Vêm as considerações seguintes a
propósito de hoje, 30 de junho, ocorrer a celebração da memória litúrgica dos
primeiros santos mártires da Igreja de Roma, logo a seguir à solenidade do
martírio dos apóstolos Pedro e Paulo (a 29), que, por sua vez, foi precedida da memória de Santo Ireneu
(a 28), bispo e mártir, discípulo de São Policarpo de Esmirna.
Com efeito, a primeira
perseguição em Roma contra a Igreja, desencadeada pelo imperador Nero, após o incêndio
da Cidade no ano 64, levou muitos cristãos ao martírio, ao que se sabe, com
atrozes tormentos. Segundo a referência que lhe faz a edição portuguesa da Liturgia das Horas (1998), o facto é atestado por
Tácito, escritor romano pagão, em Annales
15, 44, e por São Clemente, bispo de Roma, na sua Epístola aos Coríntios (cap 5-6).
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A palavra mártir não era exclusiva
das religiões. No grego, disse-se μάρτυς, ρoς (masculino ou feminino) a significar “testemunha”. Também existia
o vocábulo μάρτυρoς, oυ (masculino), com o mesmo significado. E a ação da
testemunha dizia-se μάρτυριoν, ίoυ (neutro,
a significar testemunho).
Assim, a testemunha é aquele homem ou aquela mulher que,
tendo visto e ouvido (presenciado) qualquer acontecimento ou ocorrência,
declara o que viu e ouviu com toda a verdade e objetividade, em juízo e fora
dele – o que, muitas vezes, levava a testemunha à morte. Por vezes, o testemunho
baseava-se não naquilo que foi visto, mas na convicção formada a partir do ensinamento
de pessoas fidedignas. Por exemplo, Sócrates deu a vida pelas convicções que
professava em torno de ideais que descobriu, acusado de corromper a juventude.
Daqui, é fácil de perceber como o martírio passou ao campo
semântico da religião, significando a pessoa que se submeteu ao sofrimento que
lhe foi infligido pela sua fé ou pela defesa de valores morais indeclináveis,
como a fé em Deus e no seu Cristo, a fé na Ressurreição, a defesa da virgindade
ou a não revelação do segredo presbiteral da confissão sacramental.
Assim, o latim, sobretudo o latim eclesiástico, estabeleceu
o uso da palavra martyr, iris, com o significado
de mártir ou testemunha no sentido religioso, e a palavra martyrium, ii, com os significados de martírio (sofrimento), sepultura de mártir, templo sob a
invocação de um mártir.
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O Antigo Testamento já refere,
por motivos religiosos, o martírio de Eleázar (cf 2Mac 8,18ss) e o dos sete irmãos macabeus por todo
o cap 7 do segundo livro dos Macabeus. Por outro lado, são recorrentes a
passagens em que se refere o testemunho que os profetas dão do nome de Deus
como testemunhas convictas e inspiradas no oráculo do Senhor: vd, por exemplo, Jr
29,23; Mq 1,2; Ml 3,5. Porém, quem deve dar testemunho de Deus é sobretudo o
Seu Povo (vd Is 43,9-10; 44,8;
55,4; Ez 20,1-31).
Jesus, a quem alguns escritores
chamaram o Mártir do Gólgota, é, com o Espírito Santo, a grande testemunha do Pai
(vd, por exemplo, Jo 5,31-40;
8,12-14; 13,20; 15,26; 18,37; 1Tm 6,13; 1Jo 5,6-8; Ap 1,5). E, no
seguimento de Jesus, os cristãos, que são os seus discípulos, devem ser
testemunhas Dele e do Pai (vd,
por exemplo, Lc 24,48; At 1,8.21-22; 2,32; 10,41).
O martírio é assumido como
testemunho supremo do reino de Deus– vd, per exemplo, At 7,1-45; Ap, 2,13; 6,9.
Do ponto de
vista cristão, no contexto do Novo
Testamento e da História da Igreja, pode-se dizer que “mártir” é
aquele ou aquela que preferiu morrer a renunciar à sua fé, por defender a verdade
consubstanciada na Palavra de Deus, entregando a própria vida para este fim,
para que a essência da verdade seja preservada e a sua força seja assumida como
salvação. Por isso, Tertuliano não teve pejo em afirmar que “o sangue dos
mártires é semente de cristãos” (sanguis martyrum semen christianorum).
Na doutrina
católica, chama-se “batismo de sangue” ao martírio daquele que morre pela fé
antes de ter sido batizado. Assim, os Santos Inocentes, as crianças que foram
mortas em Belém sob as ordens de Herodes, o Grande, embora não tenham sido
batizados na água, diz-se que receberam o batismo de sangue – equivalente ao
batismo sacramental – porque foram mortas no lugar de Jesus Cristo e por causa Dele. Estes são
considerados os primeiros mártires do
cristianismo, ainda antes da morte de Cristo na cruz. A Igreja Católica reconhece como
válido o chamado batismo de sangue quando não pôde ocorrer o batismo sacramental.
Depois da
morte de Cristo, o primeiro mártir foi o diácono Estêvão, sendo por isso,
considerado o protomártir (leia-se o cap. 7 dos Atos dos Apóstolos). Perseguido até à morte, entregou o seu espírito ao
senhor Jesus (cf At 7,59) e pediu ao Senhor que não contasse
este pecado aos seus algozes (cf At 7,60).
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Fora da Palestina,
os primeiros santos mártires da Igreja de Roma inauguraram uma série interminável
de martírios em todos os séculos e onde o nome de Jesus direta ou indiretamente
incomode os poderes políticos, económicos, financeiros e militares.
Hoje, conforme
lamenta o Papa, já não se olha ao ser católico para aumentar mais do que nunca
as ondas dos martírios; basta ser cristão para poder sofrer o martírio, nalguns
casos, basta professar uma qualquer religião.
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Por analogia com a
religião, no decorrer da
História, a palavra mártir e a palavra
martírio ganharam também outros sentidos,
como a morte patriótica pela liberdade,
a independência ou a autonomia de um povo, por um
ideal social ou político ou
até mesmo numa guerra, bem como o
sofrimento discriminação, da sobrecarga se trabalhos, da escravidão, da fome ou
das doenças incuráveis e extremamente dolorosas.
É preciso
concitar esforços para que todas as formas religiosas ou laicas de martírio
sejam abolidas da face da Terra.
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