quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Segurança Social pagou cerca de 4 milhões a pensionistas mortos


Segundo uma auditoria do TdC (Tribunal de Contas), divulgada no dia 27 de fevereiro, a Segurança Social pagou indevidamente, em 2016 e 2017, pensões de sobrevivência durante mais de dez anos após a morte dos beneficiários, num total de 3,7 milhões de euros e 0,4 milhões relativos a pensões próprias, tendo recuperado só 16,7% do montante em dívida (1,8 milhões). Por outro lado, leva muito tempo a suspender estas pensões a pessoas que morreram e não consegue recuperar os montantes pagos indevidamente.
A auditoria analisou as prestações por morte (pensões de sobrevivência atribuídas aos viúvos, subsídio por morte e reembolso de despesas de funeral) para perceber se há sistemas de controlo para prevenir o pagamento indevido, avaliar o registo de óbitos e verificar se foram desencadeados processos de recuperação dos montantes pagos indevidamente. E concluiu que os problemas persistem e o ISS (Instituto de Segurança Social) não seguiu as recomendações das auditorias realizadas de 2012 a 2016 à Conta Geral do Estado ou as dos relatórios da IGMTSS (Inspeção-Geral do Ministério do Trabalho e Segurança Social).
O TdC procedeu à auditoria por amostragem selecionando uma amostra de 223 pensões de sobrevivência cessadas em 2016 e em 2017, mais de um ano após a morte dos beneficiários, alertando que o registo dos óbitos na Base de Dados de Pensionistas se faz “em data muito posterior à data da ocorrência do facto, protelando o pagamento de pensões de sobrevivência durante vários anos em prejuízo do erário público”. E lê-se no relatório:
A intempestividade no registo do óbito de beneficiários de pensões de sobrevivência, nalguns casos superiores a dez anos, levou ao protelamento do seu pagamento, resultando num prejuízo para o erário público de 3,7 milhões de euros”.
Nos casos auditados, a suspensão da pensão demorou 6 anos, em média, após a morte do respetivo beneficiário (6 anos em absoluto em 35 casos), mas, em algumas situações, as prestações continuaram a ser pagas por mais de 10 anos (40 casos). E há casos em que os serviços registaram o óbito, deixaram de pagar outras prestações a que a pessoa tinha direito, mas mantiveram a pensão e sobrevivência por vários anos.
À objeção do ISS,  no contraditório, de que as situações mais problemáticas resultam de atrasos na comunicação dos óbitos por parte do MJ (Ministério da Justiça), o TdC anota que que não existe registo na base de dados nem foi demonstrado em contraditório em que datas os ficheiros do MJ chegaram ao ISS, pelo que não acolheu a justificação e alertou para a subsistência de dificuldades e insuficiências na ligação entre as várias bases de dados da Segurança Social, criando limitações na “rigorosa” atribuição e cessação de prestações sociais “com reflexos no montante de prestações indevidamente processadas e pagas”. Por outro lado, não foram desencadeados os procedimentos para recuperar a dívida das pensões pagas indevidamente no valor de 1,9 milhões de euros, pelo que, segundo o TdC, incorrem em “eventual infração financeira, punível com multa” por “omissão da prática de atos devidos” o conselho diretivo do ISS  e o diretor do CNP (Centro Nacional de Pensões).
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Alerta ainda o TdC para a “reduzida eficácia” na recuperação de pagamentos indevidos. Como se disse, dos 1,8 milhões de euros registados como dívida quando as pensões cessaram, apenas foram recuperados cerca de 614 mil euros, o que corresponde a 16,7% do total, sendo que os restantes 1,9 milhões de euros “não foram registados como dívida quando foram cessadas as pensões, nem foram desencadeados quaisquer procedimentos tendentes à sua recuperação”, o que “é suscetível de gerar responsabilidade financeira punível com multa” para os membros do Conselho Diretivo do ISS e para o diretor do CNP, como acima foi indicado. E o TdC chama a atenção para os vários constrangimentos existentes na instrução de processos de dívida, o que levou a que o número de processos remetidos para cobrança coerciva diminuísse de 656 (1,4 milhões de euros) em 2015 para 132 (800 mil euros) em 2017. Ademais, o ISS revela “incapacidade” para identificar o devedor responsável pela restituição dos valores, sucedendo que parte dos processos de dívida “são arquivados, ficando a aguardar o decurso do prazo de prescrição”.
Às alegações do ISS em relação a esta matéria o TdC responde que não contrariam as conclusões do relatório, mas que, ao invés, as complementam, “na medida em que evidenciam que esta área apresenta falhas de controlo”. Por consequência, deixa recomendações ao MTSSS (Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social) para que mande fazer uma auditoria ao sistema de informação de pensões e para que faça chegar ao Tribunal presidido por Vítor Caldeira um relatório com o ponto de situação da implementação das recomendações feitas anteriormente; recomenda ao ISS o levantamento de todas as situações de pagamentos indevidos de pensões e a criação de mecanismos de controlo que permitam a suspensão da pensão de sobrevivência no mês seguinte à morte do beneficiário e a suspensão em simultâneo da pensão de direito próprio (pensão de velhice, por exemplo) e de sobrevivência (paga a viúvo ou viúva após a morte do cônjuge ou a filhos em casos específicos para que não sofram uma redução abrupta de rendimento).
Registe-se que, em 2017, as pensões de sobrevivência representavam cerca de 12% da despesa corrente do sistema previdencial (dois mil milhões de euros) e que não é a primeira vez que a entidade fiscalizadora da Conta Geral do Estado verifica este tipo de situações, sendo que a presente auditoria a leva a concluir que, além destes casos persistirem, o ISS não instituiu os mecanismos de controlo destas situações nem assegurou a recuperação dos valores pagos de forma indevida.
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Além de ter usado do direito ao contraditório em sede de auditoria, o ISS vem, uma vez divulgadas as conclusões do relatório da auditoria do TdC, reagir publicamente dizendo que tomou medidas para evitar pensões a falecidos e alertando que metodologias propostas “não encontram suporte na lei vigente”. Assim, em comunicado sobre o relatório do TdC, que apurou o pagamento de 4 milhões em pensões de sobrevivência a beneficiários já falecidos (nalguns casos há mais de 10 anos), o ISS rejeita a “não atuação e imputação de responsabilidade financeira”.
Como foi dito, a auditoria centrou-se nas prestações por morte cessadas em 2016 e 2017 e, do valor de pagamentos indevidos detetados, 3,7 milhões de euros correspondem a pensões de sobrevivência cessadas naqueles anos, enquanto cerca de 0,4 milhões são relativos a pensões próprias; e nos 223 casos analisados de pensões de sobrevivência cessadas em 2016 e 2017, há 40 em que o óbito tinha ocorrido há mais de 10 anos e 35 em que contava com mais de 6 anos; e a auditoria permitiu verificar que, dos 3,7 milhões de euros, houve uma parcela de 1,8 milhões de euros que foi registada como dívida, tendo sido recuperados 614 mil euros (16,7% do total).
Ora, sobre a recuperação de dívida, o ISS diz que a quebra generalizada e continuada de recursos humanos desde 2010 no CNP, que em 2017 ficou reduzido a pouco mais de metade dos efetivos de que dispunha em 2010, e o aumento dos requerimentos, “são os principais fatores que têm contribuído para o aumento da pressão sobre o CNP, condicionando a sua capacidade de resposta”. E o predito comunicado refere:
Acresce a complexidade técnica das pensões, que exige desenvolvimentos ao nível dos sistemas de informação, os quais têm vindo a decorrer, de forma a diminuir a componente manual na análise e tratamento da maioria dos pedidos de reforma”.
O ISS, adicionalmente, refere que a gestão das pensões “requer um sistema de informação robusto e completo, cujo desenvolvimento está em curso”, prevendo-se o arranque em produção do primeiro módulo deste sistema “em março de 2019”; aponta que o PIAPD (Plano de Intervenção para a Área das Prestações Diferidas), adotado em 2018, “inclui um conjunto de medidas que atuam no reforço de recursos humanos, nos sistemas de informação e na melhoria de procedimentos, encontrando-se a generalidade das medidas já implementadas”; e diz que os efeitos do plano “já são visíveis”, tendo sido complementados no início de 2019, com novas medidas, como o reforço de pessoal neste ano e início de 2020 e a especialização de equipas.
O ISS recorda a necessidade de cruzamento de dados com outras instituições externas para troca de informações sobre óbitos e que, no âmbito do Simplex+, foi introduzida uma medida de “comunicação automática de óbito”, que está teste, e que o pagamento das pensões é suspenso sempre que ocorre a devolução do vale postal. E sustenta que os pagamentos indevidos resultam do desfasamento entre o cruzamento dos dados de óbitos e a data de pagamento de pensões, situação que advém da dimensão do processo e da “necessidade de garantir a articulação com vários parceiros internos e externos ao sistema de segurança social”. E acrescenta:
Esta condicionante só pode ser ultrapassada através de soluções de natureza tecnológica que têm vindo a ser desenvolvidas, cuja entrada em produção está prevista para 2019, conforme transmitido ao Tribunal de Contas”.
O ISS insiste que “existem procedimentos instituídos, que os mecanismos foram efetivamente implementados e que foi promovida a contratação de recursos humanos para colmatar os défices de pessoal do CNP”, referindo:
Estas iniciativas foram extensamente explicadas à equipa de auditoria do Tribunal de Contas, que optou por não as valorizar, recomendando metodologias alternativas que não encontram suporte na lei vigente”.
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Em suma, o TdC conclui que os procedimentos de registo e confirmação de óbitos usados “não previnem o pagamento indevido de prestações”, exemplificando com as situações em que a morte é causa da cessação da pensão por direito próprio, mas não a sobrevivência, apesar de o beneficiário ser o mesmo.
O ISS referiu, no contraditório, que as pensões de sobrevivência e as próprias não se encontravam aglutinadas, pelo que não era possível fazer o “arrasto” do óbito.
Em 2017, estavam em pagamento 740.631 pensões de sobrevivência, havendo 9.047 que estavam a ser pagas a pessoas sem número de identificação fiscal associado, incluindo beneficiários nascidos depois da obrigatoriedade de obtenção do Cartão do Cidadão. Em resposta, o Instituto de Informática precisou que o NIF passou a ser campo obrigatório a partir de 2002, aquando da introdução da nova aplicação de cálculo, mas que persiste um universo de pensionistas sem o NIF associado, que tem vindo a ser reduzido. Perante este cenário, o TdC recomenda maior articulação entre os ministérios do Trabalho e da Justiça para se garantir que a informação relevante sobre os beneficiários é integrada atempadamente no Sistema de Informação de Pensões. No contraditório, o gabinete do MTSSS refere que o Orçamento do Estado para 2019 inclui uma norma que visa “habilitar a interconexão de dados” necessários para o registo do óbito no Sistema de Informação da Segurança Social. E relativamente aos casos que envolvem residentes no estrangeiro (onde a obtenção de informação em tempo útil se torna mais difícil) o TdC recomenda a adoção de medidas, sugerindo a introdução de prova de vida.
Em 2017, a despesa com prestações por morte (incluindo subsídio por morte e reembolso das despesas de funeral), no âmbito do sistema previdencial, totalizou cerca de 2.004 milhões de euros, com a despesa das pensões de sobrevivência a representar 1.903 milhões de euros. O diploma que regula as pensões de sobrevivência prevê que estas são atribuídas a cônjuges, ex-cônjuges e membros sobrevivos das uniões de facto, sendo pagas por um período de 5 anos se o beneficiário tiver menos de 35 anos à data do óbito do outro elemento do casal.
E o TdC sublinha que nas uniões de facto “o atual modelo de atribuição” destas pensões tem elementos “que dificilmente são passíveis de controlo”, visto que a união de facto, embora deva ser provada por declaração da junta de freguesia, não tem de ser registada, pelo que recomenda melhorias na verificação das uniões de facto, até porque a informação disponível à data de setembro de 2018 revelou que, nos casos examinados, as pensões de sobrevivência mantinham-se ativas apesar de já não cumprirem requisitos para tal, resultando num pagamento indevido médio ao longo de 32 meses. 
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Não se entende que a Segurança Social falhe tanto como aquilo que o relatório da auditoria do TdC denuncia. Tolerar-se-ia que, antes da informatização dos serviços, houvesse o lapso de um ou dois meses entre o óbito dum cidadão e o corte da sua pensão, pois era normal que, entre o conhecimento do óbito pela Conservatória do Registo Civil e o conhecimento da Segurança Social, mediasse algum tempo, mas agora com as possibilidades de comunicação entre departamentos do Estado, o domínio das situações é possível quase na hora. Imagine-se que o cidadão falha um prazo na conservatória, nos serviços de finanças ou na delegação saúde. Cairá o Carmo e a Trindade. O Estado falha – e a Segurança Social é useira e vezeira em falhas – e os cidadãos têm que aturar. Nada pior em mais funesto que a falta de comunicação entre serviços como em empresas.
É chocante atrasarem-se os serviços na entrega das prestações, sejam abonos de família, sejam subsídios de desemprego, de doença ou de parentalidade, sejam pensões, como é chocante serem indivíduos falecidos chamados a consultas médicas, exames ou juntas. É inaceitável que o histórico duma pessoa na Segurança Social não contenha todos os seus dados devidamente atualizados ou que os contribuintes (cidadãos e empresas) paguem as prestações que devem e o registo do pagamento tarde com eventual prejuízo para os utentes.
Enfim, a Segurança Social que nos deixa inseguros e que desperdiça dinheiros e energias por incompetência supina! Haja quem ponha cobro a esta incompetência maior que a dos governos, de que não deveríamos precisar, a não ser para a superior definição de políticas públicas!
2019.02.28 – Louro de Carvalho  

O que se passa com a ADSE


As últimas semanas têm sido palco de notícias referentes ao anúncio de suspensão, ou mesmo de rutura, dos acordos de prestadores privados de cuidados de saúde em que se destacam alguns grupos bastante poderosos, como a José de Mello Saúde, que já disse ter estabelecido tabela de preços especial para os beneficiários deste subsistema, a Luz Saúde e o Hospital dos Lusíadas. A par da postura destes grupos e em contraste com ela, surge a Fundação Champalimaud a descrever como sereno e “perfeitamente normal” o relacionamento que a instituição mantém com a ADSE, sem registo de problemas.
A este respeito, Leonor Beleza, presidente da Fundação sustentou:
A convenção está a funcionar em termos normais. O que precisamos de discutir com a ADSE discutimos tranquilamente. Não temos intenção de provocar qualquer tipo de alteração.”. 
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Criada pelo Decreto-lei n.º 45002, de 27 de abril de 1963, a ADSE completará, este ano, 56 anos ao serviço da proteção dos funcionários públicos, nos domínios da promoção da saúde, prevenção da doença, tratamento e reabilitação. Começando por abranger apenas os servidores civis do Estado, o seu âmbito de abrangência foi sucessivamente alargado, englobando, a partir de 1970, os cônjuges, a partir de 1971, os descendentes menores de 7 anos e, a partir de 1972, todos os descendentes menores. Assim, contando com apenas 57.174 beneficiários em 1966, rapidamente atingiu o milhão de beneficiários a partir de 1978. E, desde a sua criação, já financiou mais de 15 biliões de euros em cuidados de saúde.
Hoje conta com 1,2 milhões de beneficiários, entre funcionários públicos no ativo, aposentados do Estado e familiares. É um sistema de saúde pago com os descontos mensais dos titulares.
Funcionando, há mais de meio século, como uma espécie de seguro de saúde dos funcionários públicos e aposentados que, a troco do desconto mensal de 3,5% sobre o seu salário ou pensão, podem ter acesso a prestadores de saúde privados a preços mais baixos, no regime convencionado, e ser reembolsados a posteriori, se recorrerem ao regime livre.
Nos últimos tempos, a ADSE tem estado envolta em polémica por causa do diferendo com alguns hospitais privados, surgido porque este instituto público de gestão participada exige a devolução de 38 milhões de euros por excesso de faturação em 2015 e 2016, que os serviços detetaram. Isto, no quadro dum agitado período de negociação em torno da tabela de preços da ADSE, alguns dos grandes grupos de saúde privados a ameaçar romper as convenções com este subsistema de saúde a partir da segunda semana de abril.
A ADSE, como Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado, foi criada a 27 de abril de 1963, sem que os beneficiários efetuassem qualquer desconto para o subsistema. De início, só abrangia os funcionários públicos no ativo, mas foi sendo alargada aos dependentes, cônjuges e aposentados. E, em 1979, os beneficiários passaram a contribuir para este sistema de saúde com 0,5% do salário, ficando isentos os aposentados.
Em 1980, a ADSE passou a Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas, mantendo a sigla, e a contribuição passou para 1%, vigorando por mais de 20 anos.
Em 2006, o Governo de José Sócrates introduziu várias alterações ao funcionamento e ao esquema de benefícios da ADSE, sendo equiparada a entidade administradora das receitas provenientes do desconto obrigatório. A inscrição deixou de ser obrigatória e os beneficiários passaram a poder renunciar a este subsistema de saúde, mas sem hipótese de regressar. E, em 2007, a contribuição dos funcionários no ativo aumentou para 1,5% e os aposentados passaram a contribuir com 1% da pensão (exceto os que percebessem pensão igual ou inferior ao RMMG - remuneração mensal mínima garantida), percentagem que foi subindo até atingir 1,5%. Os descontos passaram então a constituir receita própria da ADSE. E, em 2008, foi adotado um novo logótipo.
Na vigência do programa de ajustamento, em 2012, os encargos de saúde dos beneficiários em estabelecimentos do SNS deixam de ser suportados pela ADSE; em 2013, a taxa de desconto dos beneficiários aumentou num primeiro momento para 2,25% e num segundo momento para 2,5%; e, menos de um ano depois, em maio de 2014, voltou a subir para 3,5%, valor que se mantém hoje. Nesse ano, as receitas provenientes dos descontos ultrapassaram 520 milhões de euros (contra cerca de 280 milhões de euros em 2013). Foi nessa altura que o subsistema deixou de receber verbas do Orçamento do Estado e passou a ser suportado integralmente pelos descontos dos beneficiários, tendo registado o seu primeiro excedente, de 63 milhões de euros, em 2015.
Era usual a ADSE pagar integralmente as despesas com a saúde dos beneficiários em hospitais públicos desde que em urgência, tratamento ambulatório e internamento em regime enfermaria, sendo que em regime de quarto o beneficiário pagava a diferença. Também era este subsistema que custeava a comparticipação pública nos medicamentos. Tudo isto cessou com a troika. O SNS deixou de ter acordos com a ADSE e responsabiliza-se por toda a comparticipação pública na aquisição do medicamento por parte dos doentes. Os funcionários públicos passaram a ter acesso ao SNS e a recorrer aos prestadores privados com acordo com a ADSE ou ao regime livre, com o reembolso posterior de parte das despesas feitas.
Em 2015, a ADSE passou para a tutela do Ministério da Saúde e, em 2016, foi criada a Comissão de Reforma do modelo da ADSE, passando esta a Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE, IP) a partir de 1 de janeiro de 2017. E, no final desse ano, começou a discutir-se a atualização das tabelas da ADSE, o que deu o diferendo com os hospitais privados.
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Segundo o último relatório de contas da ADSE, o universo dos prestadores convencionados, em 2016, abrangeu 1.613 entidades. Cerca de 908 mil beneficiários procuraram a rede da ADSE, enquanto 475 mil recorreram ao regime livre. Da demonstração de resultados daquele ano conclui-se que os custos com o sistema de financiamento de cuidados de saúde, suportados diretamente pela ADSE, foram 538,8 milhões de euros (um acréscimo de 19,6% face ao ano anterior). E a faturação dos prestadores da rede convencionada aumentou 26,3% entre 2015 e 2016 para 405,3 milhões de euros. O custo médio por beneficiário no regime convencionado tem vindo aumentar substancialmente ao longo dos últimos anos, tendo crescido 29,6% entre 2015 e 2016, para 331,45 euros. Já o custo médio por beneficiários em regime livre foi de 137,74 euros.
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As novas tabelas apresentadas ao setor privado suscitaram fortes críticas, considerando a APHP (Associação Portuguesa de Hospitalização Privada) que os valores comportam perdas incomportáveis para o setor e põem em causa o acesso dos beneficiários aos cuidados de saúde. E o bastonário da Ordem dos Médicos, em declarações à Lusa em janeiro de 2018, classificou como “absolutamente escandalosos” os preços que a ADSE paga por alguns atos médicos, o que podia levar os privados recusar o seguro da ADSE nestas circunstâncias. A discórdia agravou-se nos últimos meses quando, em dezembro, o conselho diretivo deste instituto público de gestão participada comunicou aos hospitais e clínicas privados que estes teriam de devolver 38 milhões de euros devido a excessos de faturação efetuados entre 2015 e 2016. E fê-lo com base num parecer da PGR (Procuradoria-Geral da República) que surgiu na sequência de recurso à justiça por parte da APHP onde contestava as regularizações. Com efeito, segundo o conselho diretivo da ADSE, IP, os prestadores de saúde podiam faturar o valor que entendessem sobre atos médicos (sobretudo medicamentos, dispositivos ou cirurgias, sem que estivesse definido um valor máximo). Porém, estão sujeitos a regularização posterior, já que em 2009 foi introduzido o princípio da regularização. Ora, a APHP alegou desconhecimento do parecer da PGR, vincando que o assunto estava a ser dirimido nos tribunais, tendo em seu poder um parecer de Vital Moreira, a defender o contrário. E, para a APHP, “não é razoável pretender fazer regularizações retroativas de faturas conferidas e pagas”, com base em valores desconhecidos e sem ninguém saber do seu contexto. No entanto, é intolerável a disparidade enorme entre os prestadores para o mesmo ato médico e o mesmo medicamento, como a sobrefaturação. E esses erros devem corrigir-se quam primum.  
Assim, no final de 2018, a APHP realizou uma assembleia geral extraordinária para analisar a situação e o presidente da associação disse que alguns prestadores admitiam deixar a convenção com a ADSE, tendo já dado corpo a essa intenção os grupos acima referidos, cujo montante de faturação resulta em 25% dos serviços prestados aos beneficiários da ADSE.
Tal decisão criou ondas de mal-estar geral e reações dos vários partidos políticos, alguns dos quais jogaram o facto como arma de arremesso contra o Governo pelo estado em que está o SNS, do Primeiro-Ministro, que acredita nos acordos e que diz que a ADSE não vai acabar (morte que alguns desejam e vaticinam), e do Presidente da República, que apelou ao entendimento.
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Por outro lado, a presidente do conselho diretivo da ADSE disse, na Comissão Parlamentar de Saúde (onde foi ouvida a pedido do CDS-PP, BE e PSD sobre a polémica), que o instituto vai avançar com novo sistema de combate à fraude que monitorize e evite “comportamentos desviantes”.
Aquela dirigente, que garantiu que a proposta com as novas tabelas será apresentada “dentro de muito pouco tempo”, defendeu que há “um caminho” a fazer de “controlo, modernização” que leve a fazer atempadamente um conjunto de análises tendentes à monitorização e a “evitar comportamentos desviantes ou, pelo menos, atuar se eles vierem a acontecer”. E frisou:
Nesse sentido, a ADSE adjudicou, há poucos dias, um processo de ‘business intelligence’ e tem por objetivo este ano avançar para um sistema que acompanhe aquilo que são as práticas dos dias de hoje em termos internacionais de fraude em saúde”.
Trata-se, para Sofia Portela, de fraude “no sentido mais lato”, ou seja, “abuso, desperdício, no fundo, é avaliação de comportamentos desviantes”. Porém, já em 2018 a ADSE avançou com vários instrumentos com vista à eficiência e controlo, como a faturação eletrónica, a exigência do número da cédula do médico e o processo de autorizações prévias para vários atos, processo que deverá ser alargado – um caminho a fazer em diálogo com os prestadores.
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Por seu turno, o presidente do CGS (Conselho Geral e de Supervisão) da ADSE defendeu, no Parlamento, em audição na predita comissão, realizada a pedido BE e do PSD, sobre a situação atual da ADSE, que as tabelas com os novos preços do subsistema de saúde da função pública (para o regime livre e para o convencionado) devem ser publicadas, com ou sem acordo dos privados, embora preferencialmente com acordo. Ainda não foram publicadas por “falta de cooperação” de alguns grandes grupos privados e por haver um levantamento “demasiado demorado” que está a ser feito por parte do conselho diretivo sobre custos de próteses e medicamentos.
Sobre o alargamento da ADSE a novos beneficiários, nomeadamente aos contratos individuais de trabalho (CIT) no Estado, Proença considerou “um abuso” ter Sofia Portela anunciado na comissão que está a fazer um estudo adicional sobre o assunto, depois de o CGS ter já realizado um sobre a sustentabilidade do sistema. A este propósito, Proença referiu que, no geral, a relação entre o conselho diretivo e o CGS tem sido “razoável” e não “boa”.
Também para José Abraão, membro do CGS presente na audição parlamentar, em causa está um universo potencial de 80 mil novos beneficiários, a maioria dos quais com CIT no Estado.
A ADSE quer novos beneficiários para reforçar receitas. E considera que não é necessário negociar tabelas, só regularizações. Mas o presidente do CGS afirma que “é totalmente falso que a ADSE esteja com dificuldades financeiras” e totalmente inaceitável que esteja a envelhecer “quando há imensa gente que quer entrar na ADSE”, sendo apenas necessário o aumento de receita com a abertura do regime a novos beneficiários, como os trabalhadores com CIT no Estado, e reforçar pessoal e instrumentos de gestão do instituto público.  
O Conselho, lembrou Proença, realizou um estudo sobre a sustentabilidade do subsistema de saúde público que recomenda o alargamento do universo de beneficiários e a celebração de novas convenções – que está paralisada. O estudo realizado pelo órgão de supervisão foi entregue ao governo em dezembro, tendo por base os indicadores do SNS, e não está ainda publicado (o CGS admite publicar uma versão resumida).
Segundo Proença, a direção da ADSE deve negociar o processo de regularizações de faturas passadas que exige 38,8 milhões aos hospitais privados, mas não necessariamente a fixação de preços máximos nas tabelas de preços. O processo de revisão foi iniciado em alguns itens em 2009 e teve a última revisão em 2014, com a proposta de fechamento de preços que levaria à regularização de faturas de próteses e de medicamentos. E o presidente do CGS, que assegura que tem vindo a pedir “a rápida publicação das tabelas”, salientou que a demora acontece “por falta de cooperação de alguns, nomeadamente, os grupos privados, que recusaram entrar no sistema, para os medicamentos e para as próteses”. E Proença lembra ter sido, após 1 de outubro de 2014, que os prestadores de cuidados do regime convencionado recusaram colaborar com a ADSE na entrega de elementos pedidos, como número de cédulas de médicos responsáveis por prescrições e códigos dos consumos de saúde faturados. Além disso, em maio de 2018, recusaram a generalização do regime de autorizações prévias de despesa e faturação.
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Talvez ficasse mais barato ao Estado ter mantido a relação com a ADSE e com as seguradoras no SNS, chamando os privados, também convencionados, à prestação de serviços de saúde em regime supletório ou promoção dos beneficiários. O SNS precisa de ser mais robusto, o que se obtém pela diversidade de financiamento, pela intervenção reguladora, fiscalizadora e corretiva do Estado ao nível de preços, faturação e qualidade dos serviços (prevenindo, travando e punido o chico-espertismo), pela dignificação das carreiras e pela motivação da sociedade civil. Um sistema puro, embora desejável, não existe, seja na saúde, seja em qualquer campo de atividade. Por isso, o Estado não devia descurar a saúde dos seus trabalhadores, como deveria incitar o setor empresarial e o social (privados e cooperativos) a fazerem o mesmo em relação aos seus.
Tudo funciona melhor com a cooperação de todos. E o Orçamento do Estado ficaria menos depauperado se a contribuição para o SNS fosse paulatina e diversificada do que se tiver de vir apagar a posteriori apagar fogos de dívidas de milhões, como vem acontecendo.
2019.02.27 – Louro de Carvalho

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Juiz advertido pelo CSM critica “juízes com ideias preconcebidas”


É o caso de um juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto (TRP) sobre quem, pelo alarme espoletado por justificações inseridas num acórdão, recaiu a pena de advertência registada após o respetivo processo disciplinar que lhe moveu o CSM (Conselho Superior da Magistratura). Esse juiz advertido por ter insultado vítimas de violência doméstica vituperando, em novo acórdão, “maniqueísmos” e “ideias preconcebidas” na justiça, garante que agora “qualquer banal discussão é considerada violência doméstica”.
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O par de desembargadores do TRP (só se fala de um, mas o acórdão é subscrito por dois) retirou, em outubro passado, a pulseira eletrónica a um homem que, entre outras agressões, rebentou a soco um tímpano à mulher – medida acessória que o tribunal de 1.ª instância tinha aplicado para evitar que o indivíduo se aproximasse da mulher.
O juiz, relator do polémico acórdão sobre “o apedrejamento de mulheres adúlteras”, voltou a pronunciar-se sobre um “crime de violência doméstica” reduzindo e suavizando a pena do condenado em 1.ª instância. Para tanto, aduz que os juízes não pediram autorização ao próprio para lhe aplicar a predita medida, nem justificaram por que razão era imprescindível recorrer a este meio de controlo à distância para proteger a mulher, pelo que julga excessiva a pena imposta ao recorrente, devendo ser “reduzida para os seus limites mínimos atenta a factualidade dada como provada”. Porém, o desembargador – a quem foi aplicada a sanção de advertência registada, por causa do acórdão em que minimizou um caso de violência doméstica pelo facto de a mulher agredida ter alegadamente cometido adultério – não está sozinho: há mais decisões no mesmo sentido de tribunais superiores.
Agora, a vítima “vive escondida, aterrorizada” e teve de trocar de casa”, como explicou ao Público o seu advogado oficioso, já que o agressor, um eletricista, continua a proferir ameaças de morte contra a ex-esposa já depois de ter sido condenado, por intermédio do filho do casal, já adulto, e de um irmão da vítima. E diz o referido advogado:
Quando os técnicos dos serviços prisionais lhe bateram à porta para lhe retirarem a pulseira que ela também usava para prevenir as autoridades em caso de aproximação do ex-marido ficou em choque. Disse-me: ‘Estou outra vez à mercê dele’.”.
O casal morava num bairro camarário de São Mamede de Infesta e o agressor nunca se coibiu de maltratar a companheira. No verão passado, foi condenado pelo Tribunal de Matosinhos a 3 anos de pena suspensa por violência doméstica agravada, a pagar 2500 euros à vítima por danos morais e a frequentar um programa de controlo de agressores. E ficou proibido de se aproximar da ex-esposa ou de a contactar de qualquer forma, pelo que a fiscalização seria feita por meios técnicos de controlo à distância, dispensando-se o consentimento do arguido para o efeito.
O desembargador entende que a pena é severa, “atenta a factualidade considerada”, que o tribunal não fundamentou, na ótica da defesa, “a culpa do arguido”, descurou “a determinação das exigências de prevenção, nomeadamente, as exigências de prevenção especial”, estando a ofendida e o arguido separados e “a refazer as suas vidas”. E adianta:
Tal como resulta da douta sentença proferida, o arguido não mais contactou com a ofendida, até mesmo antes de ter sido aplicadas as medidas de coação, apresentou uma postura correta no Tribunal, não registando o arguido antecedentes criminais”.
Ao Público declarou que o regime de proteção das vítimas deve ser melhorado. Com efeito, julga ser consensual neste momento que “o regime jurídico de prevenção da violência doméstica e de proteção das suas vítimas pode (deve) ser melhorado”, não importando “as proclamações demagógicas que se vão sucedendo” sobre o problema. E, sobre o caso em concreto, recordou que a aplicação de pulseira eletrónica – como medida de coação ou de fiscalização do cumprimento de pena – é um instrumento de cariz intrusivo, “que afeta a liberdade e a privacidade” do condenado e da vítima, bem como “das pessoas que com eles têm uma relação de proximidade”.
Se, “em abstrato ou em tese, pode dizer-se que a fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contacto por meios de controlo à distância é desejada pela vítima porque, assim, sentir-se-á mais segura”, sustenta que tem de ser vista caso a caso “a fundamentação do juízo de imprescindibilidade”.
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Fernanda Câncio, no DN de hoje, 26 de fevereiro, pormenoriza o caso, o que sigo em parte, mas abstendo-me de nomear.
A vítima de 49 anos viveu com o agressor desde há 34 anos, quando nasceu o filho de ambos e casaram há cerca de 25. E, cerca de 6 anos, o agressor terá começado a insultar reiteradamente a vítima com termos obscenos, a acusá-la de ter amantes, a agredi-la (chegou a perfurar-lhe um tímpano) e a ameaça-la de morte várias vezes, numa das quais com um objeto que parecia uma pistola, e noutra com uma catana. Foi após o episódio da catana, em julho de 2017, em que disse que a matava e ao filho, que ela decidiu fugir e fazer queixa. Acima de tudo tem medo
A mulher, descrita pelo advogado oficioso como “uma pessoa muito simples e humilde”, nunca tinha ido à polícia e não tinha recorrido ao hospital em resultado das agressões. E, apesar de, desde a fuga (abandonou a casa de família e o café, que explorava e com o fruto de cuja exploração se sustentava e ao marido) estar, por medo do que este lhe possa fazer, escondida do agora ex-marido, quando foi ouvida no tribunal que o condenou, em junho de 2018, por violência doméstica agravada, a três anos de prisão com pena suspensa, repetiu várias vezes tratar-se de “um bom homem”, mas que “se descontrolava completamente com o álcool” e que era diferente quando não bebia.
O agressor aproveita essas considerações no recurso que interpôs, inconformado com a extensão da pena e da proibição no horizonte temporal equivalente, de contactos com a vítima e de imposição de vigilância eletrónica. E a 1.ª secção criminal do TRP, pela pena de Neto de Moura e Luís Coimbra, sendo o primeiro, que ficou conhecido como “o do acórdão da mulher adúltera”, o relator da decisão sobre o caso, mandou retirar a vigilância eletrónica.
O magistrado que julgou em primeira instância fundamentara, no “receio intenso” que a ofendida “demonstrava sentir pelo arguido”, a decisão da proibição de contactos (telefónicos, presenciais, por redes sociais ou epistolares) por três anos (determinando por igual tempo a fiscalização por meios de controlo à distância). E fundamentara em parte a decisão de suspender a pena no seguinte: 
Entende-se que ao arguido, a simples ameaça de prisão, conjuntamente com as penas acessórias que se irão decretar, irá obstar a que repita comportamentos semelhantes e irá impeli-lo a não voltar a maltratar terceiros, designadamente em relacionamentos”.
Por outro lado, argumentava que o arguido estava sujeito já a medidas de coação antes do julgamento, nomeadamente as de proibição de contacto e vigilância eletrónica (VE), e deixara de “causar qualquer problema”. Porém os dois juízes do TRP decidiram em outubro de 2018 dar provimento parcial ao recurso por considerarem não existir “elevada carga de ilicitude”, escudados na doutrina adotada pelos constitucionalistas Vital Moreira e Gomes Canotilho, sobre os “efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente”, que possam, “sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade” decretar “a morte civil, profissional ou política do cidadão”. Por conseguinte, reduzem a pena de três para dois anos e oito meses (suspensa), a duração da proibição de contactos de três para um ano e revogam a vigilância eletrónica, considerando que o arguido não dera autorização para a mesma, nem o decisor fundamentou tal necessidade.
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A penalista Inês Ferreira Leite, da direção da associação feminista Capazes (que fez uma participação ao CSM sobre o juiz Neto de Moura) e professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, discorda e, a meu ver, com toda a razão:
Há fundamentação na sentença da primeira instância. Aliás a Relação reconhece que há fundamentação suficiente, mas não para tanto tempo de vigilância eletrónica, não para três anos. E, ao analisar em detalhe os fundamentos possíveis para se aplicar a vigilância eletrónica, admite que a mesma poderia até ter fundamento para um ano, mas decide, em vez de a aplicar por um ano, revogá-la. Ou seja, dá muita volta para chegar aonde parece claro que o coletivo da Relação queria chegar desde o início – anular a VE.”.
A ilustre jurista frisa que, em caso de ausência de fundamentação, a Relação poderia fazer uma de duas coisas: substituir-se à 1.ª instância na fundamentação caso tivesse os dados suficientes; ou fazer baixar o processo de novo à 1.ª instância para nova fundamentação e decidir em recurso (se houvesse novo recurso). E, reputando a decisão de “tecnicamente incorreta”, sublinha que a situação da vítima nunca é abordada no acórdão e discorre: 
Esta mulher vivia a sua vida descansada na sua casa e café com o seu filho e netos. E está escondida até hoje. O agressor é condenado mas ela continua totalmente desprotegida e condicionada. É um caso claro em que a vítima é punida pelo crime e pela forma como o Estado resolve. E o agressor, nem sequer pode ser incomodado com um ano de pulseira eletrónica. Pergunto: quem é que foi punido/a por este crime? Eu só vejo uma vítima, mas também só vejo uma reclusa e uma pessoa punida neste caso: são uma e a mesma pessoa, a mulher. Não há ninguém no sistema judicial que pense no que se pode fazer para proteger esta mulher?”.
E o advogado oficioso, a quem a vítima telefonou, incrédula e em pânico, pergunta: Para que é que isto tudo serviu?
Como salienta F. Câncio, não é a 1.ª vez que o desembargador demonstra total desconsideração pelo sofrimento de vítimas. Contudo, apesar do suspeitado adultério da queixosa, o termo não consta na decisão em que o badalado juiz e o colega Luís Coimbra atenderam em parte aos argumentos do arguido. Provavelmente, em virtude de estar, em outubro, sob processo disciplinar, o relator teceu considerações interpretáveis como um mea culpa, ao escrever: 
Na apreciação da prova, o juiz deve, antes de mais, evitar o convencimento apriorístico. O juiz não pode deixar-se fascinar por uma tese, uma versão, deve evitar ideias preconcebidas que levam a visões lacunares, unilaterais ou distorcidas dos acontecimentos.”.
Porém, a contrario, anotou que a 1.ª instância conferiu “irrestrito crédito” à assistente e cujas declarações em audiência foram, praticamente, o único meio de prova em que assentou a convicção para dar como provados os factos ‘centrais’ do processo. Pois, na sentença, lê-se:
A assistente foi totalmente credível pela forma sentida como prestou as declarações, sendo declarações sentidas e amarguradas nas palavras. (...) De salientar a postura corporal da própria assistente, em sofrimento por ter de relatar os factos que, visivelmente, tanto a magoavam (corpo defensivo e retraído na cadeira). (...) O Tribunal não tem nenhuma dúvida de que os factos ocorreram mesmo.”.
E adita que  o “filho diz recordar-se de ver a mãe marcada no corpo” e que “a nora conta que a assistente lhe relatou episódios e os escondia do filho para não ser acusada de os tentar afastar.
Mas, para os juízes da Relação, essas duas testemunhas “nada presenciaram”. E, apesar de assegurarem que ter o colega de Matosinhos usado as declarações da queixosa como único meio de prova “não é, por si só, merecedor de qualquer reparo ou crítica”, e que “não é essa visão maniqueísta que se surpreende na decisão recorrida”, fazem, de seguida, algumas observações genéricas como as que seguem:
Se, durante muito tempo e até há uns anos, a vítima de violência doméstica sentia que o mais provável [era] que a sua denúncia acabasse em nada por não ter quem atestasse as agressões e às suas declarações não era dado o devido relevo probatório, a verdade é que, nos últimos tempos, têm-se acentuado os sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais banal discussão ou desavença entre marido/companheiro/ namorado e mulher/companheira/namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido.”.
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Ora, valha-lhes um burro aos coices. Como é que os ilustres dizem coisas destas num texto que vincula a República? E não referem que o arguido, que a sentença de 1.ª instância anota que se remeteu ao silêncio, não refutou os factos imputados e não apresentam qualquer referência factual para a opinião (opinião pessoal) que emitem sobre o modo como o sistema de justiça lida com a violência doméstica, sendo certo que os dados existentes apontam no sentido contrário.
De facto, são recorrentes os casos de violência doméstica e até de homicídio nesse contexto (como atestam os relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica) em que se constata que o sistema judicial desvalorizou a versão das vítimas, a violência de que foram alvo e o nível de risco que corriam e não pugnou pela sua proteção, chegando mesmo a insultá-las em decisões judiciais. Até a frequência com que é usado o instituto da suspensão da pena nos casos de violência doméstica (e outros crimes em que mulheres são vítimas) é considerada um sinal da desvalorização conferida pelo nosso sistema judicial a esse crime, quando a linha sustentada pelo TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos) é outra à luz dos valores da Convenção Europeia dos direitos humanos e da jurisprudência do tribunal de Estrasburgo, que Portugal ratificou.
Os magistrados do TR até concordam com o TEDH, mas não enquadram o caso neste horizonte, pois esquecem ou negam a perfuração do tímpano esquerdo, os edemas, os hematomas, as escoriações, a catana e a arma de fogo. Só veem as ofensas verbais e as ameaças. E violência psíquica, nem pensar. Até consideram o arguido um “cidadão fiel ao Direito”.
Embora reconheçam que, “várias vezes, ameaçada de morte pelo arguido, é compreensível que a ofendida se sinta, ainda, intimidada e insegura, com receio de que ele concretize as ameaças e a proibição de contactos pode ajudá-la a superar esse medo”, contudo prosseguem considerando:
O arguido está, agora, divorciado da assistente e a tendência natural será que cada um siga o seu caminho, refaça a sua vida e não voltem a contactar um com o outro, pois não há motivo para tanto (o único filho de ambos há muito que se autonomizou).”.
O advogado da queixosa garante que o ex-marido lhe fez ameaças veladas após a condenação, por via de outras pessoas, tendo mesmo ligado repetidamente para uma padaria em que ela trabalhou e onde foi vista por vizinhos dele, o que a levou a abandonar esse emprego. E acrescenta que “não voltou a contactá-la diretamente porque não sabe onde ela vive”.
Por sua vez, a mencionada jurista Inês Ferreira Leite vê, na decisão do TRP, uma desvalorização do risco real para a vítima e para outras mulheres e exclama:
Pergunto como é possível qualificar como um homem fiel ao Direito alguém que durante pelo menos cinco anos tem o comportamento descrito no acórdão. Pergunto se podemos qualificar como um homem fiel ao Direito um homem que inventa amantes da mulher e ameaça matá-los, ameaça matar a mulher, o filho. É socialmente normal, insultar, ameaçar de morte?”.
A este respeito, aponta:
“[Essa] é a tendência da nossa jurisprudência: independentemente da gravidade dos factos, da duração das agressões, a tendência é a de concluir que, apesar de tudo (e fingindo que as agressões não existiram) o arguido até é um bom homem: é um bom amigo, um bom vizinho, um bom colega (e, às vezes, até um bom pai, o que não é possível, este homem não foi, nem é, um bom pai). Sem que a jurisprudência reflita sobre a real relevância disto.”.
E conclui que há incapacidade em perceber que estes homens só são agressores em casa, para as mulheres, os filhos, o que não retira nem gravidade nem necessidade de intervenção no caso.
Condenado a pagar a indemnização de 2500 euros à ex-esposa, o homem fiel ao Direito ainda não o fez e é duvidoso que o faça, pois vive do RSI, como a queixosa, tendo dito ao tribunal que não consegue arranjar trabalho devido à idade.
A decisão do TRP não é passível de recurso. A única via judicial que resta é uma queixa ao TEDH, que já condenou vários Estados europeus em casos de violência doméstica, por falha do dever de proteção. Em alguns desses casos o tribunal invocou, como o juiz Paulo Pinto de Albuquerque preconiza, a violação do artigo 3.º da Convenção, fazendo equivaler a violência doméstica a tortura, tratamento desumanos e degradantes.
O prazo para apresentação da queixa, que ainda não se esgotou, é de 6 meses, mas o efeito útil duma decisão, ainda que revogasse o acórdão, levaria demasiado tempo. E nem a possibilidade duma indemnização deverá convencer a vítima a avançar, porque tem medo.
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Enfim, se é a lei que está mal, que a mudem (Para que serve o Parlamento?); se é a jurisprudência, que haja mais e melhor estudo; e, se é a justiça que está mal, que se fustigue, para que se confie nela. Mas Deus nos livre de certos juízes que exaram sentenças e acórdãos como se fossem expressão de opinião pessoal e não como produtos da República!
2019.02.26 – Louro de Carvalho