Miguel Angel Belloso não
desiste de vociferar recorrentemente a sua bílis hipercapitalista contra o Papa
Francisco nas páginas do DN, que, no
quadro da liberdade de expressão (não sei se
a reconhecerá a todos) dá guarida ao ilustre diretor da revista espanhola Actividad Economica. E, no número de hoje, 26 de junho, não se
inibe de o apelidar de Papa pessimista e injusto.
No entanto, para chegar àquela adjetivação insensata e insultuosa, parte
de afirmações perfeitamente aceitáveis, como: sempre ter considerado “a fé como
um motor de esperança e de alegria”; ter professado “uma grande admiração pelos papas João Paulo II e Bento
XVI”; e que nenhum dos dois “deixou de assinalar os grandes desafios que a
humanidade enfrenta”, mas que “ambos mostraram uma grande confiança no
indivíduo e contemplavam o mundo com o otimismo próprio do crente”.
Talvez fosse
mais avisado o colunista ter afirmado que os dois Pontífices mostraram uma
grande confiança na pessoa humana e enalteceram a sua dignidade. É que eles não
reduziam a pessoa à mera expressão individual, mas olhavam-na na vertente
relacional aberta à comunidade (eu-nós), como condição sine qua non da
sua realização ante Deus e os homens. E o colunista, se tivesse dedicado mais
atenção ao magistério da Igreja, sobretudo a partir de João XXIII, passando por
Paulo VI (que, nalguns momentos, indiciou um certo realismo amargo), João Paulo I e os dois que Belloso diz admirar,
talvez sem os conhecer bem, e sobretudo os documentos do Concílio Vaticano II.
Não pode o
colunista do país vizinho bradar ao vento que Francisco vem fazer uma revolução
na Igreja como se acabasse por a deixar em pantanas, como não é legítimo clamar
que o Papa argentino a veio encontrar totalmente destroçada, como já ouvi
dizer.
Não há
dúvida de que a doutrina da Igreja tem acompanhado as transformações – rápidas,
profundas, contínuas e universais – por que tem passado o mundo, espelhando
quer os sinais de Deus quer os sinais do espírito do mal – trigo e joio,
progresso e desumanização. E é com este mundo, em que o Reino de Deus há de
ganhar preponderância e levar à vitória total do bem objetivo que a Igreja quer
dialogar. Recordem-se, a este nível: as encíclicas Mater et Magistra (sobre a recente evolução da questão social à luz da
doutrina cristã) e Pacem in Terris (sobre a paz
de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade), de João XXIII; as encíclicas Ecclesiam Suam (sobre os caminhos da Igreja) e Populorum
Progressio (sobre o desenvolvimento dos povos), a carta apostólica Octagesima Adveniens (em resposta às necessidades novas de um mundo em transformação) e a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (sobre a evangelização no mundo
contemporâneo), de Paulo
VI, bem como os documentos conciliares Gaudium
et Spes (sobre a Igreja no mundo atual) e Apostolicam Actuositatem (sobre o
apostolado dos leigos).
João Paulo
I, o Papa do sorriso em 30 dias, não teve tempo para escrever: conhecemo-lo
pelos discursos, duas homilias, alocuções ao Angelus, uma radiomensagem e catequeses à quarta-feira, tendo dado
para perceber um pouco seu perfil.
Em termos da
doutrina social, João Paulo II escreveu encíclicas notáveis, como: a Laborem Exercens (sobre o
trabalho humano), a Sollicitudo Rei Socialis (sobre o desenvolvimento autêntico do homem e da sociedade) e Centesimus
Annus (sobre a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII e alguns
acontecimentos da história mais recente); e Bento
XVI escreveu a encíclica Caritas in
Veritate (sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade). Porém, a posição doutrinal destes dois Pontífices
espelha-se ainda mais nas intervenções que fizeram no âmbito das suas viagens
apostólicas pelo mundo.
***
Dizer pura e
simplesmente que João Paulo II combateu o
comunismo pela destruição e morte que este tinha provocado onde foi adotado
como modelo político sabe a pouco, pois, embora seja verdade, não podemos
esquecer que também avisou que “existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo, que adulando a
liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã” (Ato de
Confiança, Fátima: maio de 1991). E rezou a Maria, em Fátima:
Mostrai que sois Mãe dos pobres, de quem morre de fome e sem assistência na doença, de quem sofre injustiças e afrontas, de quem não encontra trabalho, casa
nem abrigo, de quem é oprimido e
explorado, de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus. (…) Cessem por todo o lado a violência e a
injustiça, cresçam nas famílias a
concórdia e a unidade, e entre os
povos o respeito e o diálogo; reine sobre a terra a paz, a paz verdadeira! (id et ib).
Também
sabemos que Bento XVI partilhava o ideário do seu predecessor e terá até
colaborado com ele na formulação da doutrina. No entanto, há que desafiar
Belloso a demonstrar documentalmente a afirmação de que Bento XVI, ou qualquer
outro Papa, tenha declarado “o capitalismo como o sistema mais capaz de
produzir o bem-estar geral apesar das suas imperfeições”. É claro que não subestimam
o capital enquanto “trabalho acumulado”, mas acima do capital e do trabalho
está a pessoa humana.
É ponto
assente que os Sumos Pontífices rejeitaram o marxismo (vd encíclica
Divini Redemptoris, de Pio XI – 19 de
março de 1937) por duas
razões: a perfilhação do materialismo histórico, de feição antiteísta (e não
simplesmente ateia); e a experiência histórica que redundou numa forma gritante
de totalitarismo, parecida com a do totalitarismo nacionalsocialista (nazi) e do fascismo – que Pio XI condenou pela encíclica Mit
Brennender Sorge,
de 14 de março de 1937. Todavia, acreditar que os Papas, mesmo Bento XVI ou
João Paulo II, tenham renunciado à asserção clara do destino universal dos
bens, da primazia do bem comum sobre o interesse individual ou à condenação do
lucro desenfreado, espezinhando os demais, ou da petição para que haja pobres
para nós podermos exercer a caridade – é má fé ou distração em relação à
leitura que se devia fazer da documentação evangélica e eclesial. Nem a
licitude da propriedade privada, afirmada como instrumento de realização
pessoal e de eficácia produtiva, ou o atentado injustificado contra ela
justificam a instauração dum regime político, económico e social, que, à luz de
uma liberdade mal entendida, leve à perceção do lucro como objetivo exclusivo ou
supremo, à anulação da função social da propriedade (função
que muitas empresa têm em conta, até pela criação de fundações ou departamentos
de incidência social)
ou à desvirtuação do salário justo em compensação do trabalho prestado, em
apoio à família e à prevenção (na doença, na incapacidade, na
velhice e na falta de emprego).
E estas são dimensões sociais claramente preconizadas pelo menos desde Leão
XIII. Aliás, o magistério eclesiástico foi bem cáustico na censura ao
liberalismo pelos perigos que a liberdade individualista mal entendida por muitos,
com total desresponsabilização do Estado (que fazia de mero árbitro) em relação às suas funções
nucleares. É óbvio que os primeiros passos da revolução francesa – com o lema
da fraternidade, igualdade e liberdade, inteiramente cristão – foram saudados
pelo clero, que cedo se desiludiu e foi proscrito, a menos que aderisse à
constituição civil do clero.
Ademais,
nunca a doutrina da Igreja deixou de, na esteira neotestamentária (vd,
por exemplo, Lc 6,24-26 e Tg 5,4)
e apontar como pecado que brada ao céu o não pagar o salário (antigamente,
dizia-se “jornal”) a
quem trabalha.
***
Assim,
clamar que a nova encíclica, Laudato si’,
de Francisco, a sua exortação apostólica (e não carta pastoral – o crítico
deve identificar melhor a documentação que põe em causa) Evangelii
gaudium, “assim como as suas frequentes intervenções nos foros públicos
refletem um pessimismo ontológico perturbador” constituem afirmações
insensatas, injustas e iníquas, ao serviço de um comodismo ideológico e do afã insaciável
da restauração do status quo, com que
se tenta branquear o poderio financeiro sobre o poder político e o
escaqueiramento das organizações económicas.
De facto, o
Papa não pode ignorar que “o mundo está a desmoronar-se à nossa volta sem que
façamos qualquer coisa para o evitar” ou que “os pobres são cada vez mais
pobres”, que “as desigualdades são maiores do que nunca e os bens necessários
para sustentar a vida humana são cada vez mais inacessíveis” a um número cada
vez maior de pessoas, que bradam sem vez e voz por justiça.
Há que
desmentir o insigne colunista: estas ideias não são formuladas por capricho de
Francisco; são baseadas em dados objetivos. E não é preciso invocar o dogma da
fé (que apela ao
crer sem ter visto) para esta
verificação. Depois, nunca o Papa afirmou que as mudanças climáticas ou as
grandes catástrofes naturais são fruto exclusivo da ação do homem, mas, sim,
que muitas se devem à negligência do homem e aos seus múltiplos atentados
contra a natureza, a qual não costuma perdoar (Deus perdoa sempre, o homem às vezes,
a natureza nunca – é o adágio). O homem
tem falhado na sua missão de guarda da criação e do seu semelhante. Deixa-se
levar para a guerra vencido pelo egoísmo, pelo ódio e pela falta de diálogo. E
com a guerra gera a fome, a destruição, a onda de refugiados e o espectro da
desertificação, a escravização, o mercantilismo dos valores, o comércio dos
corpos, as pestes, a morte, o desequilíbrio da natureza com o esgotamento dos
seus recursos. Depois, contra o que escreve Belloso, o crescimento económico,
embora em si mesmo não gere ou aumente a degradação ambiental, será a sua causa
se configurar um crescimento não disciplinado e incontido, ou seja, não sustentável,
não ao serviço do homem, mas de interesses vis.
***
Verificar
tais dados somente seria pessimismo se não fosse acompanhado da crença de que o
homem pode mudar de paradigma, de atitudes, de perspetiva educacional e de
comportamentos ou se não se reconhecessem os esforços feitos e a fazer na
melhoria das coisas. Mas o Papa tanto acredita, que insta à capacidade e
bondade do homem. E, por outro lado, fala abundantemente da bondade e
misericórdia de Deus, de que não se pode ter medo e que tem de se testemunhar e
anunciar.
Ademais, o
Papa não deixa de sublinhar que o cenário do mundo apresenta, por outra via “um
incremento colossal da esperança de vida e da saúde como consequência do desenvolvimento
económico”, social e humano e que, “em muitas zonas do mundo, o ambiente está a
melhorar”. Porém, é falso que isso se deva ao funcionamento da economia de
mercado, como quer Belloso, que fala demasiado em liberdade e democracia. Mas
que liberdade e que democracia? As de todos e de cada um ou as de alguns
apenas?
É verdade
que João Paulo II “sempre abordou os problemas globais com foco e linguagem
religiosos” e “pensava que a solução para os males do mundo estava em cultivar
as virtudes pessoais e em voltar o olhar para Deus”. Francisco também assim
pensa, mas entende que é preciso mais alguma coisa: a política, em que não se
deixe à inércia dos mercados ou à soberba da ganância de alguns a condução dos
destinos da humanidade e de cada comunidade. É evidentemente necessário que os
dirigentes assumam o seu papel executivo (e não apenas cuidem da boa
estruturação das leis), que,
pautado pelo bem do homem e pelo bem comum, dê lugar a um mundo melhor, mais
justo, mais equitativo e mais fraterno. É o homem que deve assumir o governo e
não o mercado ou o sistema a governar o homem. Será isto socialismo, marxismo
ou outra qualquer coisa “má”?
A religião
com que a Igreja deve envolver a sua postura perante o homem e o mundo não pode
enclausurar-se nos templos ou nas casas particulares, mas tem de produzir consequências
na vida das pessoas e da sociedade ao nível pessoal, profissional, social,
económico e político. Qual destas palavras é que Belloso não entenderá?
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