O n.º 2 do art.º 32.º da Constituição
da República Portuguesa (CRP) estabelece:
“Todo o arguido se presume inocente até ao
trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais
curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
O princípio da presunção de
inocência foi enunciado, a 10 de dezembro de 1948, no n.º 1 do art.º 11.º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem (DUDH),
que estabelece:
“Toda a pessoa acusada de um ato delituoso
se presume inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no
decurso de um processo público em que todas as sua garantias necessárias de
defesa lhe sejam concedidas”.
Foi acolhido no n.º 2 do art.º
14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em 1976, nos termos
seguintes:
“Qualquer pessoa acusada de infração
penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
legalmente estabelecida”.
Também o n.º 2 do art.º 6.º da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), de 1950, o enuncia:
“Qualquer pessoa acusada de uma infracção
presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente
provada”.
Foi, efetivamente, a CRP o nosso diploma
constitucional que mais atenção dedicou ao processo penal, no contexto da história
constitucional portuguesa, com a formulação de dez artigos referentes à
tramitação processual penal, dos quais se destaca o princípio da presunção da
inocência no n.º 2 do art.º 32.º
Resulta daqui que só através da
produção de prova inequívoca por parte da entidade acusadora se pode produzir
sentença acusatória contra o arguido, acompanhada da proposta de uma
determinada sanção penal (por exemplo, pena de prisão, pena de multa…), inferindo-se que,
estando o arguido resguardado pela presunção da sua inocência, assume – ou pode
assumir – uma posição passiva ou quase de abstenção probatória já que não pode
recair sobre ele um ónus probatório, sendo que, no caso da não comprovação de
qualquer facto relevante para o efeito de aplicação de sanção ou da sua
demonstração incompleta, deve impreterivelmente resolver-se a favor do arguido,
observando-se o velho princípio in dubio
pro reo.
Compete à entidade acusadora (que, no caso português, é o Ministério
Público) o ónus/dever de provar, sem margem para dúvidas, – prova que
o tribunal verificará – a prática do crime de que o arguido é acusado,
sustentando, portanto, as respetivas acusações trazidas a tribunal. Sendo o
princípio in dubio pro reo como que
uma consagração efetiva do principio da presunção de inocência, em qualquer
situação de “non liquet” na questão da prova, tem de ser sempre valorada a
posição em favor do arguido. Por conseguinte, sujeitar o arguido a esforço
probatório sub iudice na tentativa de
ilidir ou contrariar a acusação feita contra si configuraria, no fundo, a
consagração do contrário princípio de presunção de responsabilidade, o oposto
inaceitável do princípio da presunção de inocência consagrado constitucionalmente
e nos normativos internacionais, e imposto como medida última de tratamento
processual a outorgar ao arguido, bem como um preceito fundamental a atender na
repartição do ónus da prova, em sede de processo penal (que impende, como se disse, sobre a entidade acusadora
ou mesmo sobre o próprio tribunal, segundo um principio de investigação que
assiste ao próprio juiz). Daí que haja efetivamente uma relação
intrínseca entre o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo.
A integração do princípio da
presunção de inocência como direito fundamental na CRP aconteceu logo em 1976,
sendo esta a nossa primeira lei fundamental a dedicar mais atenção ao direito processual
penal e à previsão dum conjunto de garantias fundamentais, mormente em relação
à posição do arguido, francamente mais fragilizada no contexto processual.
Jorge Miranda (cf Miranda, 2000)
preconiza uma distribuição sistemática dos direitos fundamentais presentes na
CRP mais repartida entre os direitos fundamentais do indivíduo e os direitos
fundamentais institucionais. Esta ideia parece estar em consonância com a enunciada
por Figueiredo Dias (cf Dias,
1974) com a designação de direitos fundamentais procedimentais. É um
grupo específico de direitos que decorre do status
activus processualis do cidadão, pelo qual, em consequência do seu status activae civitatis, o arguido pode
ser chamado a colaborar ativamente na busca da verdade, embora no escrupuloso e
integral respeito da sua vontade da parte de outrem. O Estado obriga-se, por um
lado, a garantir uma esfera independente, individual e livre de qualquer
influência externa a todo e qualquer cidadão, garantindo todo um conjunto de
direitos fundamentais cívicos, sociais e políticos, conciliando-se assim o exercício
pleno e soberano do seu ius imperii com
a proteção de valores elementares inerentes a toda a sociedade democrática, que
se baseia na liberdade e dignidade humanas, valores impostos
constitucionalmente. Daí que o status
activae civitatis ou o status activus
processualis obrigue à instituição de meios organizatórios de realização e
procedimentos adequados e equitativos para a plena efetivação e realização dos
direitos fundamentais previstos na CRP. Não basta, pois, a simples enunciação
formal de princípios, direitos e garantias fundamentais; é outrossim necessário
institucionalizar instrumentos de efetiva realização e materialização desses
direitos e garantir a sua plena realização e funcionamento em situações de tentação
de maior ingerência na esfera jurídica do cidadão, como acontece aquando da
submissão de alguém a processo público de julgamento, em que estão em jogo a
compressão de certos direitos e liberdades fundamentais do arguido. Por
consequência, o art.º 32.º da CRP, ao consagrar, entre outros, o princípio da
presunção de inocência, é parte parte integrante dum conjunto de direitos
fundamentais procedimentais, que estão conexos com todo e qualquer procedimento
público e estadual que resulte na emanação duma decisão ou sentença por um
qualquer órgão público e que possa, de alguma forma, restringir os direitos
fundamentais do cidadão.
Em síntese, os direitos fundamentais
procedimentais, de que faz parte a referida norma constitucional, não são mais
do que recursos ou armas ao dispor do indivíduo para garantir a imparcialidade,
a objetividade e a legalidade de todo e qualquer procedimento público e oficial
movido contra si, de modo que ele possa participar ativamente nesse mesmo
processo, podendo assim livremente intervir na tramitação do mesmo e, em
resultado disso, influenciar positivamente o seu desfecho.
Ora, tratando-se de verdadeiro princípio
de índole constitucional, beneficia igualmente do regime dos artigos 17.º e 18.º
da CRP, que implica tanto a aplicação direta e imediata do regime a entidades
públicas e privadas (art.º 18.º
n.º 1), como beneficia do regime constitucional da contração e limitação
dos direitos constitucionais face a outros de igual valor, em situações de
colisão ou conflito, que deverá reger-se pelos três princípios elementares: da
necessidade, adequação e proporcionalidade.
***
A presunção de
inocência significa, pois, que toda a pessoa é considerada inocente até ter
sido condenada por sentença transitada em julgado – isto é, sentença ou acórdão
de que já não se pode recorrer – num processo penal. É um princípio fundamental no nosso direito
penal, como no de muitos Estados de direito democrático. Não se esgota no
processo propriamente dito: observa-se na fase de investigação e na de
instrução; estende‑se à organização dos tribunais e à execução de penas; e deve
ser tido em conta na determinação das medidas de coação da liberdade que forem
necessárias. Sendo difícil identificar todos os direitos e garantias que
decorrem deste princípio, podem referir‑se alguns dos mais relevantes.
O
tribunal só pode condenar uma pessoa pela prática de um crime se ficar indubitável
e inequivocamente provado, pelo grau de prova mais exigente, que ela o cometeu.
É a exigência dos velhos princípios: nulla
poena sine culpa; nulla culpa sine
lege; factum non praesumitur, sed
probatur; e auctori incumbit facti probatio.
Aliás, há
que ter em conta o estabelecido no n.º e do art.º 11.º da DUDH:
Ninguém será condenado por ações ou
omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face
do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena
mais grave do que aquela que era aplicável no momento em que o ato delituoso
foi cometido.
A
presunção da inocência obriga o juiz a decidir a favor do arguido sempre que, depois de examinadas todas as
provas, subsista no seu espírito uma dúvida razoável sobre a verificação dos
factos que respeitam à culpabilidade do arguido ou à gravidade da mesma: in dubio standum est pro reo.
O
arguido tem um vasto leque de direitos que usualmente se agrupam num amplo
direito de defesa: estar presente nos atos processuais que lhe
dizem diretamente respeito (o
direito de presença); ser
ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar
qualquer decisão que o afete pessoalmente (o
direito de audição); ser
informado dos factos que lhe são imputados, antes de prestar declarações (o direito à informação); não responder a perguntas feitas sobre os
factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca
deles prestar (direito ao silêncio);
constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor e ser assistido por
ele em todos os atos processuais em que participar (direito de acesso ao direito e à tutela); recorrer das decisões que lhe forem
desfavoráveis (direito
de recurso); etc.
Por
fim, o arguido tem o direito de aguardar em liberdade tanto
o desenvolvimento do processo e o julgamento como o resultado dos recursos ordinários que haja
interposto, mesmo depois de condenado em prisão efetiva por tribunais de grau
inferior, sem prejuízo das medidas de coação que for necessário aplicar.
Assim,
as medidas de coação da liberdade do arguido terão de revestir a natureza de necessidade
e excecionalidade, não podendo ser determinada uma medida mais gravosa quando
outra menos gravosa se afigurar suficiente para assegurar a tranquilidade
processual.
Para que
possam ser aplicadas as medidas de coação, com exceção do termo de identidade e
residência (art.º 196.º do CPP – código do processo penal), tem de verificar-se pelo menos uma das seguintes
circunstâncias:
Fuga ou
perigo de fuga;
Perigo
de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e,
nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
Perigo,
em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do
arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a
ordem e a tranquilidade públicas. (cf art.º 204.º do CPP).
Por seu
turno, o art.º 202.º do CPP estabelece que, se considerar inadequadas ou
insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz
pode impor ao arguido a prisão preventiva (transcreve-se
o conteúdo essencial)
- Quando
houver fortes indícios de prática de crime doloso:
. Punível
com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
. Que
corresponda a criminalidade violenta;
. De
terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com
pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
. De
ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado,
burla informática e nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafação de
documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de
prisão de máximo superior a 3 anos;
. De
detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou
substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do
regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de
máximo superior a 3 anos;
- Quando
se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em
território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição
ou de expulsão.
Mostrando-se
que o arguido a sujeitar a prisão preventiva sofre de anomalia psíquica, o juiz
pode impor, ouvido o defensor e, sempre que possível, um familiar, que, enquanto
a anomalia persistir, em vez da prisão tenha lugar internamento preventivo em
hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, adotando as
cautelas necessárias para prevenir os perigos de fuga e de cometimento de novos
crimes.
Resta esclarecer
que as demais medidas que podem ser aplicadas, verificados os requisito gerais enunciados
no art.º 204.º são: a prestação de caução (art.º 197.º); a obrigação de apresentação periódica (art.º 198.º); a suspensão do
exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos (art.º 199.º); a proibição e
imposição de condutas (art.º 200.º);
e a obrigação de permanência na habitação (art.º 201.º).
***
Tendo em conta o exposto, em
termos da teoria formulada e da legislação vigente, como é que os poderes públicos,
nomeadamente o poder judiciário, podem pretender que o cidadão acredite na presunção
de inocência dos arguidos, se quase diariamente dão, emprestam ou vendem –
contrariando o dito segredo de justiça – à Comunicação Social ou deixam fugir
para ela informação viral sobre os processos que levam a opinião pública, não à
presunção da inocência, mas sobretudo à presunção da culpa?
Depois, digam-me se, considerando
a CRP e o CPP, não há em Portugal presos preventivos a mais e por tempo
demasiado, mesmo sem considerar o recluso n.º 44 de Évora. Ou será que o
sistema de justiça português, no qual somos “obrigados” a acreditar estará imune
a agendas pessoais, sociais e políticas?
Dizem alguns que o princípio
da presunção da inocência diz respeito aos tribunais e aos decisores judiciários,
que não aos cidadãos. Porém, parece-me que o sistema deveria ser
suficientemente robusto e credível para induzir a opinião pública à adesão aos
princípios do Estado de direito. Ademais, não há princípios que uns tenham de
observar e outros não.
E que dizer da pretensão de
substituir a medida de prisão preventiva pela obrigação de o arguido permanecer
na sua habitação (com pulseira, para aplicação
da qual o arguido teria de dar consentimento), mantendo-se alegadamente o perigo de fuga e de
perturbação do processo? Será que o procurador respetivo só agora acabou de ler
à letra o CPP ou quis, por motivações inconfessadas, passar à opinião pública
uma ideia errónea de suavização da coação?
Referências
Dias, Jorge F. (1974) Direito
Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora.
Miranda, Jorge (2000) Manual
de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora.
Oliveira, Pedro (2002). O
princípio da presunção de inocência em sede do processo de mediação penal.
Porto: UCP, tese de mestrado em direito penal, pdf
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