terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sobre o estatuto do Papa emérito


É real, embora sem grande motivo, a sensação de que Bento XVI, por si e/ou por utilização abusiva de outros, está a ser foco de perturbação ao normal curso da condução da Igreja católica por parte de Francisco, seu imediato sucessor.
Alguns dos que elogiaram a atitude corajosa do Pontífice emérito em renunciar devido ao reconhecimento da sua incapacidade física e psíquica para orientar o curso da Igreja, cuja orientação íntima e superna cabe ao Espírito Santo, sentem-se agora desiludidos com algumas posições tidas como perturbadoras. Recorde-se o caso do prefácio escrito em tempos por Ratzinger para o livro “O poder do silêncio”, do Cardeal Robert Sarah, em que tece rasgados elogios ao purpurado da Guiné-Conacri, o escrito sobre a teologia da substituição (pela qual as prerrogativas de povo eleito passaram integralmente de Israel para o novo povo de Deus protagonizado pela Igreja do cristianismo) e o escrito sobre os motivos que, em seu entender, terão levado ao dramático surto de abusos sexuais de menores por parte de membros do clero e de institutos religiosos.
A contestação ao Papa Francisco teve erupções com o posicionamento do anterior Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, do Cardeal Burke, lídimo representante da Igreja dos Príncipes, com as acusações do antigo núncio apostólico nos EUA e concomitante exigência de renúncia do Santo Padre. E recentemente surgiu o caso do livro “Da profundeza dos nossos corações”, inicialmente uma coprodução de Ratzinger/Bento XVI e Robert Sarah, sobre o tema do celibato sacerdotal, considerado como uma obrigação inerente ao sacerdócio ministerial e, por conseguinte, como um dom ironicamente a impor à Igreja Latina.
Além dessa postura em si, estranha-se a ocasião. Com efeito, Francisco está empenhado em elaborar a exortação apostólica pós-sinodal sobre a Igreja na Amazónia onde foi proposto o regime de exceção com a ordenação sacerdotal de diáconos casados e a ordenação diaconal de mulheres para obviar à assistência sacramental às comunidades e à animação das comunidades em termos da evangelização, do culto e da organização da caridade. Se o Papa aceitar a sugestão sinodal, pode ver-se, em relação ao livro, um tópico de rutura; se o Papa enveredar pela posição rígida da imposição do celibato sacerdotal também na Amazónia, pode entender-se que o livro de Ratzinger e Sarah constituiu uma forma de pressão, o que não é curial nem para um lado nem para o outro.
Acresce que, além doutros sintomas de contestação ao único Pontífice legítimo, a comunicação social referiu o encontro discreto e informal que juntou no Penha Longa Resort, em Sintra, de 22 a 25 de janeiro, 110 Bispos e alguns cardeais, de 42 países, sob convocação do Instituto Acton para o Estudo da Religião e da Liberdade. O encontro dedicou-se ao estudo, discussão e partilha de experiências em torno do tema “fé, razão e justiça social”, mas, pelas críticas ao Papa Francisco, nomeadamente no atinente às suas posições sobre o mercado livre, o estado social, impostos e alterações climáticas, os observadores veem aqui mais uma manifestação da onda de tentativa de torpedeamento da reforma que Francisco tem entre mãos.
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Face a todo o desenvolvimento do que ficou exposto, vêm alguns reclamar que o Código de Direito Canónico estabeleça o estatuto do Papa que renunciou, definindo os seus direitos e deveres, bem como o que pode ou não fazer. Entendem que não deve ser designado como Papa emérito, nem usar veste branca. Chegam a ponderar que não resida no Vaticano, mas em Castelgandolfo, residência de verão do Sumo Pontífice, ou noutro lugar à escolha e que seja tratado por cardeal ou, quando muito, por Bispo de Roma emérito. O pouco que o Código diz a respeito de eventual renúncia do Romano Pontífice é o que vem expresso no § 2 do cânone 332:
Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém”.
Bento XVI surpreendeu, em 11 de fevereiro de 2013, o mundo quando declarou:
Cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino. (…) Para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para  administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro (…). Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.”.
A renúncia foi, pois, consciente e livre, estribada na perda de forças e na consciência da incapacidade para o múnus e tem como principal porta de saída servir “a Santa Igreja de Deus” de todo o coração, “com uma vida consagrada à oração”. Além disso, decidiu retirar-se, a partir do dia da efetivação da renúncia (28 de fevereiro), para Castelgandolfo, regressando ao Vaticano, para viver no Mosteiro Mater Ecclesiae após o conclave.
Por vontade própria, Bento colocou-se na condição de resignatário ou emérito em relação ao múnus que deixou. Do meu ponto de vista, não faz sentido, chamar-lhe Bispo emérito de Roma em vez de Papa emérito, pois o ministério petrino e o ministério episcopal de Roma coincidem.
Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, diz que Papa emérito é designação teologicamente complexa, mas (penso) nem por isso deve ser evitada. 
Por outro lado, não se vê motivo para que não use a sotaina branca e não possa oficiar em celebrações não ostensivas, pois, não devendo usar adereços e símbolos – como o pálio, o anel do pescador, o báculo papal, a mozeta papal… – que induzam confusão com o Papa em exercício, não deve ser reduzido à condição de cardeal. Com efeito, o Papa, embora seja eleito pelo sacro colégio reunido em conclave, pode não ter sido um cardeal ou até não ter sido anteriormente um bispo (cf cân. 332 § 1), devendo, neste caso ser ordenado logo que possível.
Não vejo que possa sofrer de maior coarctação das liberdades que os bispos eméritos. Com efeito, como refere o cân. 185, “àquele que perder o ofício por limite de idade ou por renúncia aceite, pode ser-lhe conferido o título de emérito”. O cân. 402 estabelece que o bispo emérito “mantém o título de emérito da sua diocese e pode conservar nela residência, se o desejar” e que esta deve ter especial responsabilidade na sua sustentação no âmbito do que respeita à conferência episcopal, como pode participar em concílios particulares (vd cân. 443 § 2 e 3).  
Pelo que não parece justo querer arredar o renunciante, sem título, para fora da diocese de Roma. Aliás, embora alguns bispos eméritos tenham criado algumas dificuldades aos sucessores, mais por parte de alguns diocesanos, não há dúvida de que a maior parte deles tem sabido conter-se e muitos são úteis na dinamização da fé e mesmo no auxílio aos sucessores, sem os ultrapassarem ou sem se sobreporem a eles, mesmo que a tentação seja possível.
É certo que Bento XVI prometeu servir na oração, mas não é lícito silenciá-lo no quadro da liberdade de expressão em Igreja. Cabe, sim, a cada um dos colaboradores do Papa investido no ministério petrino aceitar paciente e tolerantemente o seu direito à expressão teológica e eclesial, sem a confundir com a expressão petrina. E a ninguém é lícito tomá-lo como bandeira para contestação a Francisco. E quem for amigo de Bento deve ajudá-lo à expressão contida.
2020.01.28 – Louro de Carvalho    

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