A tomada da
cidade marroquina de Ceuta, em 1415, por expedição comandada pelo rei Dom João
I é considerada o momento fundador da nossa expansão ultramarina. Devido à
importância primordial desta conquista, o debate em torno do tema (motivação, causas e consequências)
tem sido intenso na historiografia portuguesa ao longo dos séculos.
Os antecedentes
É, no entanto,
ponto assente a possível integração da conquista de Ceuta numa genealogia de
incursões cristãs no Norte de África ao longo dos séculos anteriores. Essas expedições,
de que são exemplo as incursões dos Normandos da Sicília, no século XII, ou a
expedição Castelhana contra Tetuão, em 1399, baseavam-se no sistema do saque,
destruição de ameaças corsárias e ocupações temporárias de portos, e não propriamente
em ocupações permanentes como a que viria a ocorrer em Ceuta, da parte dos
portugueses.
Para os Reinos
Ibéricos a legitimidade destas incursões militares contra os muçulmanos do
Norte de África advinha não só do mecanismo conflitual multissecular de
reconquista da Península, como do facto de aquela região ter sido ancestral património
da Monarquia Visigótica, de que os reinos cristãos peninsulares se consideravam
herdeiros. Nestes termos, pelo acordo de Sória, em 1291, Castela e Aragão
dividiram entre si o território que lhes caberia conquistar em Marrocos.
Em Portugal, o
primeiro sinal e esboço de efetivo interesse por investidas militares no Norte
de África surgiu ainda no reinado de D. Afonso IV a quem, em 1341, foi
concedida a bula papal de cruzada Gaudemus et exultamus.
Todavia, a concretização do projeto foi sendo adiada mercê da predominante
orientação dos esforços do Reino para os conflitos com Castela – situação que
apenas se alterou em 1411 com o tratado de paz, em Ayllón, entre Portugal e
Castela.
Contudo, a paz
alcançada em Ayllón motivou novos desafios para a Coroa Portuguesa. Por um
lado, a dinastia de Avis precisava de encontrar formas de consagração da sua
legitimidade e de assegurar a sua afirmação política perante a Cristandade. Por
outro, a nobreza, sobretudo a constituída pelos filhos secundogénitos, via a
sua possibilidade de alcançar honras, mercês e proveitos bloqueada pela
conjuntura de paz; e, tornando-se um grupo social inquieto, sentiu a
necessidade de encontrar novos campos de intervenção militar, que não a guerra
com Castela. Perante estas circunstâncias a recuperação dos projetos de
cruzada, com base em conflito contra os muçulmanos, que nunca havia cessado,
tornou-se premente, sobretudo para a nobreza militar. Duas hipóteses de
conquista se apresentavam: o Reino Nasrida de Granada ou o Reino Merínida de
Fez, onde se situava Ceuta. Porém, a conquista de Granada apresentava o
problema de constituir uma intrusão na área de reconquista castelhana, ao passo
que o ataque a Ceuta beneficiava das dificuldades internas que os Merínidas
vinham sofrendo ao longo de décadas. Por outro lado, a cidade tinha a dupla
virtualidade de poder servir de testa-de-ponte para uma eventual conquista do
Reino de Fez e/ou de posto avançado na estratégia de cerco ao Reino de Granada
e do seu isolamento. Ademais, a conquista de Ceuta apresentava a vantagem de
poder vir a ser um local estratégico para o domínio do estreito de Gibraltar,
visando o controlo das rotas comerciais que ligavam o Mediterrâneo à Europa
Ocidental.
Todavia, apesar
de Ceuta ser igualmente um porto recetor do comércio saariano – comércio que
deixou largamente de frequentar a cidade após a conquista portuguesa – o
principal interesse económico da conquista da cidade seria a defesa das rotas
marítimas que cruzavam o estreito
e a das pescas junto à costa atlântica de Marrocos. Assim, os grupos mercantis
portugueses e estrangeiros tinham como vantajosa a conquista da cidade, que
poderia servir de ponto de apoio aos mercadores cristãos e base de combate às
atividades dos corsários muçulmanos.
Por fim, o saque
a obter da conquista de cidade portuária tão rica como Ceuta surgia como um
factor fortemente apelativo, a acrescentar ao reforço da posição política e
diplomática de Portugal face à Santa Sé e ao conjunto da Cristandade (a Res
Publica Christiana), que adviria do sucesso da guerra aos “infiéis”.
O projeto de conquista de Ceuta constituía, deste modo, não só o prolongamento
natural da reconquista do Algarve, como o resultado da conjugação de interesses
na sociedade portuguesa, ao nível político, religioso e económico-social,
germinada no seio da Coroa ao longo de alguns anos, com o apoio dos Infantes.
A expedição
Seguiram-se anos
de debate e de preparação. Depois, foi necessário financiar a expedição, reunir
embarcações e mantimentos e recrutar os efetivos militares. O reconhecimento do
objetivo terá sido levado a cabo por uma missão diplomática enviada à Sicília,
que passou por Ceuta avaliando as suas defesas. Apesar de tudo, o objetivo da
expedição militar foi mantido em segredo até aos últimos momentos.
No verão de
1415, a partida da armada, que se encontrava prestes para zarpar do porto de
Lisboa, passou por um ligeiro atraso devido à morte, a 19 de julho, da Rainha
D. Filipa de Lencastre, acabando por levantar âncora no dia 25 de julho. Embora
se desconheça o número exato de navios e de homens que a compunham, tudo indica
que os valores se cifrariam em dezenas de embarcações e alguns milhares de
soldados. Segundo alguns, seriam entre de 19 000 a 20 000
cavaleiros e soldados portugueses, ingleses, galegos e biscainhos,
embarcados em 212 navios de transporte e vasos de guerra (59 galés, 33 naus e 120 embarcações
pequenas). Na expedição seguia o Rei e a fina
flor da aristocracia portuguesa do século XV, incluindo os príncipes Dom
Duarte, o Príncipe herdeiro, Dom Pedro, Duque de Coimbra, e Dom
Henrique, Duque de Viseu, além do condestável Dom Nuno Álvares Pereira.
A armada rumou
ao Algarve, tendo sido apenas em Lagos, no dia 28 de julho, que o objetivo do
empreendimento foi divulgado. As calmarias ocorridas levaram a que o abandono
do Algarve fosse protelado para os primeiros dias de agosto, a partir de Faro.
Algumas
embarcações, dispersas por forte tempestade, avistaram Ceuta no dia 13 de
agosto, ainda antes de a armada se ter reagrupado em Algeciras, onde se reuniu
o conselho para deliberar sobre a forma de investida contra a cidade. Porém,
avisada do ataque iminente, passou a ter a defesa reforçada por efetivos
militares das vizinhanças, que ainda conseguiram fechar as portas da cidade.
Entretanto, com o desembarque decorrido no dia 21 de agosto, o assalto à praia
de Almina levou facilmente de vencida os defensores. Perante a debandada das
forças inimigas, a vanguarda do exército português, liderada pelos infantes Dom
Duarte, Príncipe herdeiro, e Dom Henrique, Duque de Viseu, prosseguiu na
ofensiva, conseguindo penetrar as defesas da cidade, antes de ser apoiada e reforçada
pelo corpo principal da expedição. Após algumas horas de combate nas ruas, a
cidade foi controlada pelos atacantes e o castelo abandonado sem luta pelos
defensores. No final do dia 21 de agosto de 1415, Ceuta encontrava-se
efetivamente ocupada pelas forças portuguesas. E, segundo Azurara,
na manhã de 22, consolidada que estava a conquista, foi
pedido a Dom João Vasques de Almada que hasteasse a bandeira de Ceuta,
idêntica à bandeira de Lisboa, mas a que foi acrescentado o brasão de
armas do Reino de Portugal ao centro, símbolo que perdura até hoje.
Na semana
seguinte, a 25 de agosto, Dom João I assistiu à sagração da grande Mesquita,
convertida em igreja, e no ritual solene da primeira missa ali celebrada, armou
cavaleiros os infantes da Ínclita
Geração e muitos dos fidalgos que
haviam participado na batalha.
No entanto, a
conquista originou o debate sobre se a cidade deveria ser permanentemente ocupada
ou abandonada após o saque, tendo prevalecido a vontade régia, favorável à
primeira opção, visto que, na ótica joanina, a conquista duma cidade em
território muçulmano era uma forma de consagração da nova dinastia, pelo que
que passou a intitular-se Senhor de Ceuta.
Decidida a
manutenção da praça, a capitania foi entregue, após a recusa de altas figuras
como o condestável Nuno Álvares Pereira, o marechal Gonçalo Vasques Coutinho e Martim
Afonso de Melo, a Dom Pedro de Meneses, conde de Viana, comandando uma
guarnição de 2700 homens, com um grupo de 40 nobres que se voluntariaram para
ficar, a fim de exercitarem a militança. Além destes, ficaram os degredados
para cumprimento da Justiça sem terem de se homiziar no estrangeiro. E os
restantes regressaram a 1 de setembro.
A notícia da
conquista pelo rei de Portugal foi rapidamente divulgada cumprindo, neste
sentido, o seu objetivo de elevação do peso do Reino perante a Santa Sé e os
demais Reinos da Cristandade.
Ceuta
seria a primeira possessão portuguesa em África, ponto estratégico para a
exploração Atlântica que começava a ser efetuada.
Motivos
e causas
As causas e origens da conquista de Ceuta são
múltiplas e não é hoje suficientemente claro qual seja ou quais sejam as causas
que se tornaram determinantes para aquela expedição.
A Causa Religiosa, defendida por
historiadores como Joaquim Bensaúde (1859-1951), faz ver na figura do infante Dom Henrique o
símbolo antonomástico do espírito de cruzada,
o que leva a defender que houve na génese da expansão um zelo religioso. Em vida
do Infante, foram concedidos privilégios de cruzada por três bulas papais: Dum diversas (18 de julho de 1452); Romanus
Pontifex (8 de janeiro de 1455); e Inter caetera (13 de março de 1456).
A Causa
Bélica teria sido a oportunidade de os infantes Dom Duarte, Dom Pedro e Dom
Henrique serem armados cavaleiros por
um feito de guerra.
A Causa
Política, consubstanciada, segundo alguns, como Jaime Cortesão (1884-1960), na ameaça castelhana constante sobre a cidade,
realçava o desejo da antecipação a Castela na
expansão para o norte de África.
E a Causa Económica, com que não são
incompatíveis as anteriores, foi a
defendida por António Sérgio (1883-1969) e, mais recentemente,
por Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011). Pode explicitar-se nos termos seguintes: Ceuta era uma cidade rica e
teria atraído a burguesia
comercial, que queria canalizar
para Lisboa o tráfego do Mediterrâneo ocidental feito por
aquela cidade. Para se informar dos pormenores da cidade e das rotas
comerciais, Dom João I, quando enviou à Sicília dois
embaixadores com o pretexto de pedirem a mão da rainha para o infante Dom
Pedro, induziu a que estes na passagem colhessem todas as informações possíveis
sobre Ceuta.
Assim,
podem sintetizar-se como principais – e não exclusivas – razões da tomada de
Ceuta e sua ocupação durante anos e séculos as seguintes:
Políticas: o
reino de Portugal procurava aumentar sua importância no quadro das monarquias
ibéricas através do estabelecimento de Ceuta (antecipando-se a Castela) como o ponto mais oriental da reconquista
cristã feita por Portugal no Norte da África.
Religiosas: havia um desejo de expansão da fé
cristã através do incremento de territórios onde o cristianismo poderia ser
implantado, com o aval da Santa Sé.
Sociais: as
classes mais abastadas tinham vários interesses nesta conquista: a nobreza
buscava novas terras, honras e rendas; o clero, na alinhamento da opção régia,
desejava expandir a fé cristã; e a burguesia estava à procura de novos produtos
e mercados.
Geoeconómicas: a
posição geográfica de Ceuta permitiria controlar a entrada e saída dos navios
vindos do Atlântico para o Mediterrâneo e vice-versa através do estreito de Gibraltar,
de modo que a costa algarvia parasse de ser atacada por piratas oriundos daquela
cidade muçulmana ou nela ou baseados.
Económicas: Portugal sofria com a falta de
diversos produtos como trigo, ouro, prata, e especiarias e a cidade estava
situada numa zona fértil, apropriada para a produção de cereais. Por outro
lado, a conquista de Ceuta significaria para o Reino o controlo sobre uma
cidade a que afluíam os produtos orientais vindos da Índia pelas rotas
caravaneiras que traziam as especiarias, bem como o ouro da zona a sul do
deserto do Sara.
Consequências
e efeitos
As
expectativas conexas com os benefícios da conquista de Ceuta não se confirmaram
a longo prazo. Na ótica económica, o domínio português na cidade revelou-se um
completo fracasso. As rotas comerciais que chegavam a Ceuta ou por ali passavam
foram desviadas para outras localidades. Além disso, o permanente estado de
guerra comprometia o cultivo dos campos e a produção de cereais no continente
português. Os muçulmanos sequestraram o Infante Dom Fernando (considerado santo a partir da
concretização daí) e outras pessoas, para exigir Ceuta de
volta, mas Portugal não cedeu e os prisioneiros acabaram por ser torturados e
morrer.
A
situação agravou-se em razão das elevadas despesas necessárias à manutenção desta
praça africana. Os membros da Corte chegaram a cogitar o abandono da
cidade. O Infante Dom Pedro, em carta ao irmão, afirmaria mais tarde: Ceuta
é um grande sorvedouro de gente e dinheiro.
***
Ante o
fracasso da tomada de Ceuta, os portugueses tomaram outra via: as das viagens marítimas, pelas quais procuraram
atingir diretamente as zonas produtoras de ouro e, depois, as das especiarias.
Ficou suspensa a política de conquista
com que se iniciou a expansão (que era
mais do agrado da nobreza para fazer sentir o seu valor militar),
passando-se à política de descoberta, mais de cariz comercial. A iniciativa das
primeiras viagens coube ao Infante Dom Henrique, mestre da Ordem de Cristo, e
foi uma fase fundamental das grandes descobertas que se fizeram após a sua
morte.
Estas primeiras
viagens foram realizadas navegando junto à costa (navegação com terra à vista), não
postulando grandes recurso se conhecimentos. Mas, à medida que se navegava mais
para sul, os portugueses tiveram de aprofundar os conhecimentos científicos e técnicos,
passando a fazer a navegação astronómica.
Assim, o
malogro económico de Ceuta deu lugar a um novo rumo da expansão portuguesa pela
sua direção à costa africana pela via atlântica, uma exploração lenta, mas
metódica sob a orientação henriquina. Embora as primeiras viagens não tivessem logrado
espetaculares resultados, levaram ao reconhecimento dos arquipélagos
da Madeira e dos Açores. E, dado
que estes arquipélagos se encontravam desabitados, tornou-se necessário
proceder à sua efetiva colonização, povoando e promovendo
o seu aproveitamento económico, sobretudo através da agricultura. O rei
entregou a maior parte das ilhas ao Infante, que, por sua vez, confiou a sua
colonização a capitães-donatários, normalmente
membros da pequena nobreza que detinham sobre a sua parcela territorial poderes administrativos,
judiciais e militares. Desta forma muitos portugueses e alguns
estrangeiros fixaram-se naqueles arquipélagos fomentando o seu desenvolvimento
económico.
Os marroquinos não
se conformaram e atacaram, embora sem sucesso, a cidade duas vezes, em 1418 e
em 1419. Porém, a sua manutenção constituía um problema logístico: era
necessário enviar suprimentos, armas e munições; a maior parte dos soldados era
recrutada à força, recorrendo-se a criminosos e condenados a quem o rei
comutava a pena caso fossem para Ceuta e ainda à recompensa generosa dos nobres
que ocupavam postos de comando e chefia.
Julgaram
conseguir o êxito da recuperação de Ceuta, quando do desastre português
de Tânger, pedindo como resgate do infante Dom Fernando a cidade de Ceuta,
a que se opôs o Infante Dom Henrique. Mas Dom Fernando faleceu no cativeiro e a
cidade continuou portuguesa (1443). Todavia,
Ceuta teve de se aguentar sozinha, durante 43 anos, até a sua posição chegar à
consolidação com a tomada de Alcácer Seguer (1458), Arzila e Tânger
(1471). Foi
reconhecida como possessão portuguesa pelos tratados de Alcáçovas (1479) e de Tordesilhas (1494).
Quando
da Dinastia Filipina, Ceuta manteve a administração portuguesa, bem como Tânger
e Marzagão. Todavia, quando da Restauração, não aclamou o Duque de
Bragança, como rei de Portugal, mantendo-se espanhola. A situação foi
oficializada em 1668 com a assinatura do Tratado de Lisboa entre os
dois países, que pôs fim à guerra da Restauração.
E, se
não foi um êxito económico a sua conquista, pretextou a expansão em maior
escala.
Referências
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Marques, A. H. (2015). Breve História
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Thomaz, Luís (1994). “Expansão
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Thomaz, Luís (1994). “A evolução da
política expansionista portuguesa na primeira metade de Quatrocentos” in De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, pgs.
43-147.
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