segunda-feira, 15 de junho de 2015

Quanto à presunção de inocência do arguido...

O n.º 2 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece:
Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

O princípio da presunção de inocência foi enunciado, a 10 de dezembro de 1948, no n.º 1 do art.º 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), que estabelece:
“Toda a pessoa acusada de um ato delituoso se presume inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as sua garantias necessárias de defesa lhe sejam concedidas”.

Foi acolhido no n.º 2 do art.º 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em 1976, nos termos seguintes:
“Qualquer pessoa acusada de infração penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.

 Também o n.º 2 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), de 1950, o enuncia:
“Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.

Foi, efetivamente, a CRP o nosso diploma constitucional que mais atenção dedicou ao processo penal, no contexto da história constitucional portuguesa, com a formulação de dez artigos referentes à tramitação processual penal, dos quais se destaca o princípio da presunção da inocência no n.º 2 do art.º 32.º
Resulta daqui que só através da produção de prova inequívoca por parte da entidade acusadora se pode produzir sentença acusatória contra o arguido, acompanhada da proposta de uma determinada sanção penal (por exemplo, pena de prisão, pena de multa…), inferindo-se que, estando o arguido resguardado pela presunção da sua inocência, assume – ou pode assumir – uma posição passiva ou quase de abstenção probatória já que não pode recair sobre ele um ónus probatório, sendo que, no caso da não comprovação de qualquer facto relevante para o efeito de aplicação de sanção ou da sua demonstração incompleta, deve impreterivelmente resolver-se a favor do arguido, observando-se o velho princípio in dubio pro reo.
Compete à entidade acusadora (que, no caso português, é o Ministério Público) o ónus/dever de provar, sem margem para dúvidas, – prova que o tribunal verificará – a prática do crime de que o arguido é acusado, sustentando, portanto, as respetivas acusações trazidas a tribunal. Sendo o princípio in dubio pro reo como que uma consagração efetiva do principio da presunção de inocência, em qualquer situação de “non liquet” na questão da prova, tem de ser sempre valorada a posição em favor do arguido. Por conseguinte, sujeitar o arguido a esforço probatório sub iudice na tentativa de ilidir ou contrariar a acusação feita contra si configuraria, no fundo, a consagração do contrário princípio de presunção de responsabilidade, o oposto inaceitável do princípio da presunção de inocência consagrado constitucionalmente e nos normativos internacionais, e imposto como medida última de tratamento processual a outorgar ao arguido, bem como um preceito fundamental a atender na repartição do ónus da prova, em sede de processo penal (que impende, como se disse, sobre a entidade acusadora ou mesmo sobre o próprio tribunal, segundo um principio de investigação que assiste ao próprio juiz). Daí que haja efetivamente uma relação intrínseca entre o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo.
A integração do princípio da presunção de inocência como direito fundamental na CRP aconteceu logo em 1976, sendo esta a nossa primeira lei fundamental a dedicar mais atenção ao direito processual penal e à previsão dum conjunto de garantias fundamentais, mormente em relação à posição do arguido, francamente mais fragilizada no contexto processual. Jorge Miranda (cf Miranda, 2000) preconiza uma distribuição sistemática dos direitos fundamentais presentes na CRP mais repartida entre os direitos fundamentais do indivíduo e os direitos fundamentais institucionais. Esta ideia parece estar em consonância com a enunciada por Figueiredo Dias (cf Dias, 1974) com a designação de direitos fundamentais procedimentais. É um grupo específico de direitos que decorre do status activus processualis do cidadão, pelo qual, em consequência do seu status activae civitatis, o arguido pode ser chamado a colaborar ativamente na busca da verdade, embora no escrupuloso e integral respeito da sua vontade da parte de outrem. O Estado obriga-se, por um lado, a garantir uma esfera independente, individual e livre de qualquer influência externa a todo e qualquer cidadão, garantindo todo um conjunto de direitos fundamentais cívicos, sociais e políticos, conciliando-se assim o exercício pleno e soberano do seu ius imperii com a proteção de valores elementares inerentes a toda a sociedade democrática, que se baseia na liberdade e dignidade humanas, valores impostos constitucionalmente. Daí que o status activae civitatis ou o status activus processualis obrigue à instituição de meios organizatórios de realização e procedimentos adequados e equitativos para a plena efetivação e realização dos direitos fundamentais previstos na CRP. Não basta, pois, a simples enunciação formal de princípios, direitos e garantias fundamentais; é outrossim necessário institucionalizar instrumentos de efetiva realização e materialização desses direitos e garantir a sua plena realização e funcionamento em situações de tentação de maior ingerência na esfera jurídica do cidadão, como acontece aquando da submissão de alguém a processo público de julgamento, em que estão em jogo a compressão de certos direitos e liberdades fundamentais do arguido. Por consequência, o art.º 32.º da CRP, ao consagrar, entre outros, o princípio da presunção de inocência, é parte parte integrante dum conjunto de direitos fundamentais procedimentais, que estão conexos com todo e qualquer procedimento público e estadual que resulte na emanação duma decisão ou sentença por um qualquer órgão público e que possa, de alguma forma, restringir os direitos fundamentais do cidadão.
Em síntese, os direitos fundamentais procedimentais, de que faz parte a referida norma constitucional, não são mais do que recursos ou armas ao dispor do indivíduo para garantir a imparcialidade, a objetividade e a legalidade de todo e qualquer procedimento público e oficial movido contra si, de modo que ele possa participar ativamente nesse mesmo processo, podendo assim livremente intervir na tramitação do mesmo e, em resultado disso, influenciar positivamente o seu desfecho.
Ora, tratando-se de verdadeiro princípio de índole constitucional, beneficia igualmente do regime dos artigos 17.º e 18.º da CRP, que implica tanto a aplicação direta e imediata do regime a entidades públicas e privadas (art.º 18.º n.º 1), como beneficia do regime constitucional da contração e limitação dos direitos constitucionais face a outros de igual valor, em situações de colisão ou conflito, que deverá reger-se pelos três princípios elementares: da necessidade, adequação e proporcionalidade.
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A presunção de inocência significa, pois, que toda a pessoa é considerada inocente até ter sido condenada por sentença transitada em julgado – isto é, sentença ou acórdão de que já não se pode recorrer – num processo penal. É um princípio fundamental no nosso direito penal, como no de muitos Estados de direito democrático. Não se esgota no processo propriamente dito: observa-se na fase de investigação e na de instrução; estende‑se à organização dos tribunais e à execução de penas; e deve ser tido em conta na determinação das medidas de coação da liberdade que forem necessárias. Sendo difícil identificar todos os direitos e garantias que decorrem deste princípio, podem referir‑se alguns dos mais relevantes.
O tribunal só pode condenar uma pessoa pela prática de um crime se ficar indubitável e inequivocamente provado, pelo grau de prova mais exigente, que ela o cometeu. É a exigência dos velhos princípios: nulla poena sine culpa; nulla culpa sine lege; factum non praesumitur, sed probatur; e auctori incumbit facti probatio.
Aliás, há que ter em conta o estabelecido no n.º e do art.º 11.º da DUDH:
Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que aquela que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido.

A presunção da inocência obriga o juiz a decidir a favor do arguido sempre que, depois de examinadas todas as provas, subsista no seu espírito uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos que respeitam à culpabilidade do arguido ou à gravidade da mesma: in dubio standum est pro reo.
O arguido tem um vasto leque de direitos que usualmente se agrupam num  amplo direito de defesa: estar presente nos atos processuais que lhe dizem diretamente respeito (o direito de presença); ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que o afete pessoalmente (o direito de audição); ser informado dos factos que lhe são imputados, antes de prestar declarações (o direito à informação); não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar (direito ao silêncio); constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor e ser assistido por ele em todos os atos processuais em que participar (direito de acesso ao direito e à tutela); recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis (direito de recurso); etc.
Por fim, o arguido tem o direito de aguardar em liberdade tanto o desenvolvimento do processo e o julgamento como o resultado dos recursos ordinários que haja interposto, mesmo depois de condenado em prisão efetiva por tribunais de grau inferior, sem prejuízo das medidas de coação que for necessário aplicar.
Assim, as medidas de coação da liberdade do arguido terão de revestir a natureza de necessidade e excecionalidade, não podendo ser determinada uma medida mais gravosa quando outra menos gravosa se afigurar suficiente para assegurar a tranquilidade processual.
Para que possam ser aplicadas as medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência (art.º 196.º do CPP – código do processo penal), tem de verificar-se pelo menos uma das seguintes circunstâncias:
Fuga ou perigo de fuga;
Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. (cf art.º 204.º do CPP).

Por seu turno, o art.º 202.º do CPP estabelece que, se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva (transcreve-se o conteúdo essencial)
- Quando houver fortes indícios de prática de crime doloso: 
. Punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; 
. Que corresponda a criminalidade violenta; 
. De terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; 
. De ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
. De detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; 
- Quando se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão. 
Mostrando-se que o arguido a sujeitar a prisão preventiva sofre de anomalia psíquica, o juiz pode impor, ouvido o defensor e, sempre que possível, um familiar, que, enquanto a anomalia persistir, em vez da prisão tenha lugar internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou outro estabelecimento análogo adequado, adotando as cautelas necessárias para prevenir os perigos de fuga e de cometimento de novos crimes.


Resta esclarecer que as demais medidas que podem ser aplicadas, verificados os requisito gerais enunciados no art.º 204.º são: a prestação de caução (art.º 197.º); a obrigação de apresentação periódica (art.º 198.º); a suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos (art.º 199.º); a proibição e imposição de condutas (art.º 200.º); e a obrigação de permanência na habitação (art.º 201.º).
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Tendo em conta o exposto, em termos da teoria formulada e da legislação vigente, como é que os poderes públicos, nomeadamente o poder judiciário, podem pretender que o cidadão acredite na presunção de inocência dos arguidos, se quase diariamente dão, emprestam ou vendem – contrariando o dito segredo de justiça – à Comunicação Social ou deixam fugir para ela informação viral sobre os processos que levam a opinião pública, não à presunção da inocência, mas sobretudo à presunção da culpa?
Depois, digam-me se, considerando a CRP e o CPP, não há em Portugal presos preventivos a mais e por tempo demasiado, mesmo sem considerar o recluso n.º 44 de Évora. Ou será que o sistema de justiça português, no qual somos “obrigados” a acreditar estará imune a agendas pessoais, sociais e políticas?
Dizem alguns que o princípio da presunção da inocência diz respeito aos tribunais e aos decisores judiciários, que não aos cidadãos. Porém, parece-me que o sistema deveria ser suficientemente robusto e credível para induzir a opinião pública à adesão aos princípios do Estado de direito. Ademais, não há princípios que uns tenham de observar e outros não.
E que dizer da pretensão de substituir a medida de prisão preventiva pela obrigação de o arguido permanecer na sua habitação (com pulseira, para aplicação da qual o arguido teria de dar consentimento), mantendo-se alegadamente o perigo de fuga e de perturbação do processo? Será que o procurador respetivo só agora acabou de ler à letra o CPP ou quis, por motivações inconfessadas, passar à opinião pública uma ideia errónea de suavização da coação?

Referências
Dias, Jorge F. (1974) Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora.
Miranda, Jorge (2000) Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora.

Oliveira, Pedro (2002). O princípio da presunção de inocência em sede do processo de mediação penal. Porto: UCP, tese de mestrado em direito penal, pdf

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