É
suposto o Estado e os seus serviços comportarem-se sempre como Estado. Porém, o
que se tem passado no corrente ano levanta algumas dúvidas sobre a sanidade de
algumas das instituições públicas e respetivos serviços.
Atendo-nos
a alguns factos, meramente a título de exemplo, recordem-se os seguintes casos:
de algumas nomeações para cargos dirigentes na administração pública
ultrapassando a CRESAP sem explicação convincente; do que se passou na
administração da justiça a propósito do programa CITIUS; da constituição de
vários arguidos a propósito de irregularidades nos vistos Gold; do braço de ferro das associações da PSP e GNR com a Ministra
da Administração Interna; da rutura entre o Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público (SMMP) e Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) e a Ministra da Justiça; da
contestação das associações de militares (AP; ANS; e AOFA) ao Ministro da Defesa Nacional
(MDN) e ao Presidente da Republica (PR); e agora a da tentativa de
escrutínio institucional do programa eleitoral do PS.
Queiramos
ou não e por mais naturais que os primeiros seis dos diferendos enunciados
sejam, eles avolumaram-se sob o espectro do ano eleitoral e suas complicações –
isto sem deixarmos de sublinhar a dificuldade da gestão dos dossiês, seja no
tocante ao poder judiciário seja no atinente ao poder executivo enquanto
superintendente da administração pública.
***
Porém,
a tentativa reiterada de escrutínio dos instrumentos programáticos do PS
constitui um forte beliscão na sanidade do dinamismo eleitoral. Sempre houve
atropelos e comportamentos erráticos em relação a esta matéria, mas usualmente
resolvidos a tempo, ao abrigo das leis e, sobretudo, não eram atribuíveis às
instituições, mas a indivíduos considerados isoladamente.
É
suposto manterem-se, criarem-se ou refazerem-se formações partidárias e/ou
coligações. Por outro lado, apresentam-se linhas programáticas, programas
eleitorais, fazem-se declarações públicas, apresentam-se as candidaturas
publicamente e organiza-se o processo da sua formal apresentação no Tribunal
Constitucional (ou nos tribunais comarcãos no caso das
eleições autárquicas)
e aguarda-se o veredicto judicial da regularidade das candidaturas, procedendo
à colmatação de eventuais irregularidades. Entretanto, organizam-se os mais
diversos meios de publicidade (materiais promocionais diversos,
sessões de esclarecimento, deslocações, cortejos, caravanas, comícios, tempos
de antena, etc.) e
propaganda e mesmo combate político a ponto de cada formação expor
vigorosamente as suas propostas e contradizer veementemente as de outrem.
Ao
Estado, seus órgãos, instituições e serviços exige-se uma vigilância de
neutralidade que se consubstancia basicamente na garantia da liberdade de
expressão e movimentação das diversas candidaturas e seus potenciais aderentes;
e no postulado de tratamento equitativo das diversas candidaturas. Tal postura
é exigível também aos diversos órgãos de comunicação social enquanto prestadores
de um serviço público essencial consubstanciado, no caso, no tratamento
noticioso, na oportunidade de comentário, na organização/aceitação de debates e
na cobertura de eventos. Todavia, a nenhum órgão do Estado, suas instituições e
serviços é lícito intervir a nível de conteúdos, mas unicamente intervir para
repor eventuais irregularidades e estabelecer a calendarização das operações
eleitorais, a que todos se submetem.
***
Entretanto,
considerando obsoleta a lei da cobertura do período eleitoral, os partidos da
maioria, até há pouco acompanhados pelo PS, fizeram aprovar uma nova lei que,
de certo modo, prejudica o tratamento equitativo das diversas candidaturas, ao
privilegiar a liberdade editorial de cada órgão de comunicação social,
obviamente movida pela venda de papel ou pela guerra de audiências e escapando
à obrigatoriedade de tratamento equitativo ao poderem promover debates com os
candidatos que entenderem ou com aqueles que representam partidos que tenham,
de momento, assento no órgão colegial que é objeto da eleição.
***
Por
outro lado, na sua fúria inquisitória, o PSD pretendeu (depois
desistiu da ideia)
que a UTAO e o CFP analisassem a veridicidade do estudo macroeconómico do PS
para a próxima década. Agora, surgiram, da parte de gabinetes ministeriais, o
pedido a algumas das suas direções-gerais para estudarem a viabilidade técnica
das diversas opções do programa eleitoral do PS e a tentar ver se elas estão
integradas, ou o podem ser, nas linhas da atual ação governativa. Estão, neste
caso, pelo menos, o Ministério da Justiça e o da Economia.
Com
efeito, os diretores-gerais
e equivalentes, na Justiça, receberam um e-mail
do gabinete da Ministra da Justiça a pedir, com “urgência”, que
identificassem as medidas do programa eleitoral do PS já realizadas por este
Governo ou que estão em vias de o ser. Elencando
uma lista de ações nas respetivas áreas, o gabinete solicitava a sua
colaboração na “identificação das eventuais medidas que já tenham sido concretizadas
por este governo (iniciativa do MJ) ou que estão em
vias de o ser”. Mas o gabinete ocultou que o conjunto de ideias tinha sido
retirado do programa eleitoral do PS, disponível no site oficial do partido. E a Ministra declarou:
“É feita, como é natural, uma monitorização constante das medidas
parlamentares e das políticas propostas, para efeitos de aperfeiçoamento do
nosso trabalho ou eventual crítica. Este gabinete tem de estar habilitado a
concordar com ou a discordar de medidas que na sua área sejam propostas e com
as quais possa o gabinete ser confrontado a todo o tempo”.
A Ministra da Justiça acabou por admitir, no
Parlamento, que foi “pouco avisado” pedir aos serviços que analisassem o
programa eleitoral do Partido Socialista (desta vez pediu
desculpa).
Por seu
turno, o
Ministério da Economia também revelou que houve um pedido “indevido” de
informações sobre o programa eleitoral do PS por parte de um serviço daquele
ministério, situação que lamenta, mas que não deverá voltar a acontecer. Segundo
fonte oficial, o gabinete do Ministro comunicou não ter dado indicação para que
fosse solicitada aos organismos sob sua tutela qualquer monitorização de
medidas propostas pelo Partido Socialista. Contudo, a mesma fonte revela que,
“após averiguação”, se apurou que, por iniciativa indevida de alguém, “seguiu
um e-mail para três organismos com
pedido de informações por parte de um serviço de um gabinete do ministério” –
informação e posição que o Ministro confirmou.
***
A situação criou incómodo
no PS e nalguns serviços tutelados pelo Ministério da Justiça. Jorge Lacão, coordenador
do PS para a área da Justiça e responsável por estas propostas no programa
eleitoral socialista, declarou, a este respeito, que a Ministra está a utilizar
dirigentes da administração pública para analisar o programa eleitoral
socialista e identificar as medidas que já foram ou vão ser tomadas pelo seu
governo e que o PS, perplexo como está, exigiu e exige explicações para esta
inédita iniciativa, que pretenderá esvaziar as ideias do maior partido da
oposição em ano de eleições legislativas:
“Estou perplexo com esta situação. É abusiva e escandalosa. A ser
assim, é a prova irrefutável da instrumentalização da administração pública
para fins eleitorais. Facto que não pode deixar de merecer uma avaliação de
responsabilidade política, pela qual a ministra da Justiça deve responder
diretamente”.
***
O líder parlamentar do PS
considerou “extremamente grave” a
utilização de dirigentes públicos para analisarem o programa do PS. Efetivamente,
Ferro Rodrigues denunciou a chegada ao conhecimento do PS que a situação – da
utilização de dirigentes públicos a analisarem medidas eleitorais socialistas –
seria mais abrangente. Classificou-a como facto “sem precedentes na história da
democracia”, que não se limita ao Ministério da Justiça.
O ex-secretário geral
socialista infere que se trata de “uma responsabilidade política ao mais alto
nível”, desafiando o primeiro-ministro a dar “explicações sobre se deu esta
orientação política”, que representa “o grau zero da democracia portuguesa” a
instrumentalização de altos quadros da administração pública para a luta
política, através de ordens superiores para analisarem o programa eleitoral do
PS.
Por sua vez, Augusto Santos Silva, antigo ministro socialista da educação, da cultura e da defesa nacional, exige
a demissão de ministra da Justiça, declarando, depois de ler
a manchete do DN, de 26 de junho,
sobre o pedido de Paula Teixeira da Cruz para monitorizar medidas eleitorais do
PS, que “Ela deve ser imediatamente demitida”. E deixou duas questões dirigidas a Passos
Coelho e a Cavaco Silva:
“Quantas horas mais vai demorar o primeiro-ministro a propor ao
Presidente da República a sua demissão? Quantas horas mais vai demorar o
Presidente da República a exigir ao primeiro-ministro a sua demissão?”.
Sem uma resposta de
Passos e de Cavaco, os socialistas só podem extrair uma conclusão: “Quantas
mais horas demorarem, mais cúmplices se tornarão de um ato indigno?”.
Como é natural, dado o caráter
inusitado da situação, também o secretário-geral do PS se pôs em bicos de pés
para verberar a atitude dos departamentos governamentais implicados e a exigir
a conveniente explicação da parte do Primeiro-Ministro, o responsável máximo,
em nome do Governo, pela coordenação da definição da política do país.
***
Sem nos revermos na
verborreia partidária, devemos, no entanto, deixar claro que é lícito aos
partidos monitorizar, criticar, escalpelizar, contraditar com toda a força,
técnica e rigor as propostas eleitorais dos adversários, podendo confiar também
esta pertinente tarefa a seus gabinetes de estudos e a outros colaboradores.
Porém, nunca será legítimo que ministros, secretários de Estado ou quaisquer
outros membros do Governo – por si ou através de elementos dos seus gabinetes (que são de sua confiança
pessoal e/ou política) – mobilizem quaisquer serviços do Estado para escrutinarem
programas eleitorais partidários, porque os serviços públicos são chamados a
zelar pelo interesse público como ele é entendido pelo poder vigente (embora com larga margem
de autonomia)
e não a servir de inquisidores em relação aos pretendentes ao poder.
Se efetivamente aconteceu
o recentemente trazido a público, nomeadamente a inquisição sobre as opções
partidárias de outrem ou a sua apropriação para aferir da sua integração atual
ou futura nas linhas de ação governativa, para mais sem revelar as fontes,
temos que deixar clara a nossa viva repulsa por se tratar de desrespeito pela
dinâmica eleitoral, pelo mérito autoral e por minar a sanidade legal e ética da
democracia representativa.
Finalmente, há que
perguntar se o PS tem mesmo as mãos totalmente limpas em matéria democrática,
sobretudo no uso eleitoralista dos meios do Estado quando é poder.
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