domingo, 28 de junho de 2015

Perversão nos períodos eleitorais

É suposto o Estado e os seus serviços comportarem-se sempre como Estado. Porém, o que se tem passado no corrente ano levanta algumas dúvidas sobre a sanidade de algumas das instituições públicas e respetivos serviços.
Atendo-nos a alguns factos, meramente a título de exemplo, recordem-se os seguintes casos: de algumas nomeações para cargos dirigentes na administração pública ultrapassando a CRESAP sem explicação convincente; do que se passou na administração da justiça a propósito do programa CITIUS; da constituição de vários arguidos a propósito de irregularidades nos vistos Gold; do braço de ferro das associações da PSP e GNR com a Ministra da Administração Interna; da rutura entre o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) e Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) e a Ministra da Justiça; da contestação das associações de militares (AP; ANS; e AOFA) ao Ministro da Defesa Nacional (MDN) e ao Presidente da Republica (PR); e agora a da tentativa de escrutínio institucional do programa eleitoral do PS.
Queiramos ou não e por mais naturais que os primeiros seis dos diferendos enunciados sejam, eles avolumaram-se sob o espectro do ano eleitoral e suas complicações – isto sem deixarmos de sublinhar a dificuldade da gestão dos dossiês, seja no tocante ao poder judiciário seja no atinente ao poder executivo enquanto superintendente da administração pública.
***
Porém, a tentativa reiterada de escrutínio dos instrumentos programáticos do PS constitui um forte beliscão na sanidade do dinamismo eleitoral. Sempre houve atropelos e comportamentos erráticos em relação a esta matéria, mas usualmente resolvidos a tempo, ao abrigo das leis e, sobretudo, não eram atribuíveis às instituições, mas a indivíduos considerados isoladamente.
É suposto manterem-se, criarem-se ou refazerem-se formações partidárias e/ou coligações. Por outro lado, apresentam-se linhas programáticas, programas eleitorais, fazem-se declarações públicas, apresentam-se as candidaturas publicamente e organiza-se o processo da sua formal apresentação no Tribunal Constitucional (ou nos tribunais comarcãos no caso das eleições autárquicas) e aguarda-se o veredicto judicial da regularidade das candidaturas, procedendo à colmatação de eventuais irregularidades. Entretanto, organizam-se os mais diversos meios de publicidade (materiais promocionais diversos, sessões de esclarecimento, deslocações, cortejos, caravanas, comícios, tempos de antena, etc.) e propaganda e mesmo combate político a ponto de cada formação expor vigorosamente as suas propostas e contradizer veementemente as de outrem.
Ao Estado, seus órgãos, instituições e serviços exige-se uma vigilância de neutralidade que se consubstancia basicamente na garantia da liberdade de expressão e movimentação das diversas candidaturas e seus potenciais aderentes; e no postulado de tratamento equitativo das diversas candidaturas. Tal postura é exigível também aos diversos órgãos de comunicação social enquanto prestadores de um serviço público essencial consubstanciado, no caso, no tratamento noticioso, na oportunidade de comentário, na organização/aceitação de debates e na cobertura de eventos. Todavia, a nenhum órgão do Estado, suas instituições e serviços é lícito intervir a nível de conteúdos, mas unicamente intervir para repor eventuais irregularidades e estabelecer a calendarização das operações eleitorais, a que todos se submetem.
***
Entretanto, considerando obsoleta a lei da cobertura do período eleitoral, os partidos da maioria, até há pouco acompanhados pelo PS, fizeram aprovar uma nova lei que, de certo modo, prejudica o tratamento equitativo das diversas candidaturas, ao privilegiar a liberdade editorial de cada órgão de comunicação social, obviamente movida pela venda de papel ou pela guerra de audiências e escapando à obrigatoriedade de tratamento equitativo ao poderem promover debates com os candidatos que entenderem ou com aqueles que representam partidos que tenham, de momento, assento no órgão colegial que é objeto da eleição.
***
Por outro lado, na sua fúria inquisitória, o PSD pretendeu (depois desistiu da ideia) que a UTAO e o CFP analisassem a veridicidade do estudo macroeconómico do PS para a próxima década. Agora, surgiram, da parte de gabinetes ministeriais, o pedido a algumas das suas direções-gerais para estudarem a viabilidade técnica das diversas opções do programa eleitoral do PS e a tentar ver se elas estão integradas, ou o podem ser, nas linhas da atual ação governativa. Estão, neste caso, pelo menos, o Ministério da Justiça e o da Economia.
Com efeito, os diretores-gerais e equivalentes, na Justiça, receberam um e-mail do gabinete da Ministra da Justiça a pedir, com “urgência”, que identificassem as medidas do programa eleitoral do PS já realizadas por este Governo ou que estão em vias de o ser. Elencando uma lista de ações nas respetivas áreas, o gabinete solicitava a sua colaboração na “identificação das eventuais medidas que já tenham sido concretizadas por este governo (iniciativa do MJ) ou que estão em vias de o ser”. Mas o gabinete ocultou que o conjunto de ideias tinha sido retirado do programa eleitoral do PS, disponível no site oficial do partido. E a Ministra declarou:
“É feita, como é natural, uma monitorização constante das medidas parlamentares e das políticas propostas, para efeitos de aperfeiçoamento do nosso trabalho ou eventual crítica. Este gabinete tem de estar habilitado a concordar com ou a discordar de medidas que na sua área sejam propostas e com as quais possa o gabinete ser confrontado a todo o tempo”.

A Ministra da Justiça acabou por admitir, no Parlamento, que foi “pouco avisado” pedir aos serviços que analisassem o programa eleitoral do Partido Socialista (desta vez pediu desculpa).

Por seu turno, o Ministério da Economia também revelou que houve um pedido “indevido” de informações sobre o programa eleitoral do PS por parte de um serviço daquele ministério, situação que lamenta, mas que não deverá voltar a acontecer. Segundo fonte oficial, o gabinete do Ministro comunicou não ter dado indicação para que fosse solicitada aos organismos sob sua tutela qualquer monitorização de medidas propostas pelo Partido Socialista. Contudo, a mesma fonte revela que, “após averiguação”, se apurou que, por iniciativa indevida de alguém, “seguiu um e-mail para três organismos com pedido de informações por parte de um serviço de um gabinete do ministério” – informação e posição que o Ministro confirmou.
***
A situação criou incómodo no PS e nalguns serviços tutelados pelo Ministério da Justiça. Jorge Lacão, coordenador do PS para a área da Justiça e responsável por estas propostas no programa eleitoral socialista, declarou, a este respeito, que a Ministra está a utilizar dirigentes da administração pública para analisar o programa eleitoral socialista e identificar as medidas que já foram ou vão ser tomadas pelo seu governo e que o PS, perplexo como está, exigiu e exige explicações para esta inédita iniciativa, que pretenderá esvaziar as ideias do maior partido da oposição em ano de eleições legislativas:
“Estou perplexo com esta situação. É abusiva e escandalosa. A ser assim, é a prova irrefutável da instrumentalização da administração pública para fins eleitorais. Facto que não pode deixar de merecer uma avaliação de responsabilidade política, pela qual a ministra da Justiça deve responder diretamente”.

***
O líder parlamentar do PS considerou “extremamente grave” a utilização de dirigentes públicos para analisarem o programa do PS. Efetivamente, Ferro Rodrigues denunciou a chegada ao conhecimento do PS que a situação – da utilização de dirigentes públicos a analisarem medidas eleitorais socialistas – seria mais abrangente. Classificou-a como facto “sem precedentes na história da democracia”, que não se limita ao Ministério da Justiça.
O ex-secretário geral socialista infere que se trata de “uma responsabilidade política ao mais alto nível”, desafiando o primeiro-ministro a dar “explicações sobre se deu esta orientação política”, que representa “o grau zero da democracia portuguesa” a instrumentalização de altos quadros da administração pública para a luta política, através de ordens superiores para analisarem o programa eleitoral do PS.
Por sua vez, Augusto Santos Silva, antigo ministro socialista da educação, da cultura e da defesa nacional, exige a demissão de ministra da Justiça, declarando, depois de ler a manchete do DN, de 26 de junho, sobre o pedido de Paula Teixeira da Cruz para monitorizar medidas eleitorais do PS, que “Ela deve ser imediatamente demitida”. E deixou duas questões dirigidas a Passos Coelho e a Cavaco Silva:
“Quantas horas mais vai demorar o primeiro-ministro a propor ao Presidente da República a sua demissão? Quantas horas mais vai demorar o Presidente da República a exigir ao primeiro-ministro a sua demissão?”.

Sem uma resposta de Passos e de Cavaco, os socialistas só podem extrair uma conclusão: “Quantas mais horas demorarem, mais cúmplices se tornarão de um ato indigno?”.
Como é natural, dado o caráter inusitado da situação, também o secretário-geral do PS se pôs em bicos de pés para verberar a atitude dos departamentos governamentais implicados e a exigir a conveniente explicação da parte do Primeiro-Ministro, o responsável máximo, em nome do Governo, pela coordenação da definição da política do país.
***
Sem nos revermos na verborreia partidária, devemos, no entanto, deixar claro que é lícito aos partidos monitorizar, criticar, escalpelizar, contraditar com toda a força, técnica e rigor as propostas eleitorais dos adversários, podendo confiar também esta pertinente tarefa a seus gabinetes de estudos e a outros colaboradores. Porém, nunca será legítimo que ministros, secretários de Estado ou quaisquer outros membros do Governo – por si ou através de elementos dos seus gabinetes (que são de sua confiança pessoal e/ou política) – mobilizem quaisquer serviços do Estado para escrutinarem programas eleitorais partidários, porque os serviços públicos são chamados a zelar pelo interesse público como ele é entendido pelo poder vigente (embora com larga margem de autonomia) e não a servir de inquisidores em relação aos pretendentes ao poder.
Se efetivamente aconteceu o recentemente trazido a público, nomeadamente a inquisição sobre as opções partidárias de outrem ou a sua apropriação para aferir da sua integração atual ou futura nas linhas de ação governativa, para mais sem revelar as fontes, temos que deixar clara a nossa viva repulsa por se tratar de desrespeito pela dinâmica eleitoral, pelo mérito autoral e por minar a sanidade legal e ética da democracia representativa.

Finalmente, há que perguntar se o PS tem mesmo as mãos totalmente limpas em matéria democrática, sobretudo no uso eleitoralista dos meios do Estado quando é poder.

Sem comentários:

Enviar um comentário