À pergunta d’ O Diabo, de 23 de junho, “Como comenta a encíclica papal sobre o
Ambiente?”, João Tito de Morais, professor de Direito na Universidade
Lusófona, responde, entre outras, com palavras como as seguintes: “… é com
enorme desconforto que afirmo que este [o Papa Francisco] comete mais um trágico erro político e
comunicacional”. E aduz três argumentos que parecem sensatos: não é para tratar destes assuntos que existe
a Igreja (e muito menos o Papa); além de não ter autoridade
em matéria científica e política, “não possui competência para se pronunciar
sobre o assunto”; ainda que a tivesse, “este não é um tema que nós, católicos,
sentimos urgência em ouvi-lo pronunciar”; e “porque acaba por comprometer
política e mediaticamente a Igreja numa posição para a qual não há nenhuma
evidência científica que a suporte”.
***
Ora, apesar da aparente sensatez,
a posição deste homem que ensina Direito e presumivelmente católico (nós, católicos) revela
distração em relação ao ser, missão e história da Igreja.
Primeiro, a Igreja é sinal e
fator da comunhão dos homens entre si, com Deus e com o mundo; testemunha da
comunhão misteriosa entre Pai, Filho e Espírito Santo; instrumento da salvação
oferecida a todos e a cada um; corpo de Cristo e povo de Deus. Por isso,
marcada pela unidade na diversidade. Ora, se quer ser portadora de uma mensagem
espiritual para os homens – e esta constitui a sua missão fundamental – tem de
os conhecer e a acompanhar nos seus dramas e sofrimentos, anseios e
preocupações, tal como nas alegrias e satisfações, progresso e bem-estar. Sendo
assim, permito-me perguntar que temas e assuntos possam ficar fora do
tratamento discursivo da Igreja e do Papa. A atitude e o discurso humanista de
Terêncio “homo sum ac nil humani alienum
a me puto” (sou homem: e
nada do que é humano julgo estranho a mim) assumidos pela Igreja fazem-lhe
dizer:
As alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no
seu coração. Porque a
sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo
Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a
mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja
sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história. (GS,1).
Por outro lado, a gestão dos
recursos da Terra, a condução política dos povos, a práxis económica e social,
os fenómenos bélicos, as atitudes e comportamentos das pessoas, a não
observância do preceito fundamental do destino universal dos bens, a gestão da
propriedade (negligente ou
avara, egoísta e despida da sua função social) e o ataque indiscriminado
e injustificado à sua privacidade – tudo isto levanta problemas éticos e
atropelos tanto ao código sinaítico como ao código das bem-aventuranças. Sendo
assim, embora a Igreja não tenha um projeto próprio de governo, de organização
social, de sistema económico ou não seja uma academia nem mesmo uma ONG, não
pode deixar de intervir e pronunciar-se sobre as diversas matérias que
preocupam e afligem os homens ou em que eles se põem a morderem-se e a
matarem-se uns aos outros (cf Gl
5,15) – tenha ou não a sua intervenção ou pronunciamento conotação
política, social ou económica, científica ou ética.
Se efetivamente a Igreja, através
dos seus servidores, se coloca a pregar o Evangelho junto de populações que não
dispõem de condições de vida condigna, ela não pode deixar de socorrer os
doentes, de dar de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, de vestir
os nus, de dar pousada aos peregrinos, de assistir aos enfermos e presos (vd Mt 25,34-36.37-40.42-45). Se
não há água potável, deve promover a abertura de poços; se não há estruturas de
saúde e de educação, deve erigir hospitais e postos sanitários e fundar escolas;
e analogamente rasgar caminhos, construir pontes, construir habitações, etc.
Isto, porque não se prega a estômagos vazios, não se evangeliza sem zelar pela
promoção humana e social. Ademais, não basta prestar assistência pontual na
falta de recursos ou em situação de catástrofe natural ou provocada pelas mãos
do homem (terramoto, tufão,
guerra, má experiência técnica e/ou científica, peste, epidemia, incêndio, etc.),
mas, na lógica de que mais vale ensinar a pescar que dar o peixe, deve ajudar a
criar estruturas e acompanhar a sua organização e seu funcionamento enquanto necessário.
Tudo isto implica a mobilização de conhecimentos científicos e tecnológicos,
recursos económicos e sociais, meios artesanais e técnicos, atitudes amadoras e
profissionais. E, se os meios e recursos não existem ou não existem em suficiência,
cabe à Igreja ajudar a inventá-los e a disponibilizá-los. Faça-se a modos de
parêntesis a clarificação de que a Igreja não são exclusivamente os padres,
bispos e o Papa (estes são-no
em menor número); o grande número dos membros da Igreja são os leigos,
os religiosos e religiosas (estes
só por serem religiosos não são clérigos). Ora, admitindo que só os
leigos se empenhariam nas atividades de promoção humana e social, económica e
científica, cultural e artística, antropológica e política, não seria decente
que o seu bispo e o seu Papa se revelassem indiferentes à sua ação e não
fizessem o discurso de animação e até de orientação. Depois, política não pode
confundir-se restritivamente com a política partidária enquanto projeto de
conquista e manutenção do poder ou oposição sistemática a ele.
***
Seria lamentável que os católicos
não sentissem necessário, conveniente ou oportuno que o Papa ou os bispos
falassem de temas atinentes à falta de ética da parte daqueles poucos que,
mercê da ambição desmedida, se apoderam avara e hedonisticamente dos recursos
da Terra, espezinhando, escravizando e explorando a seu bel-prazer os pobres,
as mulheres, as crianças (a
economia que mata), fazem do jogo financeiro imoral e destruidor o eixo
em torno do qual gravita o poder político e o poder económico. Não creio que a
maior parte dos católicos se sinta não incomodada com as situações que o Papa
denuncia com clareza e firmeza. E aqui, entra o problema da ecologia, integrado
no sistema da ecoeconomia. É preciso que os homens não perturbem
desnecessariamente o equilíbrio dos elementos existentes na Terra, seja a nível
do ar, da terra e do mar, seja a nível da água, do fogo e dos resíduos, seja ao
nível das energias fósseis, das florestas, dos prados e das reservas naturais,
dos minérios, rochas, espécies vegetais e animais, distribuição da população.
Não digam que a dizimação de populações, as ondas de refugiados, a exploração
de migrantes, as guerras, os atentados às condições climatéricas não merecem
uma palavra nítida, firme e solidária da autoridade da Igreja. Ora, tal palavra
só fica robustecida se vier fundada na ciência disponível.
Também é preciso anotar que a
ciência não contém a explicação de tudo; precisamos de outros modos de
conhecimento, designadamente a filosofia e a teologia. Também a ciência no
estado atual não está chegada a soluções científicas últimas e definitivas, mas
é temerário não reconhecer os esforços científicos e tecnológicos e não
utilizar a ciência disponível e os recursos técnicos e tecnológicos
disponibilizados ao serviço do homem e da comunidade.
Também a comunicação tem de ter
em linha de conta a dimensão tipicamente humana e, nesse sentido, sem cair em
automatismos e servidões psicológicas e socais, colocar ao seu serviço todos os
instrumentos e meios que a inteligência humana colocou ao dispor do homem e da
sociedade. Neste sentido, a Igreja e os Pontífices não deixaram nem deixam os
créditos comunicacionais por mãos alheias. E o estilo do Papa Francisco tem-se
revelado peculiar, quer nos momentos mais formais quer nas realizações mais
coloquiais. Pena é que, por vezes, alguns dos ouvintes se fixem apalermadamente
em pormenores de que possam não gostar. Mas a preocupação do Pontífice tem sido
a profundidade, a clareza, a eficácia. E estas, por vezes, requerem a
solenidade; outras vezes, postulam a informalidade.
Não podemos outrossim esquecer que
o Papa, enquanto Chefe de Estado, tem ele, com seus serviços (e a bem da Humanidade),
responsabilidades protocolares e diplomáticas (e porque não políticas?) junto dos outros Estados.
***
Quanto à encíclica Laudato Si’, diga-se que o Papa parte da
atitude franciscana de contemplação da Natureza enquanto criatura de Deus e
espelho da glória e ternura do Altíssimo,
Omnipotente e Bom Senhor e induz a postura de comunhão fraterna com a
Natureza. Mergulha na missão que o Criador confiou ao homem de dominar sobre a
terra, ar e mar, com as suas pedras, plantas e animais (e não sobre o outro homem), não
como dono, mas como administrador e guarda. E esta missão de guarda estende-se à
guarda sadia e solidária do irmão (cf Gn 1,28-29; 4,9-10).
E a encíclica trata expressamente
da ecologia, mas na sua perspetiva totalizante, integral e integradora. Tem em
conta as diversas reflexões teológicas e/ou filosóficas e mobiliza os
conhecimentos científicos disponíveis (que nem todos aceitam por ferirem os seus interesses).
Depois, o documento põe em paralelo os atropelos económicos e os atropelos
ecológicos (quais deles os mais
graves!), propondo a proporcional responsabilização humana, sobretudo
para com os gravemente lesados pela ganância de outrem. E a perspetiva de fundo
é a decorrente da sadia visão teológica da realidade e do olhar que Deus tem do
mundo e da posição responsável do homem sobre a Terra.
Finalmente, o Papa lança o apelo
à mudança de paradigma em relação à Casa
Comum, uma nova atitude, uma outra perspetiva educacional e enuncia a
sugestão de algumas medidas, terminando com duas propostas de oração. Não digam
que fica mal ao Papa rezar e fazer rezar!
***
No atinente à História da Igreja
(de luzes e sombras) e à intervenção da Igreja na
História, sugiro, sem mais delongas:
. A consulta do site do Vaticano.
A Santa Sé tem seis academias – a Academia das Ciências Sociais; a Academia
para a Vida; a Academia S. Tomás de Aquino; a Academia de Teologia; a Academia
Mariana Internacional; a Academia de Belas Artes; a Academia Romana de
Arqueologia; a Academia Cultorum Matyrum;
a Academia Eclesiástica; e a Pontifícia Academia da Latinidade. Tem dois comités:
o das Ciências Históricas; e o dos Congressos Eucarísticos Internacionais. Dos
Pontifícios Conselhos, destaco o da Cultura e o das Comunicações Sociais. Não
se esqueçam: a Biblioteca, a Tipografia Poliglota, os museus, os arquivos, o Osservatore Romano, a Sala de Imprensa,
a Rádio Vaticano, o Centro Televisivo, o Centro Internet e as diversas
Universidades (pontifícias e
católicas) por todo o mundo.
. A leitura ou a releitura do
livro O que a civilização ocidental deve
à Igreja Católica, de Thomas E. Woods, Jr (2009, Aletheia Editores, trad. Maria José Figueiredo).
. A Leitura ou a releitura de uma
obra atualizada de História da Igreja, vg História
da Igreja, 3 vol, de Carlos Verdete (2009, Lisboa: Paulus).
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