A 18 de junho, a Santa Sé deu a lume a encíclica Laudato Si’, de Sua Santidade o Papa
Francisco, sobre o cuidado da Casa comum,
comparável, na ótica de Francisco de Assis (Francisco fez bem em dar-lhe oficialmente o título oficial em
italiano. Terá sido em homenagem ao poverello
de Assis?), “ora a uma
irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos
seus braços”.
O notável documento papal, repartido por 246
números, é constituído por uma
introdução informal, em que ficam plasmados os pontos de partida e o apelo de
Francisco, e mais seis capítulos tematicamente intitulados e convenientemente
glosados em torno de cada um dos diversos subtemas entretecidos ao longo de uma
mesma espinha dorso-lombar. Por seu turno, o último número serve de conclusão ao
documento e de propedêutica para a formulação de duas orações – uma partilhável
por todos os que acreditam num Deus Criador e a outra partilhável por todos os
cristãos.
A Rádio Vaticano, a este propósito,
fornece um guia para uma primeira leitura da Encíclica, que se constitui simplesmente
em “um instrumento de suporte, ajudando a compreender o seu desenrolar na
totalidade e a identificar as linhas principais”. As primeiras duas páginas do guia apresentam a Laudato si’ na sua globalidade; depois, cada página corresponde a
um dos capítulos da Encíclica, indica seu objetivo e reproduz alguns trechos
significativos.
Transcreve-se
aqui, à laia de sumário, o índice completo constante das suas duas últimas
páginas, ainda que sob algumas alterações, que remetem para uma melhor
visualização, que não aprofundamento, do conteúdo – na ótica da minha leitura
ainda subliminar.
Embora
esse guia, como querem dizer alguns observadores (nem todos de boa fé), seja passível de alguma parcialidade resultante
do modelo teórico de quem o organizou e da pressa com que o terá feito, dada a
forte e ampla expectativa produzida face ao documento cuja chegada fora, de
antemão, anunciada, ele não deixa de ser útil como instrumento de aproximação à
necessária leitura em editação do documento, de modo que este, revestido como é
de sólida fundamentação e lídimo alcance, induza uma sustentada mudança de
paradigma e de atitudes da parte de todos, a começar pelos mais responsáveis.
***
LAUDATO
SI’, mi’ Signore [1-2] – nada deste mundo nos é indiferente, na
linha humanista de Públio Terêncio Afro e da Gaudium et Spes, n.º 1 [3-6]; unidos por uma preocupação comum e
solidária [7-9]; São
Francisco de Assis [10-12]; o apelo papal [13-16].
CAPÍTULO
I – O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA [17-61]
– Referência
às reflexões teológicas ou filosóficas sobre a humanidade e o mundo, a
verificação da aceleração das mudanças e a consideração de um tempo de maior consciencialização
[17-19]
1. POLUIÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS: poluição, resíduos e cultura do descarte [20-22]; O
clima como bem comum [23-26]
2. A QUESTÃO DA ÁGUA [27-31]
3. PERDA DE BIODIVERSIDADE [32-42]
4. DETERIORAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA HUMANA E DEGRADAÇÃO
SOCIAL [43-47]
5. DESIGUALDADE PLANETÁRIA [48-52]
6. A
FRAQUEZA DAS REACÇÕES [53-59]
7. DIVERSIDADE DE OPINIÕES [60-61]
CAPÍTULO
II – O EVANGELHO DA CRIAÇÃO [62-100]
– Por que motivo incluir, neste
documento dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às
convicções de fé? [62]
1. A LUZ QUE A FÉ OFERECE [63-64]
2. A SABEDORIA DAS NARRAÇÕES BÍBLICAS [65-75]
3. O MISTÉRIO DO UNIVERSO [76-83]
4. A MENSAGEM DE CADA CRIATURA NA HARMONIA DE
TODA A CRIAÇÃO [84-88]
5. UMA COMUNHÃO UNIVERSAL [89-92]
5. UMA COMUNHÃO UNIVERSAL [89-92]
6. O DESTINO COMUM DOS BENS [93-95]
7. O OLHAR DE JESUS [96-100]
CAPÍTULO
III – A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA [101-136]
–
Reconhecer a raiz humana da crise ecológica [101]
1. A TECNOLOGIA: CRIATIVIDADE E PODER [102-105]
2. A GLOBALIZAÇÃO DO PARADIGMA TECNOCRÁTICO [106-114]
3. CRISE DO ANTROPOCENTRISMO MODERNO E SUAS
CONSEQUÊNCIAS [115-121]: o relativismo prático [122-123]; a necessidade
de defender o trabalho [124-129]; a inovação biológica a partir da pesquisa [130-136]
CAPÍTULO
IV – UMA ECOLOGIA INTEGRAL [137-162]
– Ecologia integral, que inclua claramente as dimensões
humanas e sociais [137]
1. ECOLOGIA AMBIENTAL, ECONÓMICA E SOCIAL [138-142]
2. ECOLOGIA CULTURAL [143-146]
3. ECOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA [147-155]
4. O PRINCÍPIO DO BEM COMUM [156-158]
5. A JUSTIÇA INTERGENERACIONAL [159-162]
CAPÍTULO
V – ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO [163-201]
– Sugestão
de algumas ações consentâneas com a necessidade de mudança de rumo [163]
1. O DIÁLOGO SOBRE O MEIO AMBIENTE NA POLÍTICA
INTERNACIONAL [164-175]
2. O DIÁLOGO PARA NOVAS POLÍTICAS NACIONAIS E LOCAIS [176-181]
3. DIÁLOGO E TRANSPARÊNCIA NOS PROCESSOS DECISÓRIOS [182-188]
4. POLÍTICA E ECONOMIA EM DIÁLOGO PARA A
PLENITUDE HUMANA [189-198]
5. AS RELIGIÕES NO DIÁLOGO COM AS CIÊNCIAS [199-201]
CAPÍTULO
VI – EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS [202-246]
– Falta da
consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado
por todos [202]
1. APONTAR PARA OUTRO ESTILO DE VIDA [203-208]
2. EDUCAR PARA A ALIANÇA ENTRE A HUMANIDADE E O
AMBIENTE [209-215]
3. A CONVERSÃO ECOLÓGICA [216-221]
4. ALEGRIA E PAZ [222-227]
5. AMOR CIVIL E POLÍTICO [228-232]
6. OS SINAIS SACRAMENTAIS E O DESCANSO CELEBRATIVO [233-237]
7. A TRINDADE E A RELAÇÃO ENTRE AS CRIATURAS [238-240]
8. A RAINHA DE TODA A CRIAÇÃO [241-242]
9. PARA ALÉM DO SOL [243-246]
Oração pela nossa terra; oração cristã com a
criação
***
Agora,
alguns poucos traços a modos de respigo do conteúdo:
– Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai
suceder-nos, às crianças que estão a
crescer? É uma pergunta que “não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária”, mas que induz a interrogarmo-nos seriamente sobre o sentido da existência e sobre os valores que estão na base da vida social, sob pena de as nossas preocupações ecológicas não poderem surtir efeitos importantes.
crescer? É uma pergunta que “não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária”, mas que induz a interrogarmo-nos seriamente sobre o sentido da existência e sobre os valores que estão na base da vida social, sob pena de as nossas preocupações ecológicas não poderem surtir efeitos importantes.
O Papa
dirige-se certamente aos fiéis católicos, retomando as palavras de João Paulo
II: “os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da
criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua
fé”, mas propõe-se “especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa
casa comum.
O
itinerário da Encíclica, que se desenvolve em seis capítulos, é traçado
no n.º 15. Passa-se da análise da situação a partir das melhores
aquisições científicas disponíveis (cap. 1), ao confronto com a Bíblia e a tradição
judaico-cristã (cap. 2), identificando a raiz dos problemas (cap. 3) na
tecnocracia e no excessivo fechamento autorreferencial do ser humano. A
proposta (cap. 4) é,
pois, a de uma ecologia integral, claramente
inclusiva das dimensões humanas e sociais (137),
indissoluvelmente ligadas com a questão ambiental. Nesta ótica, Francisco
propõe audazmente (cap. 5) empreender em todos os níveis da vida
social, económica e política um diálogo honesto, que estruture processos de decisão
transparentes, e recorda (cap. 6) que nenhum projeto será eficaz se não for
animado por uma consciência formada e responsável, sugerindo ideias para
crescer nesta direção em nível educativo, espiritual, eclesial, político e
teológico.
O texto
conclui, como se disse, com duas orações, uma oferecida à partilha com todos os
que acreditam num Deus Criador
Omnipotente, e outra proposta aos que professam a fé em Jesus Cristo,
ritmada pelo refrão Laudato si’, a
pedra de toque da base e da coroa da Encíclica.
O texto
é perpassado por alguns eixos fulcrais, configuradores de uma variedade de
perspetivas diferentes, em função de uma forte linha unitária de fundo: a relação íntima entre os pobres e a
fragilidade do planeta; a convicção
da estreita interligação de tudo no mundo; a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da
tecnologia; o convite à procura de outras
maneiras de entender a economia e o progresso; o valor próprio de cada criatura; o sentido humano da ecologia; a necessidade
de debates sinceros e honestos; a grave
responsabilidade da política internacional e local; a cultura do descarte; e a proposta
dum novo estilo de vida.
***
Posto
isto, é preciso reconhecer que a encíclica não é o único, muito menos o primeiro,
instrumento de intervenção pontifícia sobre a matéria. O próprio Pontífice dá
testemunho desta asserção fazendo menção expressa das preocupações e intervenções
dos seus predecessores a partir de João XXIII e citando abundantemente a
doutrina e preocupações deles, sobretudo de Paulo VI, João Paulo II e Bento
XVI. Asserção semelhante se pode fazer a propósito de muitas intervenções documentais
do magistério romano e de setores eclesiais de índole regional e local, com
especial relevo para a Igreja da América Latina.
Todavia,
Laudato Si’ tem o mérito de constituir
um documento integralmente dedicado à ecologia. Depois, fá-la entroncar, historicamente,
na espiritualidade franciscana, do louvor universal ao Criador e da
fraternidade multidimensional e, biblicamente, na doutrina do Génesis, segundo
a qual o homem se constitui como dómino
do mundo e seu guarda, seu administrador e não seu dono. Por outro lado, o
Papa, ancorando a sua análise da visão do mundo e as consequências do seu devir,
salienta a importância da interligação entre ecologia e a ecoeconomia, em que a
terra, respeitada no seu equilíbrio natural e rendibilizada criteriosamente ao
serviço de todos e cada um dos homens, serve para construção de um mundo mais
justo e fraterno, mais humano e mais socialmente realizado. Por conseguinte,
são necessárias novas atitudes que induzam outro olhar para a realidade, uma
mudança de paradigma e de abordagem pedagógica, uma forte contenção das
ambições desmedidas de alguns – propiciadoras do espezinhamento e exploração dos
outros e degradadoras do ambiente –, definição de novas políticas públicas e
uma nova perspetiva educacional.
Se
os pontífices seus antecessores agregavam a preocupação ecológica à ecoeconomia
e à dimensão humana e social, Francisco não deixa também de o fazer. Não obstante,
confere-lhe estatuto para reflexão doutrinal autónoma, mas a compaginar
interdependências e portadora de uma peculiar espiritualidade que proclama a
beleza do mundo por Deus criado qual testemunha cantante da glória divina e a
maravilha da operação transformante do homem. Por outro lado, esta
espiritualidade, que pressupõe a atitude contemplativa deste mundo fruto do poder
criador de Deus e da faculdade apropriadora e transformadora da inteligência e do
trabalho do homem, tem de originar a comunhão ôntico-dinâmica do homem com
Deus, consigo mesmo, com os outros homens e com o cosmos.
Depois,
a realidade do mundo posto por Deus ao serviço de todos e de cada um não pode
ser feudo de uns poucos que usam da razão do capricho e da força em detrimento
da razão da razão, da razão da dignidade da pessoa humana e da razão do bem
comum.
É,
finalmente um desafio lançado a todos, em especial a quem detém responsabilidades
públicas pela gestão dos povos e dos territórios e em que as religiões têm peculiar
papel.
O homem
tem que se habituar a ser melhor guarda da Terra para poder ser melhor guarda
do seu irmão.
Por
isso e para isso, Laudatetur Dominus!
Sem comentários:
Enviar um comentário