no Casal de São Brás, mas não chegou a entrar, o que contraria a publicação da SOS Racismo, onde se lê que a cidadã alegadamente foi agredida dentro da esquadra de Casal de São Brás. Diz que, tendo a polícia chamado uma ambulância para a conduzir para o Hospital Amadora-Sintra, também ali foi maltratada e a médica terá dito que “vocês é que arranjam problemas com os polícias”. E foi, no dia 22, apresentada no Tribunal da Amadora.  
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Enquanto a PSP a acusa de resistir à detenção, SOS Racismo denuncia agressão “contra cidadã negra portuguesa”. A denúncia chegou às redes sociais, no dia 20: Cláudia Simões, 42 anos, ‘cidadã negra portuguesa’, alegadamente agredida por agentes da PSP, domingo à noite, na Amadora, em frente à filha Vitória, de 8 anos, ficou ‘num estado grave’ – em resultado das agressões que sofreu na paragem de autocarro e na viatura da PSP em direção à esquadra de Casal de São Brás, na Amadora, no distrito de Lisboa – e foi conduzida ao Hospital Amadora-Sintra. A associação pediu a suspensão do agente escrevendo em comunicado:
Tudo fará para que o caso seja conduzido até às últimas consequências para que se faça justiça e que se acabe com a impunidade da violência policial racista”.
Antes mesmo da abertura dum inquérito, o Bloco de Esquerda questionava o Governo sobre que medidas têm sido tomadas para formar adequadamente as forças policiais, nomeadamente no respeitante ao uso da força. O BE vê com preocupação os casos de violência policial, “um problema diagnosticado por diversas entidades e referido em relatórios recentes da Amnistia Internacional ou da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância”. Para a deputada do Livre, “é imperioso apurar todos os factos relativos a este caso de alegada violência policial”. A par disso, o partido continua a defender que seja implementada formação cívica de carácter obrigatório a todos os funcionários das instituições públicas, “incluindo forças de segurança, com destaque para as abordagens antirracistas”. André Ventura, do Chega adianta aguardar pela conclusão dos inquéritos e mantém a “total confiança nas forças de segurança” e entende que trazer a questão do racismo para o caso é “o pior serviço que se pode prestar”.
Por seu turno, o Partido Comunista salienta a “ação de valor inestimável das forças de segurança na manutenção da ordem pública, na garantia do respeito pela lei e na defesa da segurança dos cidadãos”, mas ressalva que a atuação tem de se pautar pelo respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e “deve ser sempre proporcional e adequada”. E diz que estão por responder algumas das questões colocadas ao Ministério de Eduardo Cabrita, como Quando considera o MAI estar em condições de prestar esclarecimentos sobre este assunto?”.
E o PS também questionou o Ministro Eduardo Cabrita.
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Tendo conhecimento sustentável de que os ferimentos da arguida – lábios ensanguentados e olhos inchados – são, à partida, “incompatíveis com técnicas de imobilização utilizadas pelas forças de segurança, o MAI (Ministério da Administração Interna) decidiu abrir um inquérito à atuação da PSP na Amadora através da IGAI (Inspeção-Geral da Administração Interna).
Também a PSP tem a correr um processo de averiguações para, a par do processo criminal, averiguar os factos alegados pela cidadã. O inquérito disciplinar vai focar-se nas agressões, de forma a perceber se os procedimentos foram os corretos. Também é possível que a mulher tenha batido com a cara no chão. Por isso, é preciso esperar pelas conclusões do inquérito antes falar de racismo nas questões policiais. A PSP transmitirá à IGAI “todos os elementos da averiguação interna que tem estado a realizar” no processo de averiguações sobre a atuação policial contra a cidadã e de que resultou numa denúncia contra o polícia de serviço.
A mulher foi, no dia 21, constituída arguida e sujeita à medida de coação de termo de identidade e residência. Segundo a Lusa, que cita fonte da Direção Nacional da PSP, a mulher ficou indiciada do crime de resistência e coação sobre agente da autoridade, enquanto o polícia envolvido “não foi constituído arguido”.
Já o sindicato da PSP, no dia 22, na página de Facebook, deseja “as melhoras ao colega” que interveio “numa ocorrência na Amadora”, desejando que não tenha apanhado “doenças graves”.
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O esquecimento do passe por parte duma criança de 8 anos, o zelo do motorista e do polícia e a proteção maternal deram azo a cenas de violência, presuntivamente recíproca – cidadã, polícia, outros passageiros – e comentários desnecessários no hospital. Fala-se em racismo, com desagrado de alguns e dúvidas de outros. De facto, sempre que estão em causa pessoas de etnias africanas, fala-se de racismo, o que pode ser abusivo, embora se saiba que há casos de comportamentos de verdadeiro racismo, o que é censurável se acaso existe nas forças da ordem. Elementos desses não têm condições para exercer funções. Por isso, tudo deve ser investigado também a este nível para que se apure a verdade e não se confunda a árvore com a floresta, até porque tanto podem estar em causa atos policiais como aproveitamento destes cidadãos.
Obviamente é de censurar toda a violência desnecessária por parte da polícia como a violência da resistência que suscita ondas de solidariedade de todo indesejáveis na condução do travamento de alterações da ordem pública. Resta saber quem provocou tais alterações no caso, como resta saber se a utilização da força pela polícia foi proporcionada ou se eventualmente ultrapassou as linhas vermelhas da decência, como interessa saber se a detenção da predita cidadã concitou indevidas malhas de solidariedade por parte de outros passageiros.
Essa de o sindicato suspeitar da transmissão de doenças da cidadã para a polícia é ridícula e raia as malhas do racismo, pois também a cidadã pode ter as mesmas suspeitas em relação à polícia.
De facto, pode acontecer que, nestes casos de ortodoxia duvidosa, muitos fiquem mal na fotografia: menina, irmão, mãe, condutor do autocarro, polícia e passageiros. A polícia não tem autoridade e pode estar compensar essa falta de autoridade com força desproporcionada. Como é que anda sozinho um polícia na rua? E como há gente a circular pensando que tudo lhe é permitido? Como é que se não tolera o pagamento duma pequena viagem e se tolera a subtração de milhões e milhões de euros de empresas, bancos e estruturas do Estado?
Que responda quem sabe!
2020.01.24 – Louro de Carvalho    

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