terça-feira, 30 de junho de 2015

O sentido da palavra “mártir”

Vêm as considerações seguintes a propósito de hoje, 30 de junho, ocorrer a celebração da memória litúrgica dos primeiros santos mártires da Igreja de Roma, logo a seguir à solenidade do martírio dos apóstolos Pedro e Paulo (a 29), que, por sua vez, foi precedida da memória de Santo Ireneu (a 28), bispo e mártir, discípulo de São Policarpo de Esmirna.
Com efeito, a primeira perseguição em Roma contra a Igreja, desencadeada pelo imperador Nero, após o incêndio da Cidade no ano 64, levou muitos cristãos ao martírio, ao que se sabe, com atrozes tormentos. Segundo a referência que lhe faz a edição portuguesa da Liturgia das Horas (1998), o facto é atestado por Tácito, escritor romano pagão, em Annales 15, 44, e por São Clemente, bispo de Roma, na sua Epístola aos Coríntios (cap 5-6).
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A palavra mártir não era exclusiva das religiões. No grego, disse-se μάρτυς, ρoς (masculino ou feminino) a significar “testemunha”. Também existia o vocábulo μάρτυρoς, oυ (masculino), com o mesmo significado. E a ação da testemunha dizia-se μάρτυριoν, ίoυ (neutro, a significar testemunho).
Assim, a testemunha é aquele homem ou aquela mulher que, tendo visto e ouvido (presenciado) qualquer acontecimento ou ocorrência, declara o que viu e ouviu com toda a verdade e objetividade, em juízo e fora dele – o que, muitas vezes, levava a testemunha à morte. Por vezes, o testemunho baseava-se não naquilo que foi visto, mas na convicção formada a partir do ensinamento de pessoas fidedignas. Por exemplo, Sócrates deu a vida pelas convicções que professava em torno de ideais que descobriu, acusado de corromper a juventude.
Daqui, é fácil de perceber como o martírio passou ao campo semântico da religião, significando a pessoa que se submeteu ao sofrimento que lhe foi infligido pela sua fé ou pela defesa de valores morais indeclináveis, como a fé em Deus e no seu Cristo, a fé na Ressurreição, a defesa da virgindade ou a não revelação do segredo presbiteral da confissão sacramental.
Assim, o latim, sobretudo o latim eclesiástico, estabeleceu o uso da palavra martyr, iris, com o significado de mártir ou testemunha no sentido religioso, e a palavra martyrium, ii, com os significados de martírio (sofrimento), sepultura de mártir, templo sob a invocação de um mártir.
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O Antigo Testamento já refere, por motivos religiosos, o martírio de Eleázar (cf 2Mac 8,18ss) e o dos sete irmãos macabeus por todo o cap 7 do segundo livro dos Macabeus. Por outro lado, são recorrentes a passagens em que se refere o testemunho que os profetas dão do nome de Deus como testemunhas convictas e inspiradas no oráculo do Senhor: vd, por exemplo, Jr 29,23; Mq 1,2; Ml 3,5. Porém, quem deve dar testemunho de Deus é sobretudo o Seu Povo (vd Is 43,9-10; 44,8; 55,4; Ez 20,1-31).
Jesus, a quem alguns escritores chamaram o Mártir do Gólgota, é, com o Espírito Santo, a grande testemunha do Pai (vd, por exemplo, Jo 5,31-40; 8,12-14; 13,20; 15,26; 18,37; 1Tm 6,13; 1Jo 5,6-8; Ap 1,5). E, no seguimento de Jesus, os cristãos, que são os seus discípulos, devem ser testemunhas Dele e do Pai (vd, por exemplo, Lc 24,48; At 1,8.21-22; 2,32; 10,41).
O martírio é assumido como testemunho supremo do reino de Deus– vd, per exemplo, At 7,1-45; Ap, 2,13; 6,9.
Do ponto de vista cristão, no contexto do Novo Testamento e da História da Igreja, pode-se dizer que “mártir” é aquele ou aquela que preferiu morrer a renunciar à sua fé, por defender a verdade consubstanciada na Palavra de Deus, entregando a própria vida para este fim, para que a essência da verdade seja preservada e a sua força seja assumida como salvação. Por isso, Tertuliano não teve pejo em afirmar que “o sangue dos mártires é semente de cristãos” (sanguis martyrum semen christianorum).
Na doutrina católica, chama-se “batismo de sangue” ao martírio daquele que morre pela fé antes de ter sido batizado. Assim, os Santos Inocentes, as crianças que foram mortas em Belém sob as ordens de Herodes, o Grande, embora não tenham sido batizados na água, diz-se que receberam o batismo de sangue – equivalente ao batismo sacramental – porque foram mortas no lugar de Jesus Cristo e por causa Dele. Estes são considerados os primeiros mártires do cristianismo, ainda antes da morte de Cristo na cruz. A Igreja Católica reconhece como válido o chamado batismo de sangue quando não pôde ocorrer o batismo sacramental.
Depois da morte de Cristo, o primeiro mártir foi o diácono Estêvão, sendo por isso, considerado o protomártir (leia-se o cap. 7 dos Atos dos Apóstolos). Perseguido até à morte, entregou o seu espírito ao senhor Jesus (cf At 7,59) e pediu ao Senhor que não contasse este pecado aos seus algozes (cf At 7,60).
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Fora da Palestina, os primeiros santos mártires da Igreja de Roma inauguraram uma série interminável de martírios em todos os séculos e onde o nome de Jesus direta ou indiretamente incomode os poderes políticos, económicos, financeiros e militares.
Hoje, conforme lamenta o Papa, já não se olha ao ser católico para aumentar mais do que nunca as ondas dos martírios; basta ser cristão para poder sofrer o martírio, nalguns casos, basta professar uma qualquer religião.
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Por analogia com a religião, no decorrer da História, a palavra mártir e a palavra martírio ganharam também outros sentidos, como a morte patriótica pela liberdade, a independência ou a autonomia de um povo, por um ideal social ou político ou até mesmo numa guerra, bem como o sofrimento discriminação, da sobrecarga se trabalhos, da escravidão, da fome ou das doenças incuráveis e extremamente dolorosas.

É preciso concitar esforços para que todas as formas religiosas ou laicas de martírio sejam abolidas da face da Terra.

Balanço positivo que dizem saber a pouco

Há nove anos a esta parte, Portugal promoveu o estabelecimento de parcerias entre três universidades americanas e empresas portuguesas.
O balanço que hoje se faz dessas parcerias resume-se em dois pontos: tiveram um impacto reduzido na ligação da investigação científica à economia nacional; e criaram projetos de investigação (sendo esta sua mais-valia). Sendo assim, os responsáveis pela avaliação concluem que, apesar de tudo, o balanço é “claramente positivo”.
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Efetivamente, o Público de hoje, dia 29 de junho, num pequeno trabalho de Samuel Silva, veicula as conclusões produzidas por uma investigação sobre a matéria levada a cabo pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.
Os acordos de parceria celebrados, em 2006, com o MIT (Massachuset-ts Institute of Technology), a Carnegie Mellon University e a Universidade do Texas, sob a égide do então Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, José Mariano Gago, representaram um investimento nacional de 150 milhões de euros até 2012.
Segundo as conclusões do ISCTE, as empresas tiveram um papel “utilitário” nas parcerias que foram constituídas e os cientistas recorreram sobretudo a parceiros com que já tinham relações anteriores. No ano de 2012, com as severas críticas veiculadas pela Comunicação Social – a qual, em 2006, deu ao evento um enorme relevo –, a parceria foi renovada pelo Governo, mas com uma redução de verbas.
Dado que “um dos objetivos era a criação de novas ligações entre o tecido científico português e as empresas”, procedeu-se – dizem – a uma definição restritiva dos critérios de candidatura. Assim, a constituição dos consórcios de projetos que podiam candidatar-se a financiamentos no quadro destas parcerias tinha de visar a integração de um parceiro empresarial. Obviamente que, na ótica dos investigadores responsáveis pelo balanço, esta opção iria obter resultados limitados.
De acordo com as palavras de Teresa Patrício, a coordenadora do estudo, das parcerias resultaram colaborações em “áreas científicas onde já havia colaborações anteriores e que têm uma aproximação às empresas”. Por outro lado, no relatório final, apresentado hoje no ISCTE, pode ler-se que, além de se limitar a “ativar colaborações anteriores”, foram envolvidos na iniciativa “atores isolados, sem grandes interesses em comum”.
Quanto aos parceiros empresariais, tiveram, como já se disse, um papel “utilitário”, observando os critérios da candidatura a financiamento e/ou disponibilizando recursos, “mas sem um envolvimento ativo em dinâmicas de produção de conhecimento”.
Não obstante, o relatório elenca várias consequências “muito positivas” das parcerias, designadamente: uma atratividade grande para alunos que vêm do estrangeiro, que permitiu a criação e desenvolvimento de novos projetos de investigação; um aumento da produtividade científica; o incremento da mobilidade de alunos, professores e investigadores; e o alargamento da internacionalização das universidades portuguesas para além da Europa.
Por tudo isso, Teresa Patrício conclui que “o balanço é claramente positivo”.
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Sobre este facto, convém referir, segundo o que nos foi dado ler, que aquele estabelecimento de parcerias não constituiu um enorme desperdício, como alguns afirmavam no primeiro consulado de Sócrates, de quem hoje se diz as últimas, enquanto se dizem maravilhas do seu ministro da tutela. Também não constituiu uma ação inovadora, porquanto já havia vários mecanismos de internacionalização das universidades e de mobilidade dos estudantes. No entanto, configurou outro momento de internacionalização das universidades e empresas portuguesas, com os resultados indicados, embora com as limitações que os acompanharam.
Quanto à ligação da investigação científica à economia, há que dizer que, se essa esperança foi depositada em demasia, era expectável que os resultados não seriam visíveis em tão pouco tempo. Todos sabemos que a educação e o ensino são o motor fundamental do desenvolvimento e da valorização da dignidade da pessoa humana. No entanto, também sabemos que os seus efeitos na transformação das mentalidades, na expressão de atitudes e comportamentos que significam e veiculam valores e na mudança das estruturas sociais e económicas se sentem a longo prazo. Também sabemos que muitos projetos de investigação científica só dão resultados palpáveis depois de passados muitos anos de trabalho, testagem e consolidação.
Dizem que as revoluções operam enormes transformações políticas e induzem grandes mudanças socioeconómicas. Todavia, muitos dos esquemas mentais sobrevivem no período pós-revolucionário e mesmo, passados anos, da revolução já pouco resta, porque o que vence é a acomodação.
Por fim, duvido de que seja inteiramente sensato esperar da inter-relação empresas-universidades um efeito económico relevante. Penso que esse não deve ser o objetivo dessa interação. As empresas podem servir para validar na prática alguns dos conhecimentos produzidos e manifestados nas universidades e induzir o aumento da produção de conhecimento por parte destas. Porém, esta vertente pode até acarretar custos de produção, cuja compensação as empresas poderiam e deveriam dispensar às universidades no quadro da sua dimensão cultural e social.
É certo que que a Universidade deve haurir do tecido empresarial e da malha social todo o tipo de conhecimento que estes lhe possam fornecer; também é certo que a Universidade pode e deve prestar serviços relevantes ao mundo empresarial e prestar-lhes a informação científica de que dispõe – na linha de que o saber não se esconde e na do contributo para o progresso técnico e tecnológico –, mas não deverá concorrer indevidamente com outros fornecedores de bens e outros prestadores de serviços ao mundo empresarial.
Por seu turno, as empresas devem interagir com a Universidade e apoiá-la, na observância do princípio da função social e cultural da empresa e não por mero capricho mecenatista.
À Universidade e aos outros centros de investigação cabe a procura do conhecimento, a produção do conhecimento e a ministração e a divulgação do conhecimento; e à empresa cabe maximizar e otimizar a produção e a transformação e promover a circulação de bens, de modo que o máximo de beneficiários usufrua dos bens e serviços disponíveis. Por isso, a empresa que apoia a Universidade, não deverá interferir nos mecanismos da concretização da missão da Universidade e na direção executiva desta, como não pode nem deve a Universidade passar a dirigir a empresa ou o organismo social com que interage.
E, já agora, o Governo, em vez de solicitar a prestação extremamente dispendiosa de serviços a gabinetes privados (de juristas, economistas, engenheiros, arquitetos, gestores…), deveria solicitar preferencialmente a colaboração das universidades e institutos, renunciando ao emagrecimento atroz do financiamento a estas instituições públicas.

A política é feita de opções, não?! 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Portugal e o destino da Grécia

No início da última semana, parecia que a Grécia estaria à beira de acordo com a Europa, nomeadamente com a zona Euro. Porém, esse raio de esperança foi sol de pouca dura e o fosso foi-se agravando e a Comunicação Social do fim de semana oscilou na importância noticiosa e opinativa entre a situação grega e as manchas de sangue resultantes dos atentados do EI em França, Tunísia e Koweit.
É natural que o Governo do Syriza tenha interpretado o sentimento nacional de esgotamento relativamente a um programa de ajustamento que não resultou e só degradou a situação geral do país. Sendo assim, não teria outra forma de agir a não ser tentar a negociação com os ditos credores sem perder a face e sem deixar de perseguir a eficácia negocial.
Dizem alguns que os gregos não fizeram o trabalho de casa, o que parece não corresponder à realidade, dado que ninguém desmentiu o teor do alegado relato ipsis verbis das comunicações do Ministro das Finanças grego ao Eurogrupo. E todos fomos conhecendo as diversas declarações públicas de responsáveis políticos pela coisa comum europeia.
Neste ponto, não sei mesmo se as autoridades helénicas não tiveram alguma razão ao lamentarem algumas afirmações dos governantes espanhóis e portugueses quando se opuseram frente a frente gregos e europeus. Não esqueço a postura pública da Ministra das Finanças de Portugal a servir de mascote do seu homólogo alemão na sua representação do país que fez de bom aluno da União Europeia extremamente bem comportado, disfarçando o caso dos sacrifícios a que os portugueses foram obrigados ao longo dos quatro anos do programa do eufemístico ajustamento. Não foi mais que um ajustamento assente no depauperamento geral de que foram escapando apenas alguns mais sortudos e que levou ao aumento brutal do desemprego e da precariedade, da enorme baixa salarial, do aumento colossal dos impostos, contribuições e taxas, do rombo emigratório, da tísica na função pública, da proletarização dos pensionistas, da degradação dos serviços públicos, do engrossamento do volume de pobres, da perda da confiança, do conflito intergeracional e da venda ao desbarato de empresas em que o Estado detinha a totalidade ou a maioria do capital ou posição dominante.
Ora, tanto quanto se sabe, na Grécia terá acontecido tudo isto e muito mais. Porém, as avaliações da troika sempre foram desfavoráveis aos gregos: não fizeram as reformas; continuavam a viver à tripa forra; aldrabavam as contas; e não abandonavam as destruidoras manifestações de rua. Esquecia-se a troika de que muito do endividamento grego se deveu ao incentivo dos ora credores de mão férrea a adquirirem equipamentos ao estrangeiro até saturar. Mais esqueceram-se os países europeus do seu passado histórico em que a dívida aumentou e a compreensão solidária dos outros não se abateu sobre eles como qual inexorável espada de Dâmocles.
Ademais, parece que o projeto europeu dos países e dos cidadãos formado na solidariedade e na subsidiaridade está a capitular por via da vitória do egoísmo, do nacionalismo, do espírito punidor da parte de alguns. Acreditam mais na folha excel que na democracia e no projeto. Não se importam com o efeito devastador do contágio político sistémico que faça ruir o baralho de cartas da União Europeia se um dos países se sentir empurrado para fora do Euro ou da União. As lideranças europeias, que de liderança apenas têm o rótulo, não compreenderam o beliscão geoestratégico que se autoinfligem ao deixar entregue à sua sorte a Grécia ou qualquer outro país do sul, mercê do fenómeno de fronteira e vulnerabilidade que pode aguçar a cobiça alheia.
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Azeredo Lopes, em recente artigo de opinião no JN, denuncia o exato objetivo da Europa em relação à Grécia, “mostrar ao Governo grego quem manda”. Classifica mesmo de “lamentáveis, pessoais, quase indecorosas” as observações de políticos (ir)responsáveis europeus. Mais refere:
 “O ministro das Finanças alemão tem dado o mote, com declarações abrutalhadas mais ou menos três vezes ao dia, salivando perante a hipótese de conseguir uma de duas coisas: esmagar Tsipras e Varoufakis ou, ainda melhor, fazer desandar a Grécia. Merkel, é espantoso, tem sido a moderada nisto tudo”.

Ora, mal os gregos cedem aqui, vêm os credores a exigir mais cedências ali. Parece a negociação constituir um verdadeiro jogo de crianças, por mais que Passos Coelho diga que não, que isto não é um jogo de crianças. E, quando Christine Lagarde exige as negociações com adultos na sala, ela efetivamente referia-se aos representantes helénicos, mas, pelos vistos, havia lá dentro quem não se comportasse com adultez e a líder do FMI deveria sabê-lo e denunciá-lo.
Para alguns, o Governo de Portugal, mirando a experiência por que passou o PASOK, deveria exultar se os gregos perdessem a tramontana da Europa e do seu destino como Estado, pois, lograria também a acelerada eliminação do PS. Sabe-se lá se não será essa, ou outra similar, a intenção da Europa, induzir a saída da Grécia do Euro (sem arcar com o ónus de a expulsar) ou provocar a queda do governo nacional. É que eles têm o direito de escolher quem quiserem para os governar, mas a Europa detém a faca e o queijo na mão para dizer se aceita ou não a democracia grega!
Ora, aqui se distinguem os governos da Grécia e de Portugal: enquanto o primeiro recalcitra, porque não quer ser o bom aluno, Portugal, desde os tempos de Cavaco Silva, se orgulha de ser o bom aluno, não no sentido de estudar dossiês, mas papagueando tudo o que as autoridades europeias dizem e exigem: se mandam cortar na agricultura, nas pescas e na indústria, corta-se; se mandam fazer as contas de determinado modo, fazem-se; se mandam apostar no investimento público, apostam; se mandam cortar no investimento público, cortam. Na linha de que, “se soubesses o que custa mandar, preferirias obedecer”, obedece-se. Dizem-nos que vivêramos acima das nossas possibilidades, pelo que a austeridade é inevitável; e essa inevitabilidade é assumida pelo Governo e ela é ensinada na escola e na universidade e propalada pela Comunicação Social afeta ao sistema de interesses.
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Estavam as negociações no fio da navalha e o Presidente da República, em uníssono com o Primeiro-Ministro, declarava que a Europa não podia abrir exceções (Mas sabemos que os países poderosos se constituem facilmente em exceção!), não podia aceitar chantagens externas nem internas (Mas a Europa e o FMI podem fazê-las!). A ministra das Finanças garantia que “temos os cofres cheios” e Cavaco assegurava que o país estava preparado para resistir ao Grexit, porque temos uma reserva que dá para vários, vários meses (parece que até ao fim do ano…).
Todavia, Cavaco e Maria Luís esqueceram-se de dizer que os cofres estão cheios de dinheiro proveniente da ida aos mercados, dinheiro emprestado, ou seja, temos os cofres cheios de dinheiro dos outros. A nossa dívida ainda não saiu do nível de lixo das agências de rating. Os vários meses, em caso de rutura da Europa, significam muito pouco tempo. Ademais, a questão não é fundamentalmente financeira, mas política sistémica e geopolítica.
O presidente dos Estados Unidos percebeu-o e interveio junto da chanceler Merkel. Será que o Governo e o Primeiro-Ministro, bem como o experiente Chefe do Estado, ainda não perceberam que o destino da Grécia arrasta a prazo o destino de Portugal? Não saberão que muito em breve vamos saber se é liquidada a Grécia e que, se o for, sê-lo-á por razões ideológicas?
E, como muito bem explicita Azeredo Lopes, “conviria que Passos Coelho tivesse cuidado”, pois, “quando diz que os credores até foram mais flexíveis com a Grécia”, arrisca-se a que lhe perguntem se o Governo grego tinha negociado melhor que o Governo de Portugal.
Por mim, pergunto porque é que até à intervenção do BCE, Portugal não atingiu nenhum dos objetivos que se propôs com o PAF (Plano de Assistência Financeira), mas as avaliações da troika foram todas positivas (houve uma que demorou mais tempo a atingir a positiva) e a troika teve necessidade de dispensar algumas verbas de integrarem as contas? Ou será que, tal como os republicanos da I República, por terem participado na guerra, esperavam partilhar dos seus despojos, também Passos espera que lhe seja atribuída parte dos despojos desta guerra económica? E que despojos, se se trata apenas de dinheiro que desaparece?
Lá diz o povo na sua sabedoria milenar que “presunção e água benta, cada um toma a que quer”.

Por isso, coloque-se o homem e o povo acima de tudo. Faça-se política e não jogos de interesses!

domingo, 28 de junho de 2015

Perversão nos períodos eleitorais

É suposto o Estado e os seus serviços comportarem-se sempre como Estado. Porém, o que se tem passado no corrente ano levanta algumas dúvidas sobre a sanidade de algumas das instituições públicas e respetivos serviços.
Atendo-nos a alguns factos, meramente a título de exemplo, recordem-se os seguintes casos: de algumas nomeações para cargos dirigentes na administração pública ultrapassando a CRESAP sem explicação convincente; do que se passou na administração da justiça a propósito do programa CITIUS; da constituição de vários arguidos a propósito de irregularidades nos vistos Gold; do braço de ferro das associações da PSP e GNR com a Ministra da Administração Interna; da rutura entre o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) e Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) e a Ministra da Justiça; da contestação das associações de militares (AP; ANS; e AOFA) ao Ministro da Defesa Nacional (MDN) e ao Presidente da Republica (PR); e agora a da tentativa de escrutínio institucional do programa eleitoral do PS.
Queiramos ou não e por mais naturais que os primeiros seis dos diferendos enunciados sejam, eles avolumaram-se sob o espectro do ano eleitoral e suas complicações – isto sem deixarmos de sublinhar a dificuldade da gestão dos dossiês, seja no tocante ao poder judiciário seja no atinente ao poder executivo enquanto superintendente da administração pública.
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Porém, a tentativa reiterada de escrutínio dos instrumentos programáticos do PS constitui um forte beliscão na sanidade do dinamismo eleitoral. Sempre houve atropelos e comportamentos erráticos em relação a esta matéria, mas usualmente resolvidos a tempo, ao abrigo das leis e, sobretudo, não eram atribuíveis às instituições, mas a indivíduos considerados isoladamente.
É suposto manterem-se, criarem-se ou refazerem-se formações partidárias e/ou coligações. Por outro lado, apresentam-se linhas programáticas, programas eleitorais, fazem-se declarações públicas, apresentam-se as candidaturas publicamente e organiza-se o processo da sua formal apresentação no Tribunal Constitucional (ou nos tribunais comarcãos no caso das eleições autárquicas) e aguarda-se o veredicto judicial da regularidade das candidaturas, procedendo à colmatação de eventuais irregularidades. Entretanto, organizam-se os mais diversos meios de publicidade (materiais promocionais diversos, sessões de esclarecimento, deslocações, cortejos, caravanas, comícios, tempos de antena, etc.) e propaganda e mesmo combate político a ponto de cada formação expor vigorosamente as suas propostas e contradizer veementemente as de outrem.
Ao Estado, seus órgãos, instituições e serviços exige-se uma vigilância de neutralidade que se consubstancia basicamente na garantia da liberdade de expressão e movimentação das diversas candidaturas e seus potenciais aderentes; e no postulado de tratamento equitativo das diversas candidaturas. Tal postura é exigível também aos diversos órgãos de comunicação social enquanto prestadores de um serviço público essencial consubstanciado, no caso, no tratamento noticioso, na oportunidade de comentário, na organização/aceitação de debates e na cobertura de eventos. Todavia, a nenhum órgão do Estado, suas instituições e serviços é lícito intervir a nível de conteúdos, mas unicamente intervir para repor eventuais irregularidades e estabelecer a calendarização das operações eleitorais, a que todos se submetem.
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Entretanto, considerando obsoleta a lei da cobertura do período eleitoral, os partidos da maioria, até há pouco acompanhados pelo PS, fizeram aprovar uma nova lei que, de certo modo, prejudica o tratamento equitativo das diversas candidaturas, ao privilegiar a liberdade editorial de cada órgão de comunicação social, obviamente movida pela venda de papel ou pela guerra de audiências e escapando à obrigatoriedade de tratamento equitativo ao poderem promover debates com os candidatos que entenderem ou com aqueles que representam partidos que tenham, de momento, assento no órgão colegial que é objeto da eleição.
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Por outro lado, na sua fúria inquisitória, o PSD pretendeu (depois desistiu da ideia) que a UTAO e o CFP analisassem a veridicidade do estudo macroeconómico do PS para a próxima década. Agora, surgiram, da parte de gabinetes ministeriais, o pedido a algumas das suas direções-gerais para estudarem a viabilidade técnica das diversas opções do programa eleitoral do PS e a tentar ver se elas estão integradas, ou o podem ser, nas linhas da atual ação governativa. Estão, neste caso, pelo menos, o Ministério da Justiça e o da Economia.
Com efeito, os diretores-gerais e equivalentes, na Justiça, receberam um e-mail do gabinete da Ministra da Justiça a pedir, com “urgência”, que identificassem as medidas do programa eleitoral do PS já realizadas por este Governo ou que estão em vias de o ser. Elencando uma lista de ações nas respetivas áreas, o gabinete solicitava a sua colaboração na “identificação das eventuais medidas que já tenham sido concretizadas por este governo (iniciativa do MJ) ou que estão em vias de o ser”. Mas o gabinete ocultou que o conjunto de ideias tinha sido retirado do programa eleitoral do PS, disponível no site oficial do partido. E a Ministra declarou:
“É feita, como é natural, uma monitorização constante das medidas parlamentares e das políticas propostas, para efeitos de aperfeiçoamento do nosso trabalho ou eventual crítica. Este gabinete tem de estar habilitado a concordar com ou a discordar de medidas que na sua área sejam propostas e com as quais possa o gabinete ser confrontado a todo o tempo”.

A Ministra da Justiça acabou por admitir, no Parlamento, que foi “pouco avisado” pedir aos serviços que analisassem o programa eleitoral do Partido Socialista (desta vez pediu desculpa).

Por seu turno, o Ministério da Economia também revelou que houve um pedido “indevido” de informações sobre o programa eleitoral do PS por parte de um serviço daquele ministério, situação que lamenta, mas que não deverá voltar a acontecer. Segundo fonte oficial, o gabinete do Ministro comunicou não ter dado indicação para que fosse solicitada aos organismos sob sua tutela qualquer monitorização de medidas propostas pelo Partido Socialista. Contudo, a mesma fonte revela que, “após averiguação”, se apurou que, por iniciativa indevida de alguém, “seguiu um e-mail para três organismos com pedido de informações por parte de um serviço de um gabinete do ministério” – informação e posição que o Ministro confirmou.
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A situação criou incómodo no PS e nalguns serviços tutelados pelo Ministério da Justiça. Jorge Lacão, coordenador do PS para a área da Justiça e responsável por estas propostas no programa eleitoral socialista, declarou, a este respeito, que a Ministra está a utilizar dirigentes da administração pública para analisar o programa eleitoral socialista e identificar as medidas que já foram ou vão ser tomadas pelo seu governo e que o PS, perplexo como está, exigiu e exige explicações para esta inédita iniciativa, que pretenderá esvaziar as ideias do maior partido da oposição em ano de eleições legislativas:
“Estou perplexo com esta situação. É abusiva e escandalosa. A ser assim, é a prova irrefutável da instrumentalização da administração pública para fins eleitorais. Facto que não pode deixar de merecer uma avaliação de responsabilidade política, pela qual a ministra da Justiça deve responder diretamente”.

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O líder parlamentar do PS considerou “extremamente grave” a utilização de dirigentes públicos para analisarem o programa do PS. Efetivamente, Ferro Rodrigues denunciou a chegada ao conhecimento do PS que a situação – da utilização de dirigentes públicos a analisarem medidas eleitorais socialistas – seria mais abrangente. Classificou-a como facto “sem precedentes na história da democracia”, que não se limita ao Ministério da Justiça.
O ex-secretário geral socialista infere que se trata de “uma responsabilidade política ao mais alto nível”, desafiando o primeiro-ministro a dar “explicações sobre se deu esta orientação política”, que representa “o grau zero da democracia portuguesa” a instrumentalização de altos quadros da administração pública para a luta política, através de ordens superiores para analisarem o programa eleitoral do PS.
Por sua vez, Augusto Santos Silva, antigo ministro socialista da educação, da cultura e da defesa nacional, exige a demissão de ministra da Justiça, declarando, depois de ler a manchete do DN, de 26 de junho, sobre o pedido de Paula Teixeira da Cruz para monitorizar medidas eleitorais do PS, que “Ela deve ser imediatamente demitida”. E deixou duas questões dirigidas a Passos Coelho e a Cavaco Silva:
“Quantas horas mais vai demorar o primeiro-ministro a propor ao Presidente da República a sua demissão? Quantas horas mais vai demorar o Presidente da República a exigir ao primeiro-ministro a sua demissão?”.

Sem uma resposta de Passos e de Cavaco, os socialistas só podem extrair uma conclusão: “Quantas mais horas demorarem, mais cúmplices se tornarão de um ato indigno?”.
Como é natural, dado o caráter inusitado da situação, também o secretário-geral do PS se pôs em bicos de pés para verberar a atitude dos departamentos governamentais implicados e a exigir a conveniente explicação da parte do Primeiro-Ministro, o responsável máximo, em nome do Governo, pela coordenação da definição da política do país.
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Sem nos revermos na verborreia partidária, devemos, no entanto, deixar claro que é lícito aos partidos monitorizar, criticar, escalpelizar, contraditar com toda a força, técnica e rigor as propostas eleitorais dos adversários, podendo confiar também esta pertinente tarefa a seus gabinetes de estudos e a outros colaboradores. Porém, nunca será legítimo que ministros, secretários de Estado ou quaisquer outros membros do Governo – por si ou através de elementos dos seus gabinetes (que são de sua confiança pessoal e/ou política) – mobilizem quaisquer serviços do Estado para escrutinarem programas eleitorais partidários, porque os serviços públicos são chamados a zelar pelo interesse público como ele é entendido pelo poder vigente (embora com larga margem de autonomia) e não a servir de inquisidores em relação aos pretendentes ao poder.
Se efetivamente aconteceu o recentemente trazido a público, nomeadamente a inquisição sobre as opções partidárias de outrem ou a sua apropriação para aferir da sua integração atual ou futura nas linhas de ação governativa, para mais sem revelar as fontes, temos que deixar clara a nossa viva repulsa por se tratar de desrespeito pela dinâmica eleitoral, pelo mérito autoral e por minar a sanidade legal e ética da democracia representativa.

Finalmente, há que perguntar se o PS tem mesmo as mãos totalmente limpas em matéria democrática, sobretudo no uso eleitoralista dos meios do Estado quando é poder.

sábado, 27 de junho de 2015

Insensato chamar pessimista e injusto a este Papa

Miguel Angel Belloso não desiste de vociferar recorrentemente a sua bílis hipercapitalista contra o Papa Francisco nas páginas do DN, que, no quadro da liberdade de expressão (não sei se a reconhecerá a todos) dá guarida ao ilustre diretor da revista espanhola Actividad Economica. E, no número de hoje, 26 de junho, não se inibe de o apelidar de Papa pessimista e injusto.
No entanto, para chegar àquela adjetivação insensata e insultuosa, parte de afirmações perfeitamente aceitáveis, como: sempre ter considerado “a fé como um motor de esperança e de alegria”; ter professado “uma grande admiração pelos papas João Paulo II e Bento XVI”; e que nenhum dos dois “deixou de assinalar os grandes desafios que a humanidade enfrenta”, mas que “ambos mostraram uma grande confiança no indivíduo e contemplavam o mundo com o otimismo próprio do crente”.
Talvez fosse mais avisado o colunista ter afirmado que os dois Pontífices mostraram uma grande confiança na pessoa humana e enalteceram a sua dignidade. É que eles não reduziam a pessoa à mera expressão individual, mas olhavam-na na vertente relacional aberta à comunidade (eu-nós), como condição sine qua non da sua realização ante Deus e os homens. E o colunista, se tivesse dedicado mais atenção ao magistério da Igreja, sobretudo a partir de João XXIII, passando por Paulo VI (que, nalguns momentos, indiciou um certo realismo amargo), João Paulo I e os dois que Belloso diz admirar, talvez sem os conhecer bem, e sobretudo os documentos do Concílio Vaticano II.
Não pode o colunista do país vizinho bradar ao vento que Francisco vem fazer uma revolução na Igreja como se acabasse por a deixar em pantanas, como não é legítimo clamar que o Papa argentino a veio encontrar totalmente destroçada, como já ouvi dizer.
Não há dúvida de que a doutrina da Igreja tem acompanhado as transformações – rápidas, profundas, contínuas e universais – por que tem passado o mundo, espelhando quer os sinais de Deus quer os sinais do espírito do mal – trigo e joio, progresso e desumanização. E é com este mundo, em que o Reino de Deus há de ganhar preponderância e levar à vitória total do bem objetivo que a Igreja quer dialogar. Recordem-se, a este nível: as encíclicas Mater et Magistra (sobre a recente evolução da questão social à luz da doutrina cristã) e Pacem in Terris (sobre a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade), de João XXIII; as encíclicas Ecclesiam Suam (sobre os caminhos da Igreja) e Populorum Progressio (sobre o desenvolvimento dos povos), a carta apostólica Octagesima Adveniens (em resposta às necessidades novas de um mundo em transformação) e a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (sobre a evangelização no mundo contemporâneo), de Paulo VI, bem como os documentos conciliares Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo atual) e Apostolicam Actuositatem (sobre o apostolado dos leigos).
João Paulo I, o Papa do sorriso em 30 dias, não teve tempo para escrever: conhecemo-lo pelos discursos, duas homilias, alocuções ao Angelus, uma radiomensagem e catequeses à quarta-feira, tendo dado para perceber um pouco seu perfil.
Em termos da doutrina social, João Paulo II escreveu encíclicas notáveis, como: a Laborem Exercens (sobre o trabalho humano), a Sollicitudo Rei Socialis (sobre o desenvolvimento autêntico do homem e da sociedade) e Centesimus Annus (sobre a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII e alguns acontecimentos da história mais recente); e Bento XVI escreveu a encíclica Caritas in Veritate (sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade). Porém, a posição doutrinal destes dois Pontífices espelha-se ainda mais nas intervenções que fizeram no âmbito das suas viagens apostólicas pelo mundo.
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Dizer pura e simplesmente que João Paulo II combateu o comunismo pela destruição e morte que este tinha provocado onde foi adotado como modelo político sabe a pouco, pois, embora seja verdade, não podemos esquecer que também avisou que “existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã” (Ato de Confiança, Fátima: maio de 1991). E rezou a Maria, em Fátima:
Mostrai que sois Mãe dos pobres, de quem morre de fome e sem assistência na doença, de quem sofre injustiças e afrontas, de quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de quem é oprimido e explorado, de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus. (…) Cessem por todo o lado a violência e a injustiça, cresçam nas famílias a concórdia e a unidade, e entre os povos o respeito e o diálogo; reine sobre a terra a paz, a paz verdadeira! (id et ib).

Também sabemos que Bento XVI partilhava o ideário do seu predecessor e terá até colaborado com ele na formulação da doutrina. No entanto, há que desafiar Belloso a demonstrar documentalmente a afirmação de que Bento XVI, ou qualquer outro Papa, tenha declarado “o capitalismo como o sistema mais capaz de produzir o bem-estar geral apesar das suas imperfeições”. É claro que não subestimam o capital enquanto “trabalho acumulado”, mas acima do capital e do trabalho está a pessoa humana.
É ponto assente que os Sumos Pontífices rejeitaram o marxismo (vd encíclica Divini Redemptoris, de Pio XI – 19 de março de 1937) por duas razões: a perfilhação do materialismo histórico, de feição antiteísta (e não simplesmente ateia); e a experiência histórica que redundou numa forma gritante de totalitarismo, parecida com a do totalitarismo nacionalsocialista (nazi) e do fascismo – que Pio XI condenou pela encíclica Mit Brennender Sorge, de 14 de março de 1937. Todavia, acreditar que os Papas, mesmo Bento XVI ou João Paulo II, tenham renunciado à asserção clara do destino universal dos bens, da primazia do bem comum sobre o interesse individual ou à condenação do lucro desenfreado, espezinhando os demais, ou da petição para que haja pobres para nós podermos exercer a caridade – é má fé ou distração em relação à leitura que se devia fazer da documentação evangélica e eclesial. Nem a licitude da propriedade privada, afirmada como instrumento de realização pessoal e de eficácia produtiva, ou o atentado injustificado contra ela justificam a instauração dum regime político, económico e social, que, à luz de uma liberdade mal entendida, leve à perceção do lucro como objetivo exclusivo ou supremo, à anulação da função social da propriedade (função que muitas empresa têm em conta, até pela criação de fundações ou departamentos de incidência social) ou à desvirtuação do salário justo em compensação do trabalho prestado, em apoio à família e à prevenção (na doença, na incapacidade, na velhice e na falta de emprego). E estas são dimensões sociais claramente preconizadas pelo menos desde Leão XIII. Aliás, o magistério eclesiástico foi bem cáustico na censura ao liberalismo pelos perigos que a liberdade individualista mal entendida por muitos, com total desresponsabilização do Estado (que fazia de mero árbitro) em relação às suas funções nucleares. É óbvio que os primeiros passos da revolução francesa – com o lema da fraternidade, igualdade e liberdade, inteiramente cristão – foram saudados pelo clero, que cedo se desiludiu e foi proscrito, a menos que aderisse à constituição civil do clero.
Ademais, nunca a doutrina da Igreja deixou de, na esteira neotestamentária (vd, por exemplo, Lc 6,24-26 e Tg 5,4) e apontar como pecado que brada ao céu o não pagar o salário (antigamente, dizia-se “jornal”) a quem trabalha.
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Assim, clamar que a nova encíclica, Laudato si’, de Francisco, a sua exortação apostólica (e não carta pastoral – o crítico deve identificar melhor a documentação que põe em causa) Evangelii gaudium, “assim como as suas frequentes intervenções nos foros públicos refletem um pessimismo ontológico perturbador” constituem afirmações insensatas, injustas e iníquas, ao serviço de um comodismo ideológico e do afã insaciável da restauração do status quo, com que se tenta branquear o poderio financeiro sobre o poder político e o escaqueiramento das organizações económicas.
De facto, o Papa não pode ignorar que “o mundo está a desmoronar-se à nossa volta sem que façamos qualquer coisa para o evitar” ou que “os pobres são cada vez mais pobres”, que “as desigualdades são maiores do que nunca e os bens necessários para sustentar a vida humana são cada vez mais inacessíveis” a um número cada vez maior de pessoas, que bradam sem vez e voz por justiça.
Há que desmentir o insigne colunista: estas ideias não são formuladas por capricho de Francisco; são baseadas em dados objetivos. E não é preciso invocar o dogma da fé (que apela ao crer sem ter visto) para esta verificação. Depois, nunca o Papa afirmou que as mudanças climáticas ou as grandes catástrofes naturais são fruto exclusivo da ação do homem, mas, sim, que muitas se devem à negligência do homem e aos seus múltiplos atentados contra a natureza, a qual não costuma perdoar (Deus perdoa sempre, o homem às vezes, a natureza nunca – é o adágio). O homem tem falhado na sua missão de guarda da criação e do seu semelhante. Deixa-se levar para a guerra vencido pelo egoísmo, pelo ódio e pela falta de diálogo. E com a guerra gera a fome, a destruição, a onda de refugiados e o espectro da desertificação, a escravização, o mercantilismo dos valores, o comércio dos corpos, as pestes, a morte, o desequilíbrio da natureza com o esgotamento dos seus recursos. Depois, contra o que escreve Belloso, o crescimento económico, embora em si mesmo não gere ou aumente a degradação ambiental, será a sua causa se configurar um crescimento não disciplinado e incontido, ou seja, não sustentável, não ao serviço do homem, mas de interesses vis.
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Verificar tais dados somente seria pessimismo se não fosse acompanhado da crença de que o homem pode mudar de paradigma, de atitudes, de perspetiva educacional e de comportamentos ou se não se reconhecessem os esforços feitos e a fazer na melhoria das coisas. Mas o Papa tanto acredita, que insta à capacidade e bondade do homem. E, por outro lado, fala abundantemente da bondade e misericórdia de Deus, de que não se pode ter medo e que tem de se testemunhar e anunciar.
Ademais, o Papa não deixa de sublinhar que o cenário do mundo apresenta, por outra via “um incremento colossal da esperança de vida e da saúde como consequência do desenvolvimento económico”, social e humano e que, “em muitas zonas do mundo, o ambiente está a melhorar”. Porém, é falso que isso se deva ao funcionamento da economia de mercado, como quer Belloso, que fala demasiado em liberdade e democracia. Mas que liberdade e que democracia? As de todos e de cada um ou as de alguns apenas? 
É verdade que João Paulo II “sempre abordou os problemas globais com foco e linguagem religiosos” e “pensava que a solução para os males do mundo estava em cultivar as virtudes pessoais e em voltar o olhar para Deus”. Francisco também assim pensa, mas entende que é preciso mais alguma coisa: a política, em que não se deixe à inércia dos mercados ou à soberba da ganância de alguns a condução dos destinos da humanidade e de cada comunidade. É evidentemente necessário que os dirigentes assumam o seu papel executivo (e não apenas cuidem da boa estruturação das leis), que, pautado pelo bem do homem e pelo bem comum, dê lugar a um mundo melhor, mais justo, mais equitativo e mais fraterno. É o homem que deve assumir o governo e não o mercado ou o sistema a governar o homem. Será isto socialismo, marxismo ou outra qualquer coisa “má”?

A religião com que a Igreja deve envolver a sua postura perante o homem e o mundo não pode enclausurar-se nos templos ou nas casas particulares, mas tem de produzir consequências na vida das pessoas e da sociedade ao nível pessoal, profissional, social, económico e político. Qual destas palavras é que Belloso não entenderá?

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Contracrítica à encíclica Laudato Si’

À pergunta d’ O Diabo, de 23 de junho, “Como comenta a encíclica papal sobre o Ambiente?”, João Tito de Morais, professor de Direito na Universidade Lusófona, responde, entre outras, com palavras como as seguintes: “… é com enorme desconforto que afirmo que este [o Papa Francisco] comete mais um trágico erro político e comunicacional”. E aduz três argumentos que parecem sensatos: não é para tratar destes assuntos que existe a Igreja (e muito menos o Papa); além de não ter autoridade em matéria científica e política, “não possui competência para se pronunciar sobre o assunto”; ainda que a tivesse, “este não é um tema que nós, católicos, sentimos urgência em ouvi-lo pronunciar”; e “porque acaba por comprometer política e mediaticamente a Igreja numa posição para a qual não há nenhuma evidência científica que a suporte”.
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Ora, apesar da aparente sensatez, a posição deste homem que ensina Direito e presumivelmente católico (nós, católicos) revela distração em relação ao ser, missão e história da Igreja.
Primeiro, a Igreja é sinal e fator da comunhão dos homens entre si, com Deus e com o mundo; testemunha da comunhão misteriosa entre Pai, Filho e Espírito Santo; instrumento da salvação oferecida a todos e a cada um; corpo de Cristo e povo de Deus. Por isso, marcada pela unidade na diversidade. Ora, se quer ser portadora de uma mensagem espiritual para os homens – e esta constitui a sua missão fundamental – tem de os conhecer e a acompanhar nos seus dramas e sofrimentos, anseios e preocupações, tal como nas alegrias e satisfações, progresso e bem-estar. Sendo assim, permito-me perguntar que temas e assuntos possam ficar fora do tratamento discursivo da Igreja e do Papa. A atitude e o discurso humanista de Terêncio “homo sum ac nil humani alienum a me puto” (sou homem: e nada do que é humano julgo estranho a mim) assumidos pela Igreja fazem-lhe dizer:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história. (GS,1).

Por outro lado, a gestão dos recursos da Terra, a condução política dos povos, a práxis económica e social, os fenómenos bélicos, as atitudes e comportamentos das pessoas, a não observância do preceito fundamental do destino universal dos bens, a gestão da propriedade (negligente ou avara, egoísta e despida da sua função social) e o ataque indiscriminado e injustificado à sua privacidade – tudo isto levanta problemas éticos e atropelos tanto ao código sinaítico como ao código das bem-aventuranças. Sendo assim, embora a Igreja não tenha um projeto próprio de governo, de organização social, de sistema económico ou não seja uma academia nem mesmo uma ONG, não pode deixar de intervir e pronunciar-se sobre as diversas matérias que preocupam e afligem os homens ou em que eles se põem a morderem-se e a matarem-se uns aos outros (cf Gl 5,15) – tenha ou não a sua intervenção ou pronunciamento conotação política, social ou económica, científica ou ética.
Se efetivamente a Igreja, através dos seus servidores, se coloca a pregar o Evangelho junto de populações que não dispõem de condições de vida condigna, ela não pode deixar de socorrer os doentes, de dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, de vestir os nus, de dar pousada aos peregrinos, de assistir aos enfermos e presos (vd Mt 25,34-36.37-40.42-45). Se não há água potável, deve promover a abertura de poços; se não há estruturas de saúde e de educação, deve erigir hospitais e postos sanitários e fundar escolas; e analogamente rasgar caminhos, construir pontes, construir habitações, etc. Isto, porque não se prega a estômagos vazios, não se evangeliza sem zelar pela promoção humana e social. Ademais, não basta prestar assistência pontual na falta de recursos ou em situação de catástrofe natural ou provocada pelas mãos do homem (terramoto, tufão, guerra, má experiência técnica e/ou científica, peste, epidemia, incêndio, etc.), mas, na lógica de que mais vale ensinar a pescar que dar o peixe, deve ajudar a criar estruturas e acompanhar a sua organização e seu funcionamento enquanto necessário. Tudo isto implica a mobilização de conhecimentos científicos e tecnológicos, recursos económicos e sociais, meios artesanais e técnicos, atitudes amadoras e profissionais. E, se os meios e recursos não existem ou não existem em suficiência, cabe à Igreja ajudar a inventá-los e a disponibilizá-los. Faça-se a modos de parêntesis a clarificação de que a Igreja não são exclusivamente os padres, bispos e o Papa (estes são-no em menor número); o grande número dos membros da Igreja são os leigos, os religiosos e religiosas (estes só por serem religiosos não são clérigos). Ora, admitindo que só os leigos se empenhariam nas atividades de promoção humana e social, económica e científica, cultural e artística, antropológica e política, não seria decente que o seu bispo e o seu Papa se revelassem indiferentes à sua ação e não fizessem o discurso de animação e até de orientação. Depois, política não pode confundir-se restritivamente com a política partidária enquanto projeto de conquista e manutenção do poder ou oposição sistemática a ele.
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Seria lamentável que os católicos não sentissem necessário, conveniente ou oportuno que o Papa ou os bispos falassem de temas atinentes à falta de ética da parte daqueles poucos que, mercê da ambição desmedida, se apoderam avara e hedonisticamente dos recursos da Terra, espezinhando, escravizando e explorando a seu bel-prazer os pobres, as mulheres, as crianças (a economia que mata), fazem do jogo financeiro imoral e destruidor o eixo em torno do qual gravita o poder político e o poder económico. Não creio que a maior parte dos católicos se sinta não incomodada com as situações que o Papa denuncia com clareza e firmeza. E aqui, entra o problema da ecologia, integrado no sistema da ecoeconomia. É preciso que os homens não perturbem desnecessariamente o equilíbrio dos elementos existentes na Terra, seja a nível do ar, da terra e do mar, seja a nível da água, do fogo e dos resíduos, seja ao nível das energias fósseis, das florestas, dos prados e das reservas naturais, dos minérios, rochas, espécies vegetais e animais, distribuição da população. Não digam que a dizimação de populações, as ondas de refugiados, a exploração de migrantes, as guerras, os atentados às condições climatéricas não merecem uma palavra nítida, firme e solidária da autoridade da Igreja. Ora, tal palavra só fica robustecida se vier fundada na ciência disponível.
Também é preciso anotar que a ciência não contém a explicação de tudo; precisamos de outros modos de conhecimento, designadamente a filosofia e a teologia. Também a ciência no estado atual não está chegada a soluções científicas últimas e definitivas, mas é temerário não reconhecer os esforços científicos e tecnológicos e não utilizar a ciência disponível e os recursos técnicos e tecnológicos disponibilizados ao serviço do homem e da comunidade.
Também a comunicação tem de ter em linha de conta a dimensão tipicamente humana e, nesse sentido, sem cair em automatismos e servidões psicológicas e socais, colocar ao seu serviço todos os instrumentos e meios que a inteligência humana colocou ao dispor do homem e da sociedade. Neste sentido, a Igreja e os Pontífices não deixaram nem deixam os créditos comunicacionais por mãos alheias. E o estilo do Papa Francisco tem-se revelado peculiar, quer nos momentos mais formais quer nas realizações mais coloquiais. Pena é que, por vezes, alguns dos ouvintes se fixem apalermadamente em pormenores de que possam não gostar. Mas a preocupação do Pontífice tem sido a profundidade, a clareza, a eficácia. E estas, por vezes, requerem a solenidade; outras vezes, postulam a informalidade.
Não podemos outrossim esquecer que o Papa, enquanto Chefe de Estado, tem ele, com seus serviços (e a bem da Humanidade), responsabilidades protocolares e diplomáticas (e porque não políticas?) junto dos outros Estados.
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Quanto à encíclica Laudato Si’, diga-se que o Papa parte da atitude franciscana de contemplação da Natureza enquanto criatura de Deus e espelho da glória e ternura do Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor e induz a postura de comunhão fraterna com a Natureza. Mergulha na missão que o Criador confiou ao homem de dominar sobre a terra, ar e mar, com as suas pedras, plantas e animais (e não sobre o outro homem), não como dono, mas como administrador e guarda. E esta missão de guarda estende-se à guarda sadia e solidária do irmão (cf Gn 1,28-29; 4,9-10).
E a encíclica trata expressamente da ecologia, mas na sua perspetiva totalizante, integral e integradora. Tem em conta as diversas reflexões teológicas e/ou filosóficas e mobiliza os conhecimentos científicos disponíveis (que nem todos aceitam por ferirem os seus interesses). Depois, o documento põe em paralelo os atropelos económicos e os atropelos ecológicos (quais deles os mais graves!), propondo a proporcional responsabilização humana, sobretudo para com os gravemente lesados pela ganância de outrem. E a perspetiva de fundo é a decorrente da sadia visão teológica da realidade e do olhar que Deus tem do mundo e da posição responsável do homem sobre a Terra.
Finalmente, o Papa lança o apelo à mudança de paradigma em relação à Casa Comum, uma nova atitude, uma outra perspetiva educacional e enuncia a sugestão de algumas medidas, terminando com duas propostas de oração. Não digam que fica mal ao Papa rezar e fazer rezar!
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No atinente à História da Igreja (de luzes e sombras) e à intervenção da Igreja na História, sugiro, sem mais delongas:
. A consulta do site do Vaticano. A Santa Sé tem seis academias – a Academia das Ciências Sociais; a Academia para a Vida; a Academia S. Tomás de Aquino; a Academia de Teologia; a Academia Mariana Internacional; a Academia de Belas Artes; a Academia Romana de Arqueologia; a Academia Cultorum Matyrum; a Academia Eclesiástica; e a Pontifícia Academia da Latinidade. Tem dois comités: o das Ciências Históricas; e o dos Congressos Eucarísticos Internacionais. Dos Pontifícios Conselhos, destaco o da Cultura e o das Comunicações Sociais. Não se esqueçam: a Biblioteca, a Tipografia Poliglota, os museus, os arquivos, o Osservatore Romano, a Sala de Imprensa, a Rádio Vaticano, o Centro Televisivo, o Centro Internet e as diversas Universidades (pontifícias e católicas) por todo o mundo.
. A leitura ou a releitura do livro O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica, de Thomas E. Woods, Jr (2009, Aletheia Editores, trad. Maria José Figueiredo).

. A Leitura ou a releitura de uma obra atualizada de História da Igreja, vg História da Igreja, 3 vol, de Carlos Verdete (2009, Lisboa: Paulus).

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Venha a nós o Vosso Reino

Do mesmo modo que solicitamos que seja em nós santificado o Vosso Nome, pedimos que o Reino de Deus se torne presente em nós. Também aqui a oração corresponde à preocupação da fé. Os crentes aguardam que o Reino de Deus se faça realidade e pedem-no. Escutam atentamente Jesus quando Ele proclama: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15).
No povo judeu muitos esperavam o começo do Reino de Deus, o seu Reino. Acreditavam que Deus virá, na pessoa do Messias, completar o que eles não podiam fazer por si próprios: vencer os inimigos do seu povo, expulsar os romanos do país, e reinar, desde Jerusalém – o centro do mundo – sobre todas as nações, como um rei poderoso sobre o trono de David. Mas Jesus fala duma outra maneira do Reino de Deus, do seu Reino: conta histórias através de imagens, parábolas. Ele diz: O Reino de Deus é semelhante à semente que o semeador lançou à terra (Mt 13,1-9). É semelhante ao grão de mostarda que se tornou uma árvore (Mt 13,31-32), ao fermento que uma mulher toma e amassa com três medidas de farinha (Mt 13,33), a um tesouro escondido no campo (Mt 13,44).
Jesus diz aos seus discípulos que vivam de tal maneira que os outros vejam através da sua fé, esperança e caridade, que o Reino de Deus está a crescer; que deixem os seus calculismos. E, porque só o Pai conhece o dia e a hora, importa que sejam vigilantes a fim de não faltarem à festa de Deus e vão suplicando: Venha a nós o vosso Reino! Depois, garante que aqueles que sabem ser pobres no seu íntimo perante Deus e aqueles que são perseguidos por amor da justiça possuem o Reino dos Céus (cf Mt 5,3.10).
Esta petição dominical do Reino é feita e atendida na oração de Jesus (cf Jo 17,17-20), presente e eficaz na Eucaristia; ela produz o seu fruto na vida nova segundo as bem-aventuranças (cf Mt 5,13-16; 6, 24; 7,12-13) – cf CIC, 2821.
nuclearidade da pregação do Reino
Com efeito, o tema do Reino torna-se nuclear na pregação de Cristo. Se é certo que, para os judeus do tempo de Jesus, o reino messiânico corresponderia à esperada intervenção divina maravilhosa de índole política (vd Mt 4.3.6.9.20.21; Jo 6,14-15; Ap 1,6), Jesus desenvolve a ideia do Reino de Deus noutras vertentes bem diferentes. O Reino de Deus (Marcos) ou Reino dos Céus (Mateus) tem a primazia na pregação de Jesus (vd Mt 4,23; 9,35; 11,12; 13,31-49; Mc 1,15; Lc 1,33; 12,31; 16,16; 17,20; Jo 12,13-15; 18,36). Jesus apresenta a sua ação na linha do reinado messiânico escatológico anunciado pelos profetas – que não conforme à ideia que os seus contemporâneos tinham formado (Is 35,5-6; 61,1-3; Mt 4,23; 12,28; Lc 7,21-22). Os apóstolos proclamam o Evangelho do Reino (Mt 10,7) dado a conhecer somente aos humildes (Mt 11,25) e, depois do Pentecostes, o Reino é tema central da pregação apostólica (At 14,22; 19,8;20,25; 28,23-31; 1Ts 2,12). O Reino de Deus, dom de Deus (Mt 5,3; 13,44-50; 18,1-4; 20,1-16; 1Cor 6,9; Gl 5,21; Ef 5,5) é com o fermento na massa (Mt 13,33; Lc 13,20-21) e como a semente (Mt 13,1-52; 9,18-23), crescerá pelo seu próprio poder como o grão (Mc 4,26-29). Converter-se-á numa grande árvore (Mt 13,31-33; Mc 4,31-32). E estará em crescimento até à Parusia (Mt 6,10; 9,37-38; 11,12-19; 13,25-34.44-52; Mc 2,19; Lc 21,31; 32,14-26; Jo 2,1-11;4,35; At 1,9-11).
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Porque e quando é que Deus não reina? Evidentemente que é porque e quando não fazemos a vontade do Pai.
E quando para Ele começou o reino que sempre existiu e nunca deixará de ser? É óbvio que existe desde o princípio do mundo, mas explicitamente quando Jesus o apresenta e o adquire pela sua Paixão. Por isso e porque ele é dom temos que o pedir e assumir como nosso. Pedimos a vinda do nosso reino, prometido por Deus e adquirido pelo sangue e paixão de Cristo, a fim de que nós, que fomos outrora escravos do mundo, reinemos depois, conforme Ele nos anunciou, pelo Cristo glorioso, ao dizer: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos está preparado desde a origem do mundo (Mt 25,34).
Pode-se igualmente entender que o próprio Cristo é o reino de Deus, cuja vinda pedimos todos os dias. Estamos ansiosos por ver esta vinda o mais depressa possível. Sendo Ele a ressurreição, Nele ressurgimos e assim se pode pensar que Ele é o reino de Deus e Nele reinaremos. Pedimos, é claro, o reino de Deus, o reino celeste, já que há um reino terrestre a ele oposto, mas em que ele se realiza. Ora, quem já renunciou ao mundo está acima desse reino terrestre e das suas honrarias.
Como o reino somente se realiza se for plenamente cumprida a vontade do Pai, nós rezamos: Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. Não o rezamos para que Deus faça o que quer, mas para que possamos fazer o que Deus quer, pois ninguém impedirá Deus de fazer tudo quanto Ele quiser. Mas, porque o diabo se opõe a que nossa vontade e ações em tudo obedeçam a Deus, oramos e pedimos que se faça em nós a vontade de Deus e a sua obra. Tudo isto resultará do seu auxílio e proteção, porque ninguém é forte por suas próprias forças, mas é a indulgência e a misericórdia de Deus que o protegem. Finalmente, manifestando a fraqueza de homem, diz o Senhor: Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice e, dando aos discípulos o exemplo de renunciar à própria vontade e de aceitar a de Deus, acrescentou: Contudo não o que eu quero, mas o que tu queres (Mt 26,39).
A vida humilde, a fidelidade inabalável, a modéstia nas palavras, a justiça nas ações, a misericórdia nas obras, a disciplina nos costumes; não fazer injúrias; tolerar as injúrias recebidas; manter a paz com os irmãos; amar a Deus de todo o coração; amá-Lo por ser Pai; temê-Lo por ser Deus; nada absolutamente antepor a Cristo, pois também Ele não antepôs coisa alguma a nós; aderir inseparavelmente à Sua caridade; estar ao pé da Sua cruz com coragem e confiança; tratando-se da luta pelo Seu nome e honra, mostrar firmeza ao confessá-Lo por palavras; no interrogatório, manter a confiança Naquele por quem combatemos; e, na morte, conservar a paciência que nos coroará – tudo isto é querer ser coerdeiro de Cristo, é cumprir o preceito de Deus, é realizar a vontade do Pai. – cf Tratado sobre a Oração do Senhor, de São Cipriano, Bispo e Mártir (Nn. 13-15: CSEL 3, 275-278, séc. III); e Dicionário Enciclopédico da Bíblia (Petrópolis, 1985, pgs1289-1295).
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Deus reina em todo o lugar aonde trouxe a salvação definitiva. O seu Reino chegou a toda a parte onde os homens conheceram e acolheram a Deus pela palavra de Jesus. Ali, ela pode atuar sem ser mal interpretada. Os crentes já não veem Deus apenas cingido dos direitos de poder soberano ou como o salvador mais poderoso que os outros, mas também O reconhecem nas humilhações de Seu Filho e no amor que os une. Desta verdade primordial, própria de Evangelho brotam o amor e a misericórdia – fonte da única Salvação e do poder no verdadeiro sentido. E, com a passagem do tempo, vamos desfrutando de alguns frutos do Reino de Deus, que, embora ainda não consumado, já começou. Os filhos de Deus, reconciliados neste Reino, tornam-se fermento evangélico na sociedade. Assim, toda a realidade do homem – com seus projetos, trabalhos e construções económicas e políticas – se encaminha para uma meta comum: tudo e todos hão de voltar para o Pai.
Compete-nos trabalhar empenhadamente para venha o Reino de justiça e de verdade, de paz e amor, mas este Reino não está sujeito à nossa ao ou má vontade, à nossa indiferença ou entusiasmo. O Reino de Deus virá connosco ou sem nós, porque na realidade ele está mesmo entre nós. Resta-nos fazê-lo nosso. (cf La Biblia latinoamerica, 1995, San Pablo:nota a Mt 6,9).
O sentido do Reino
O pedido para que o Reino de Deus venha é geralmente interpretado como uma referência à crença, comum na época, de que a figura do Messias traria o Reino de Deus. Tradicionalmente, a vinda do Reino de Deus é vista como um dom divino recebido na oração e não uma conquista humana. Esta ideia é muitas vezes contestada por grupos que acreditam que o Reino virá pelas mãos dos fiéis que trabalharam por um mundo melhor. Acredita-se, pela convicção destes indivíduos, que a ordem de Jesus para alimentar o faminto e vestir os necessitados é o Reino referido por Ele.
Bíblia do Peregrino (BP), que traduz essa frase como “venha o teu reinado”, observa que: o reinado de Deus é o exercício de seu poder; o pedido da vinda do reinado de Deus é o pedido da sua realização histórica final, descrita nos Salmos (vd Sl 98/97,8-9), e corresponde ao anúncio primordial da boa nova, por obra de João Batista e de Jesus, um período no qual Deus regerá a história dos homens (cf Sl (82/81,8; Sl 98/97,1); tal pedido não é fatalismo nem resignação (cf Mt 7,21; 12,50; 26,42); deve-se pedir a vinda do Reino pois é um processo que se manifestou primeiramente em Jesus e também deve se manifestar em nós.
Tradução Ecuménica da Bíblia (TOB), que traduz essa frase como “faz com que venha o teu Reinado”, observa que: a tradução literal seria, que o teu Reinado venha; pede-se que o Reinado inaugurado por Jesus se manifeste e seja definitivamente reconhecido por toda a terra; em Mateus (Mt 3,2), João Batista havia-se referido a esse Reinado como “Reinado dos Céus”, em conformidade com uma tradição judaica que evitava pronunciar o Nome de Deus; a expressão “Reinado dos Céus” não designa um “reino celeste”, mas o Reino Daquele que está nos céus (cf Mt 5,48; 6,9; 7,21) sobre o mundo; nalgumas passagens do Antigo Testamento também se faz referência ao Reino de Deus, tais como nos Salmos (vg Sl 22,29; 103,19; 145,11-13); a expressão “Reinado de Deus” também é empregada no Evangelho de Mateus (Mt 12,28; 19,24; 21,31; 21,41); alguns manuscritos apresentam essa frase em Lucas (Lc 11,2) como “Faz vir sobre nós o teu Reinado”, outros substituem esse pedido (ou o anterior) por “Faz vir o Teu Espírito sobre nós, e que ele nos purifique”, podendo tal opção decorrer da influência da liturgia do Batismo.
Podemos e devemos dizer do Reino de Deus que ele é inseparável de Jesus, do agora da salvação de Deus, do transbordar da sua graça na história, do rasgar da história aos pobres e infelizes, do bálsamo derramado nos corações quebrantados, da palavra de alento aos que já nada esperam, do aproximar das vidas concretas à possibilidade da salvação de Deus.
Aonde Jesus chegava, chegava o Reino; onde Jesus estava, mostrava-se o Reino de Deus. Quando as pessoas tocavam em Jesus, tocavam o Reino; quando O viam, estavam a ver o Reino. Quando escutavam as parábolas, escutavam a gramática insuspeita do Reino. Jesus viveu a sua vida como a manifestação extraordinária do Reino. O Reino coincidia com a presença de Jesus, e esta vinda de Jesus provocava efeitos extraordinários em muitas vidas.
Gente que se julgava morta, que se acreditava perdida num emaranhado de existência que não conseguia deslindar... passou a encontrar em Jesus Cristo a possibilidade duma vida nova. Por exemplo, Maria Madalena, de quem Jesus retirou sete demónios, esta mulher, rejeitada, perdida de si mesma, encontra-se em Jesus Cristo e reencontra nele o desejo de ser. Os próprios discípulos já sabiam muitas coisas acerca de Deus, mas em Jesus Cristo ouvem o que não sabiam. Sabiam andar de barco no mar da Galileia, mas não sabiam andar sobre as ondas. Sabiam amontoar e repartir o pão, mas não sabiam multiplicá-lo nem sabiam que o pão também pode saciar uma fome interior, uma fome do coração. Dos pecadores, que eram apontados a dedo, dizia-se: “não têm possibilidade de salvação”. Ora, a surpresa com que Zaqueu desceu daquela árvore para acolher Jesus em sua casa, ou aquela com que Levi se levantou do seu posto de cobrança para se tornar discípulo do Senhor – isto é o Reino de Deus presente, é o Reino de Deus atuante, um Reino sem fronteiras, não segundo a lógica dos homens, mas numa torrente do amor divino que vai crescendo, crescendo, como uma maré que quer tocar tudo e todos.
O Reino de Deus já está presente no meio de vós. Não digamos que está aqui ou além. O Reino está presente como uma realidade em si. O Reino depende de Deus e não da nossa tentação de limitar, de criar fronteiras, de separar. Interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, Jesus respondeu-lhes: A vinda do Reino de Deus não é observável, não se pode dizer: Ei-lo aqui, ou ei-lo ali. Pois, eis que o Reino de Deus está no meio de vós (Lc 17,20-21).
Este é o grande anúncio de Jesus: O Reino de Deus está no meio de vós! Está dentro de nós, no meio do mundo, no interior da História como semente. É este o maravilhoso tesouro a descobrir. Deus já está presente! E o que precisamos é de nos tornar sensíveis a essa presença. O Reino de Deus é já uma realidade, um fermento. E, se é verdade que o Reino de Deus é também uma realidade escatológica, uma realidade do futuro, uma coisa que a gente já vê, mas que ainda há de chegar na sua plenitude, que neste momento existem sinais, a verdade é que sabendo nós que ele é dom futuro, o Reino de Deus é já uma realidade do hoje da nossa vida. Hoje a nossa vida está envolvida pelo Reino de Deus. O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra. Quer esteja a dormir, quer se levante, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como (Mc 4,26-27).
Tal como os alquimistas medievos diziam que, sem um pingo de ouro, não se consegue fabricar o ouro, também sem um pingo do Reino de Deus nós não conseguimos construir o Reino de Deus, nem sequer conseguiremos pedi-lo e esperá-lo. O Reino de Deus é, no fundo, a súmula de toda a esperança. É aquela realidade de Deus que se entrosa misteriosamente com as esperanças mais íntimas e fundas, porque no Reino de Deus nós temos a plenitude, a concretização do amor de Deus. Basta-nos o Reino de Deus e tudo o resto é acréscimo. (cf José Tolentino Mendonça, in  Pai nosso que estais na terra, ed. Paulinas,2014).
A assunção do Reino na doutrina do “aqui e agora” da Igreja
No Novo Testamento, a palavra grega basileia e a palavra latina regnum podem traduzir-se por realeza (nome abstrato de estatuto régio), reino (nome concreto) ou reinado (nome abstrato de ação). O Reino de Deus está diante de nós, aproximou-se no Verbo encarnado, foi anunciado através de todo o Evangelho e veio na morte e ressurreição de Cristo. O Reino de Deus vem desde a Ceia de Cristo e, na Eucaristia, está no meio de nós. O Reino virá na glória, quando Cristo o entregar ao Pai:
É mesmo possível [...] que o Reino de Deus signifique o próprio Cristo, a Quem todos os dias desejamos que venha e cuja Vinda queremos que aconteça depressa. Do mesmo modo que Ele é a nossa ressurreição, pois n’Ele ressuscitamos, assim pode ser Ele próprio o Reino de Deus, porque n’Ele reinaremos (cf CIC,2816).

A petição Venha a nós o vosso Reino é o Marana Tha, o clamor do Espírito e da esposa, Vem, Senhor Jesus! (Ap 22,20):  
Mesmo que esta oração não nos tivesse imposto o dever de pedir a vinda do Reino, teríamos espontaneamente soltado este grito com a pressa de irmos abraçar o objeto de nossas esperanças. As almas dos mártires, sob o altar de Deus, invocam o Senhor a grandes gritos: Até quando, Senhor, até quando tardarás em pedir contas do nosso sangue aos habitantes da terra? (Ap 6,10). Eles devem, com efeito, alcançar justiça, no fim dos tempos. Por isso, clamamos: “Apressa, portanto, Senhor, a vinda do Teu Reino!” (cf CIC 2817).

O Concílio Vaticano II faz abundantes referências ao Reino de Deus e à sua justiça. Sem mais delongas e pormenores, sublinhe-se que a Lumen Gentium lhes dedica todo o n.º 6, reportando-o como mistério, como proximidade, manifestação por palavras e obras na presença de Cristo, corroborada pelos milagres. Acentua, por outro lado, o seu caráter seminal, germinante e frugífero e a sua índole nuclear na missão da Igreja. Também a Gaudium et Spes, no seu n.º 1, apresenta a Igreja que, sentindo-se peregrina a caminho do Pai e almejando a realização do reino de Deus, se propõe dialogar com o mundo nas suas alegrias, dramas e anseios para melhor servir o homem e anunciar o Reino.
Mais sistematicamente, entretanto, se referem ao Reino de Deus, a propósito da Oração dominical o Catecismo da Igreja Católica (CIC) e o seu Compêndio (CCIC), como se dá a entender a seguir, assumindo bem a lex orandi como lex credendi.
Na oração do Senhor, trata-se sobretudo da vinda final do Reino de Deus pelo regresso de Cristo (cf Tt 2,13) – desejo que não distrai a Igreja da sua missão no mundo, antes a empenha nela. Porque, desde o Pentecostes, a vinda do Reino é obra do Espírito do Senhor, para continuar a sua obra no mundo e consumar toda a santificação (cf CIC 2818). O Reino de Deus [...] é justiça, paz e alegria no Espírito (Rm 14,17). Os últimos tempos em que nos encontramos (cf Heb 1,2; Gl 4,4) são os da efusão do Espírito Santo. Trava-se desde então um combate decisivo entre a carne e o Espírito:
Só um coração puro pode dizer com confiança: Venha a nós o vosso Reino. É preciso ter passado pela escola de Paulo para dizer: Que o pecado deixe de reinar no vosso corpo mortal (Rm 6,12). Quem se conserva puro nos seus atos, pensamentos e palavras é que pode dizer a Deus: Venha a nós o vosso Reino! (cf CIC 2819).

Discernindo segundo o Espírito, os cristãos distinguem (distinção, não separação) entre o crescimento do Reino de Deus e o progresso da cultura e da sociedade em que estão inseridos (cf CIC 2819). A vocação do homem para a vida eterna não lhes suprime, antes reforça, o dever de aplicar as energias e os meios recebidos do Criador no serviço da justiça e da paz neste mundo (cf GS,22) – cf CIC,2820.

Em suma, nesta segunda significativa petição do Pai-nosso, a Igreja orante tem em vista principalmente o regresso de Cristo e a vinda final do reinado de Deus, mas reza igualmente pelo crescimento do Reino de Deus no hoje das nossas vidas (cf CIC,2859). Ou seja, quer a Igreja que os homens se preparem para a vinda do Filho de Deus fazendo que o Reino já presente cresça aqui e agora, graças à santificação dos homens no Espírito e graças ao seu empenho ao serviço da justiça e da paz, segundo o código das Bem-aventuranças (cf CCIC, 590). Este pedido é, como se disse, o grito do Espírito e da Esposa: Vem Senhor Jesus (Ap 22,20).