sábado, 20 de junho de 2015

Saudando a encíclica Laudato Si’

A 18 de junho, a Santa Sé deu a lume a encíclica Laudato Si’, de Sua Santidade o Papa Francisco, sobre o cuidado da Casa comum, comparável, na ótica de Francisco de Assis (Francisco fez bem em dar-lhe oficialmente o título oficial em italiano. Terá sido em homenagem ao poverello de Assis?), “ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços”.
O notável documento papal, repartido por 246 números, é constituído por uma introdução informal, em que ficam plasmados os pontos de partida e o apelo de Francisco, e mais seis capítulos tematicamente intitulados e convenientemente glosados em torno de cada um dos diversos subtemas entretecidos ao longo de uma mesma espinha dorso-lombar. Por seu turno, o último número serve de conclusão ao documento e de propedêutica para a formulação de duas orações – uma partilhável por todos os que acreditam num Deus Criador e a outra partilhável por todos os cristãos.
A Rádio Vaticano, a este propósito, fornece um guia para uma primeira leitura da Encíclica, que se constitui simplesmente em “um instrumento de suporte, ajudando a compreender o seu desenrolar na totalidade e a identificar as linhas principais”. As primeiras duas páginas do guia apresentam a Laudato si’ na sua globalidade; depois, cada página corresponde a um dos capítulos da Encíclica, indica seu objetivo e reproduz alguns trechos significativos.
Transcreve-se aqui, à laia de sumário, o índice completo constante das suas duas últimas páginas, ainda que sob algumas alterações, que remetem para uma melhor visualização, que não aprofundamento, do conteúdo – na ótica da minha leitura ainda subliminar.
Embora esse guia, como querem dizer alguns observadores (nem todos de boa fé), seja passível de alguma parcialidade resultante do modelo teórico de quem o organizou e da pressa com que o terá feito, dada a forte e ampla expectativa produzida face ao documento cuja chegada fora, de antemão, anunciada, ele não deixa de ser útil como instrumento de aproximação à necessária leitura em editação do documento, de modo que este, revestido como é de sólida fundamentação e lídimo alcance, induza uma sustentada mudança de paradigma e de atitudes da parte de todos, a começar pelos mais responsáveis.
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LAUDATO SI’, mi’ Signore [1-2] – nada deste mundo nos é indiferente, na linha humanista de Públio Terêncio Afro e da Gaudium et Spes, n.º 1 [3-6]; unidos por uma preocupação comum e solidária [7-9]; São Francisco de Assis [10-12]; o apelo papal [13-16].
CAPÍTULO I – O QUE ESTÁ A ACONTECER À NOSSA CASA [17-61]
– Referência às reflexões teológicas ou filosóficas sobre a humanidade e o mundo, a verificação da aceleração das mudanças e a consideração de um tempo de maior consciencialização [17-19]
1. POLUIÇÃO E MUDANÇAS CLIMÁTICAS: poluição, resíduos e cultura do descarte [20-22]; O clima como bem comum [23-26]
2. A QUESTÃO DA ÁGUA [27-31]
3. PERDA DE BIODIVERSIDADE [32-42]
4. DETERIORAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA HUMANA E DEGRADAÇÃO SOCIAL [43-47]
5. DESIGUALDADE PLANETÁRIA [48-52]
 6. A FRAQUEZA DAS REACÇÕES [53-59]
7. DIVERSIDADE DE OPINIÕES [60-61]
CAPÍTULO II – O EVANGELHO DA CRIAÇÃO [62-100]
Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às convicções de fé? [62]
1. A LUZ QUE A FÉ OFERECE [63-64]
2. A SABEDORIA DAS NARRAÇÕES BÍBLICAS [65-75]
3. O MISTÉRIO DO UNIVERSO [76-83]
4. A MENSAGEM DE CADA CRIATURA NA HARMONIA DE TODA A CRIAÇÃO [84-88]
5.
UMA COMUNHÃO UNIVERSAL [89-92]
6. O DESTINO COMUM DOS BENS [93-95]
7. O OLHAR DE JESUS [96-100]
CAPÍTULO III – A RAIZ HUMANA DA CRISE ECOLÓGICA [101-136]
Reconhecer a raiz humana da crise ecológica [101]
1. A TECNOLOGIA: CRIATIVIDADE E PODER [102-105]
2. A GLOBALIZAÇÃO DO PARADIGMA TECNOCRÁTICO [106-114]
3. CRISE DO ANTROPOCENTRISMO MODERNO E SUAS CONSEQUÊNCIAS [115-121]: o relativismo prático [122-123]; a necessidade de defender o trabalho [124-129]; a inovação biológica a partir da pesquisa [130-136]
CAPÍTULO IV – UMA ECOLOGIA INTEGRAL [137-162]
Ecologia integral, que inclua claramente as di­mensões humanas e sociais [137]
1. ECOLOGIA AMBIENTAL, ECONÓMICA E SOCIAL [138-142]
2. ECOLOGIA CULTURAL [143-146]
3. ECOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA [147-155]
4. O PRINCÍPIO DO BEM COMUM [156-158]
5. A JUSTIÇA INTERGENERACIONAL [159-162]
CAPÍTULO V – ALGUMAS LINHAS DE ORIENTAÇÃO E AÇÃO [163-201]
– Sugestão de algumas ações consentâneas com a necessidade de mudança de rumo [163]
1. O DIÁLOGO SOBRE O MEIO AMBIENTE NA POLÍTICA INTERNACIONAL [164-175]
2. O DIÁLOGO PARA NOVAS POLÍTICAS NACIONAIS E LOCAIS [176-181]
3. DIÁLOGO E TRANSPARÊNCIA NOS PROCESSOS DECISÓRIOS [182-188]
4. POLÍTICA E ECONOMIA EM DIÁLOGO PARA A PLENITUDE HUMANA [189-198]
5. AS RELIGIÕES NO DIÁLOGO COM AS CIÊNCIAS [199-201]
CAPÍTULO VI – EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS [202-246]
Falta da consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum futuro partilhado por todos [202]
1. APONTAR PARA OUTRO ESTILO DE VIDA [203-208]  
2. EDUCAR PARA A ALIANÇA ENTRE A HUMANIDADE E O AMBIENTE [209-215]
3. A CONVERSÃO ECOLÓGICA [216-221]
4. ALEGRIA E PAZ [222-227]
5. AMOR CIVIL E POLÍTICO [228-232]
6. OS SINAIS SACRAMENTAIS E O DESCANSO CELEBRATIVO [233-237]
7. A TRINDADE E A RELAÇÃO ENTRE AS CRIATURAS [238-240]
8. A RAINHA DE TODA A CRIAÇÃO [241-242]
9. PARA ALÉM DO SOL [243-246]
 Oração pela nossa terra; oração cristã com a criação
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Agora, alguns poucos traços a modos de respigo do conteúdo:
Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a
crescer?
  É uma pergunta que “não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária”, mas que induz a interrogarmo-nos seriamente sobre o sentido da existência e sobre os valores que estão na base da vida social, sob pena de as nossas preocupações ecológicas não poderem surtir efeitos importantes.
O Papa  dirige-se certamente aos fiéis católicos, retomando as palavras de João Paulo II: “os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua fé”, mas propõe-se “especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum.
O itinerário  da Encíclica, que se desenvolve em seis capítulos, é traçado no n.º 15.  Passa-se da análise da situação a partir das melhores aquisições científicas disponíveis (cap. 1), ao confronto com a Bíblia e a tradição judaico-cristã (cap. 2), identificando a raiz dos problemas (cap. 3) na tecnocracia e no excessivo fechamento autorreferencial do ser humano. A proposta (cap. 4) é, pois, a de uma ecologia integral, claramente inclusiva das dimensões humanas e sociais  (137), indissoluvelmente ligadas com a questão ambiental. Nesta ótica, Francisco propõe audazmente (cap. 5) empreender em todos os níveis da vida social, económica e política um diálogo honesto, que estruture processos de decisão transparentes, e recorda (cap. 6) que nenhum projeto será eficaz se não for animado por uma consciência formada e responsável, sugerindo ideias para crescer nesta direção em nível educativo, espiritual, eclesial, político e teológico.
O texto conclui, como se disse, com duas orações, uma oferecida à partilha com todos os que acreditam num Deus Criador Omnipotente, e outra proposta aos que professam a fé em Jesus Cristo, ritmada pelo refrão Laudato si’, a pedra de toque da base e da coroa da Encíclica.
O texto é perpassado por alguns eixos fulcrais, configuradores de uma variedade de perspetivas diferentes, em função de uma forte linha unitária de fundo: a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta; a convicção da estreita interligação de tudo no mundo; a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia; o convite à procura de outras maneiras de entender a economia e o progresso; o valor próprio de cada criatura; o sentido humano da ecologia; a necessidade de debates sinceros e honestos; a grave responsabilidade da política internacional e local; a cultura do descarte; e a proposta dum novo estilo de vida.
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Posto isto, é preciso reconhecer que a encíclica não é o único, muito menos o primeiro, instrumento de intervenção pontifícia sobre a matéria. O próprio Pontífice dá testemunho desta asserção fazendo menção expressa das preocupações e intervenções dos seus predecessores a partir de João XXIII e citando abundantemente a doutrina e preocupações deles, sobretudo de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Asserção semelhante se pode fazer a propósito de muitas intervenções documentais do magistério romano e de setores eclesiais de índole regional e local, com especial relevo para a Igreja da América Latina.
Todavia, Laudato Si’ tem o mérito de constituir um documento integralmente dedicado à ecologia. Depois, fá-la entroncar, historicamente, na espiritualidade franciscana, do louvor universal ao Criador e da fraternidade multidimensional e, biblicamente, na doutrina do Génesis, segundo a qual o homem se constitui como dómino do mundo e seu guarda, seu administrador e não seu dono. Por outro lado, o Papa, ancorando a sua análise da visão do mundo e as consequências do seu devir, salienta a importância da interligação entre ecologia e a ecoeconomia, em que a terra, respeitada no seu equilíbrio natural e rendibilizada criteriosamente ao serviço de todos e cada um dos homens, serve para construção de um mundo mais justo e fraterno, mais humano e mais socialmente realizado. Por conseguinte, são necessárias novas atitudes que induzam outro olhar para a realidade, uma mudança de paradigma e de abordagem pedagógica, uma forte contenção das ambições desmedidas de alguns – propiciadoras do espezinhamento e exploração dos outros e degradadoras do ambiente –, definição de novas políticas públicas e uma nova perspetiva educacional.
Se os pontífices seus antecessores agregavam a preocupação ecológica à ecoeconomia e à dimensão humana e social, Francisco não deixa também de o fazer. Não obstante, confere-lhe estatuto para reflexão doutrinal autónoma, mas a compaginar interdependências e portadora de uma peculiar espiritualidade que proclama a beleza do mundo por Deus criado qual testemunha cantante da glória divina e a maravilha da operação transformante do homem. Por outro lado, esta espiritualidade, que pressupõe a atitude contemplativa deste mundo fruto do poder criador de Deus e da faculdade apropriadora e transformadora da inteligência e do trabalho do homem, tem de originar a comunhão ôntico-dinâmica do homem com Deus, consigo mesmo, com os outros homens e com o cosmos.
Depois, a realidade do mundo posto por Deus ao serviço de todos e de cada um não pode ser feudo de uns poucos que usam da razão do capricho e da força em detrimento da razão da razão, da razão da dignidade da pessoa humana e da razão do bem comum.
É, finalmente um desafio lançado a todos, em especial a quem detém responsabilidades públicas pela gestão dos povos e dos territórios e em que as religiões têm peculiar papel.
O homem tem que se habituar a ser melhor guarda da Terra para poder ser melhor guarda do seu irmão.

Por isso e para isso, Laudatetur Dominus!

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