sábado, 27 de junho de 2015

Insensato chamar pessimista e injusto a este Papa

Miguel Angel Belloso não desiste de vociferar recorrentemente a sua bílis hipercapitalista contra o Papa Francisco nas páginas do DN, que, no quadro da liberdade de expressão (não sei se a reconhecerá a todos) dá guarida ao ilustre diretor da revista espanhola Actividad Economica. E, no número de hoje, 26 de junho, não se inibe de o apelidar de Papa pessimista e injusto.
No entanto, para chegar àquela adjetivação insensata e insultuosa, parte de afirmações perfeitamente aceitáveis, como: sempre ter considerado “a fé como um motor de esperança e de alegria”; ter professado “uma grande admiração pelos papas João Paulo II e Bento XVI”; e que nenhum dos dois “deixou de assinalar os grandes desafios que a humanidade enfrenta”, mas que “ambos mostraram uma grande confiança no indivíduo e contemplavam o mundo com o otimismo próprio do crente”.
Talvez fosse mais avisado o colunista ter afirmado que os dois Pontífices mostraram uma grande confiança na pessoa humana e enalteceram a sua dignidade. É que eles não reduziam a pessoa à mera expressão individual, mas olhavam-na na vertente relacional aberta à comunidade (eu-nós), como condição sine qua non da sua realização ante Deus e os homens. E o colunista, se tivesse dedicado mais atenção ao magistério da Igreja, sobretudo a partir de João XXIII, passando por Paulo VI (que, nalguns momentos, indiciou um certo realismo amargo), João Paulo I e os dois que Belloso diz admirar, talvez sem os conhecer bem, e sobretudo os documentos do Concílio Vaticano II.
Não pode o colunista do país vizinho bradar ao vento que Francisco vem fazer uma revolução na Igreja como se acabasse por a deixar em pantanas, como não é legítimo clamar que o Papa argentino a veio encontrar totalmente destroçada, como já ouvi dizer.
Não há dúvida de que a doutrina da Igreja tem acompanhado as transformações – rápidas, profundas, contínuas e universais – por que tem passado o mundo, espelhando quer os sinais de Deus quer os sinais do espírito do mal – trigo e joio, progresso e desumanização. E é com este mundo, em que o Reino de Deus há de ganhar preponderância e levar à vitória total do bem objetivo que a Igreja quer dialogar. Recordem-se, a este nível: as encíclicas Mater et Magistra (sobre a recente evolução da questão social à luz da doutrina cristã) e Pacem in Terris (sobre a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade), de João XXIII; as encíclicas Ecclesiam Suam (sobre os caminhos da Igreja) e Populorum Progressio (sobre o desenvolvimento dos povos), a carta apostólica Octagesima Adveniens (em resposta às necessidades novas de um mundo em transformação) e a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (sobre a evangelização no mundo contemporâneo), de Paulo VI, bem como os documentos conciliares Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo atual) e Apostolicam Actuositatem (sobre o apostolado dos leigos).
João Paulo I, o Papa do sorriso em 30 dias, não teve tempo para escrever: conhecemo-lo pelos discursos, duas homilias, alocuções ao Angelus, uma radiomensagem e catequeses à quarta-feira, tendo dado para perceber um pouco seu perfil.
Em termos da doutrina social, João Paulo II escreveu encíclicas notáveis, como: a Laborem Exercens (sobre o trabalho humano), a Sollicitudo Rei Socialis (sobre o desenvolvimento autêntico do homem e da sociedade) e Centesimus Annus (sobre a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII e alguns acontecimentos da história mais recente); e Bento XVI escreveu a encíclica Caritas in Veritate (sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade). Porém, a posição doutrinal destes dois Pontífices espelha-se ainda mais nas intervenções que fizeram no âmbito das suas viagens apostólicas pelo mundo.
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Dizer pura e simplesmente que João Paulo II combateu o comunismo pela destruição e morte que este tinha provocado onde foi adotado como modelo político sabe a pouco, pois, embora seja verdade, não podemos esquecer que também avisou que “existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã” (Ato de Confiança, Fátima: maio de 1991). E rezou a Maria, em Fátima:
Mostrai que sois Mãe dos pobres, de quem morre de fome e sem assistência na doença, de quem sofre injustiças e afrontas, de quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de quem é oprimido e explorado, de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus. (…) Cessem por todo o lado a violência e a injustiça, cresçam nas famílias a concórdia e a unidade, e entre os povos o respeito e o diálogo; reine sobre a terra a paz, a paz verdadeira! (id et ib).

Também sabemos que Bento XVI partilhava o ideário do seu predecessor e terá até colaborado com ele na formulação da doutrina. No entanto, há que desafiar Belloso a demonstrar documentalmente a afirmação de que Bento XVI, ou qualquer outro Papa, tenha declarado “o capitalismo como o sistema mais capaz de produzir o bem-estar geral apesar das suas imperfeições”. É claro que não subestimam o capital enquanto “trabalho acumulado”, mas acima do capital e do trabalho está a pessoa humana.
É ponto assente que os Sumos Pontífices rejeitaram o marxismo (vd encíclica Divini Redemptoris, de Pio XI – 19 de março de 1937) por duas razões: a perfilhação do materialismo histórico, de feição antiteísta (e não simplesmente ateia); e a experiência histórica que redundou numa forma gritante de totalitarismo, parecida com a do totalitarismo nacionalsocialista (nazi) e do fascismo – que Pio XI condenou pela encíclica Mit Brennender Sorge, de 14 de março de 1937. Todavia, acreditar que os Papas, mesmo Bento XVI ou João Paulo II, tenham renunciado à asserção clara do destino universal dos bens, da primazia do bem comum sobre o interesse individual ou à condenação do lucro desenfreado, espezinhando os demais, ou da petição para que haja pobres para nós podermos exercer a caridade – é má fé ou distração em relação à leitura que se devia fazer da documentação evangélica e eclesial. Nem a licitude da propriedade privada, afirmada como instrumento de realização pessoal e de eficácia produtiva, ou o atentado injustificado contra ela justificam a instauração dum regime político, económico e social, que, à luz de uma liberdade mal entendida, leve à perceção do lucro como objetivo exclusivo ou supremo, à anulação da função social da propriedade (função que muitas empresa têm em conta, até pela criação de fundações ou departamentos de incidência social) ou à desvirtuação do salário justo em compensação do trabalho prestado, em apoio à família e à prevenção (na doença, na incapacidade, na velhice e na falta de emprego). E estas são dimensões sociais claramente preconizadas pelo menos desde Leão XIII. Aliás, o magistério eclesiástico foi bem cáustico na censura ao liberalismo pelos perigos que a liberdade individualista mal entendida por muitos, com total desresponsabilização do Estado (que fazia de mero árbitro) em relação às suas funções nucleares. É óbvio que os primeiros passos da revolução francesa – com o lema da fraternidade, igualdade e liberdade, inteiramente cristão – foram saudados pelo clero, que cedo se desiludiu e foi proscrito, a menos que aderisse à constituição civil do clero.
Ademais, nunca a doutrina da Igreja deixou de, na esteira neotestamentária (vd, por exemplo, Lc 6,24-26 e Tg 5,4) e apontar como pecado que brada ao céu o não pagar o salário (antigamente, dizia-se “jornal”) a quem trabalha.
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Assim, clamar que a nova encíclica, Laudato si’, de Francisco, a sua exortação apostólica (e não carta pastoral – o crítico deve identificar melhor a documentação que põe em causa) Evangelii gaudium, “assim como as suas frequentes intervenções nos foros públicos refletem um pessimismo ontológico perturbador” constituem afirmações insensatas, injustas e iníquas, ao serviço de um comodismo ideológico e do afã insaciável da restauração do status quo, com que se tenta branquear o poderio financeiro sobre o poder político e o escaqueiramento das organizações económicas.
De facto, o Papa não pode ignorar que “o mundo está a desmoronar-se à nossa volta sem que façamos qualquer coisa para o evitar” ou que “os pobres são cada vez mais pobres”, que “as desigualdades são maiores do que nunca e os bens necessários para sustentar a vida humana são cada vez mais inacessíveis” a um número cada vez maior de pessoas, que bradam sem vez e voz por justiça.
Há que desmentir o insigne colunista: estas ideias não são formuladas por capricho de Francisco; são baseadas em dados objetivos. E não é preciso invocar o dogma da fé (que apela ao crer sem ter visto) para esta verificação. Depois, nunca o Papa afirmou que as mudanças climáticas ou as grandes catástrofes naturais são fruto exclusivo da ação do homem, mas, sim, que muitas se devem à negligência do homem e aos seus múltiplos atentados contra a natureza, a qual não costuma perdoar (Deus perdoa sempre, o homem às vezes, a natureza nunca – é o adágio). O homem tem falhado na sua missão de guarda da criação e do seu semelhante. Deixa-se levar para a guerra vencido pelo egoísmo, pelo ódio e pela falta de diálogo. E com a guerra gera a fome, a destruição, a onda de refugiados e o espectro da desertificação, a escravização, o mercantilismo dos valores, o comércio dos corpos, as pestes, a morte, o desequilíbrio da natureza com o esgotamento dos seus recursos. Depois, contra o que escreve Belloso, o crescimento económico, embora em si mesmo não gere ou aumente a degradação ambiental, será a sua causa se configurar um crescimento não disciplinado e incontido, ou seja, não sustentável, não ao serviço do homem, mas de interesses vis.
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Verificar tais dados somente seria pessimismo se não fosse acompanhado da crença de que o homem pode mudar de paradigma, de atitudes, de perspetiva educacional e de comportamentos ou se não se reconhecessem os esforços feitos e a fazer na melhoria das coisas. Mas o Papa tanto acredita, que insta à capacidade e bondade do homem. E, por outro lado, fala abundantemente da bondade e misericórdia de Deus, de que não se pode ter medo e que tem de se testemunhar e anunciar.
Ademais, o Papa não deixa de sublinhar que o cenário do mundo apresenta, por outra via “um incremento colossal da esperança de vida e da saúde como consequência do desenvolvimento económico”, social e humano e que, “em muitas zonas do mundo, o ambiente está a melhorar”. Porém, é falso que isso se deva ao funcionamento da economia de mercado, como quer Belloso, que fala demasiado em liberdade e democracia. Mas que liberdade e que democracia? As de todos e de cada um ou as de alguns apenas? 
É verdade que João Paulo II “sempre abordou os problemas globais com foco e linguagem religiosos” e “pensava que a solução para os males do mundo estava em cultivar as virtudes pessoais e em voltar o olhar para Deus”. Francisco também assim pensa, mas entende que é preciso mais alguma coisa: a política, em que não se deixe à inércia dos mercados ou à soberba da ganância de alguns a condução dos destinos da humanidade e de cada comunidade. É evidentemente necessário que os dirigentes assumam o seu papel executivo (e não apenas cuidem da boa estruturação das leis), que, pautado pelo bem do homem e pelo bem comum, dê lugar a um mundo melhor, mais justo, mais equitativo e mais fraterno. É o homem que deve assumir o governo e não o mercado ou o sistema a governar o homem. Será isto socialismo, marxismo ou outra qualquer coisa “má”?

A religião com que a Igreja deve envolver a sua postura perante o homem e o mundo não pode enclausurar-se nos templos ou nas casas particulares, mas tem de produzir consequências na vida das pessoas e da sociedade ao nível pessoal, profissional, social, económico e político. Qual destas palavras é que Belloso não entenderá?

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