De acordo
com o respetivo comunicado, o Conselho de Ministros (CM) aprovou, a 7 de fevereiro, uma Resolução que
reconhece a necessidade da requisição civil dos enfermeiros em situação de
greve por, no entendimento do Governo, se ter verificado o incumprimento da
obrigação de prestação de serviços mínimos. Assim, o Governo decidiu proceder à
requisição civil, de forma proporcional e na medida do necessário, de modo a
assegurar a satisfação de necessidades sociais impreteríveis no setor da saúde.
Na
conferência de imprensa subsequente à sessão do CM, a Ministra da Saúde, Marta
Temido, referiu que, face às situações de “doentes cujas cirurgias foram
canceladas nos últimos dias” (deixaram de fazer-se 57% das cirurgias previstas), ainda que os respetivos hospitais estivessem
abrangidos pelos serviços mínimos, o Governo “não teve outra opção”. Acrescentando
que a forma como alguns enfermeiros estão a exercer este direito “poderá ser
excessivamente gravosa e desequilibrada”, “importa deixar uma mensagem muito
clara sobre o respeito do Governo por aquilo que é o direito à greve”. E,
relembrando que incumbe ao Governo defender, “em primeira linha”, “o direito de
proteção na saúde”, disse:
“Nós temos, de facto, um conjunto de casos
que correspondem a situações de pessoas que tem um rosto e um problema de
saúde, que estavam abrangidos pelos serviços mínimos e que não foram respeitados”.
E, na
sequência do referido comunicado e da aludida conferência de imprensa, foi
publicada a portaria que oficializa a requisição civil de enfermeiros com
efeitos imediatos em quatro centros hospitalares onde não foram cumpridos os
serviços mínimos e em vigor até 28 de fevereiro.
A predita
portaria entrou imediatamente em vigor, pelo que, a partir do dia 8 de
fevereiro de 2019, “os enfermeiros a requisitar devem corresponder aos que se
disponibilizem para assegurar funções em serviços mínimos, e, na sua ausência
ou insuficiência, os que constem da escala de serviço”, segundo o que se lê no
diploma.
A portaria
requisita os enfermeiros que exerçam funções no Centro Hospitalar e
Universitário de São João, no Centro Hospitalar e Universitário do Porto, no
Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga e no Centro Hospitalar de
Tondela-Viseu “que se mostrem necessários para assegurar o cumprimento dos
serviços mínimos” definidos pelo tribunal arbitral.
***
Entretanto,
o Sindepor (Sindicato
Democráticos dos Enfermeiros) contestará judicialmente a requisição civil determinada pelo CM
apresentando na próxima segunda-feira no STA (Supremo Tribunal Administrativo) uma intimação para a proteção de
direitos, neste caso o direito à greve. Este tipo de ação, que se carateriza
por maior rapidez relativamente às providências cautelares, também impede o
Governo de invocar o interesse público para manter os efeitos da requisição
civil – no âmbito das chamadas resoluções fundamentadas –, enquanto um juiz
analisa o caso.
Após
entrada da ação no STA, que é competente porque se contesta uma decisão do CM,
decidirá, na melhor das hipóteses, em pouco mais duma semana. O tribunal terá
de decidir da validade da requisição civil. Ao invés da providência cautelar, a
ação de intimação não suspendem de imediato os efeitos dos atos que pretendem
contestar – neste caso a resolução do CM que serviu de base à requisição civil e a portaria da Ministra da Saúde
que a concretizou –, mas também não permitem que a Administração Pública
consiga afastar essa suspensão com a invocação do interesse público. A celeridade
e a impossibilidade de o Estado invocar o interesse público para manter a
requisição civil são duas razões que levaram a equipa de advogados que
representa o Sindepor e de que Garcia Pereira faz parte, a optar por este tipo
de ação, pois, como argumenta Garcia Pereira, “a providência cautelar é mais
lenta e a sua utilidade prática é anulável com facilidade com a apresentação de
uma resolução fundamentada por parte da Administração Pública”.
***
A
figura da requisição civil, raramente utilizada desde o seu surgimento em 1974,
vem regulada no Decreto-Lei n.º 637/74, de 20 de novembro, do III Governo
Provisório, aprovado ao abrigo da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de maio. E
o art.º 290.º da CRP (Constituição
da República Portuguesa)
estabelece que “as leis constitucionais posteriores a 25 de abril de 1974 não ressalvadas
[…] são consideradas leis ordinárias e “o direito ordinário anterior à entrada
em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição
ou aos princípios nela consignados”.
Nos termos
predito decreto-lei, na prática, constitui um mecanismo que assegura o regular funcionamento de certas atividades fundamentais,
cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida
social, económica e até política em parte do território num setor da vida
nacional ou numa fração da população. Trata-se de uma medida de caráter excecional e de emergência a que o Governo pode
recorrer, apenas em casos “particularmente graves”, para ficar
assegurado o “regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público
ou de setores vitais da economia nacional”. E tem por base a “prestação de
serviços, individual ou coletiva, a cedência de bens móveis ou semoventes, a
utilização temporária de quaisquer bens, os serviços públicos e as empresas
públicas de economia mista ou privadas”.
Os serviços
públicos ou empresas que podem ser objeto de requisição civil são, nos termos
do diploma em causa, aqueles cuja atividade vise: o abastecimento de água (captação,
armazenagem e distribuição); a exploração
do serviço de correios e de comunicações telefónicas, telegráficas,
radiotelefónicas e radiotelegráficas; a exploração do serviço de transportes
terrestres, marítimos, fluviais ou aéreos; as explorações mineiras essenciais à
economia nacional; a produção e distribuição de energia eléctrica, bem como a
exploração, transformação e distribuição de combustíveis destinados a assegurar
o fornecimento da indústria em geral ou de transportes públicos de qualquer
natureza; a exploração e serviço dos portos, aeroportos e estações de caminhos
de ferro ou de camionagem, especialmente no que respeita à carga e descarga de
mercadorias; a exploração de indústrias químico-farmacêuticas; a produção,
transformação e distribuição de produtos alimentares, com especial relevo para
os de primeira necessidade; a construção e reparação de navios; as indústrias
essenciais à defesa nacional; o funcionamento do sistema de
crédito; a prestação de cuidados hospitalares, médicos e medicamentosos; e
salubridade pública, incluindo a realização de funerais.
O Código
do Trabalho, na atual redação, acrescentou:
“A
educação, no que concerne à realização de
avaliações finais, de exames ou provas de caráter nacional que tenham de se
realizar na mesma data em todo o território nacional”.
Segundo
um acórdão do STA (Supremo
Tribunal Administrativo)
de 20 de Março de 2002 e o Apêndice de 29 de outubro de 2003, “só é lícito ao
Governo lançar mão da requisição civil uma vez verificado o pressuposto do art.º
8.º da Lei da Greve (Lei n.º
65/77, de 26 de agosto),
que é a existência de uma greve instalada e em execução, na qual não estejam
assegurados os serviços mínimos, por as associações sindicais e os trabalhadores
terem faltado a esse dever”, sendo que “a ameaça feita pelo sindicato de que
esses serviços mínimos não serão assegurados não serve de fundamento à
requisição civil, que não pode ser decretada a título preventivo. Porém, alguns
constitucionalistas supõem que a requisição pode ser determinada previamente na
iminência de greve em que possam estar afetados os serviços mínimos (a efetivar apenas se for necessário).
Este mecanismo legal, que pode ser
acionado em casos de urgência, já foi usado várias vezes, nomeadamente em empresas de
transportes, contra greves da TAP (três vezes), da CP, mas também numa greve dos funcionários judiciais, em 2005, por
exemplo. Foi acionado em 1977 por Soares contra uma greve de pilotos da TAP, em
1997 por o Guterres e em 2004 por Passos Coelho também para a transportadora
aérea. E a 1.ª vez foi em março de 1976 para enfermeiros.
Tiago
de Magalhães, advogado de direito laboral da CMS Rui Pena & Arnaut explica:
“Apenas se deve recorrer a este
mecanismo quando um interesse público e nacional possa ficar comprometido em
virtude da ausência e/ou
incumprimento dos serviços mínimos a que uma greve obriga. De facto, e para que
não se possa afirmar que o direito à greve – que está consagrado na nossa
Constituição – está a ser violado em virtude da requisição civil é essencial
que estejamos perante uma situação excecional e extremamente gravosa.”.
A partir do momento em que a decisão da requisição civil é publicitada, tem efeitos
imediatos. Os enfermeiros terão de comparecer e retomar os seus postos. A
portaria que regulamenta a Resolução que a estabelece indica os seguintes elementos:
objeto, duração, autoridade responsável pela execução da requisição e o regime
de prestação de trabalho dos requisitados. Desta prestação não decorre qualquer
indemnização que não seja o salário ou vencimento decorrente do contrato de
trabalho ou da categoria profissional.
A requisição civil não pode
ser considerada limitação ao direito à greve pelo Governo, dado que “após o
cancelamento ou adiamento, na primeira ‘greve cirúrgica’, de cerca de oito mil
cirurgias, recorrendo o Governo ao mecanismo da requisição civil, esta é uma
decisão que já peca por
tardia. Por isso, alguns juristas sustentam que esta medida “não
estará mais do que a assegurar o direito à saúde dos cidadãos”, que vem sendo
afetado por uma (segunda) greve cuja legalidade é um
tanto ou quanto duvidosa, a duração excessiva e os efeitos nefastos.
O incumprimento da requisição civil pode ter consequências
disciplinares e até criminais.
Tiago
de Magalhães esclarece:
“Se
não for respeitado poderá levar a um procedimento disciplinar instaurado contra
o faltoso ou, no limite, um processo-crime por abandono de funções”.
Assim,
os trabalhadores que não compareçam ou recusem exercer funções podem levar com
processos disciplinares e/ou, em casos mais graves, pode mesmo ser invocado o
crime de abandono de funções. E pode estar ainda em causa o crime de
desobediência, como explica o advogado Pedro Antunes:
“Verificando-se
o incumprimento, verifica-se também a eventual sujeição às sanções
disciplinares legalmente previstas e, no limite, verificados os respetivos pressupostos, pode dar lugar ao
preenchimento do crime de desobediência”.
***
E, à margem da greve e das ações para a travar, o Governo
está a ponderar a apresentação de queixa no Ministério Público (MP) contra a
bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco. Em entrevista à SIC, no
passado dia 6, o Primeiro-Ministro afirmou que “a lei proíbe às ordens
profissionais a prática ou a participação em qualquer tipo de atividade
sindical”. Na prática, António Costa entende que as declarações da bastonária,
apoiando a greve, e a alegada participação na organização do protesto violam os
estatutos da própria Ordem e quer que Rita Cavaco seja punida por
isso. Costa fala em “factos apurados”, que demonstram “uma manifesta
violação daquilo que são as proibições resultantes da lei das ordens
profissionais”. Neste
sentido e segundo a norma do n.º 5 do artigo 3.º
do estatuto da Ordem dos Enfermeiros, “a Ordem está impedida de exercer ou de
participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a
regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros”.
Tudo
dependerá do tipo de queixa que o Governo apresentar contra a bastonária da
Ordem dos Enfermeiros. Se for um processo administrativo, por violação dos
estatutos das ordens profissionais, a consequência será a anulação do ato administrativo
que violou o dito estatuto.
Mas aí pode
haver um problema. Menezes Leitão, especialista em Direito do Trabalho, disse ao
Observador que não vê que ato
administrativo pode ser imputado à bastonária, já que não foi ela a convocar a greve.
Ao invés, apoiar um protesto, como Rita Cavaco parece estar a fazer, não é um ato
administrativo, pelo que não é passível de ser anulado. Porém, se, por
hipótese, fosse dado como provado que a convocatória da greve tinha sido feita
pela Ordem e não pelos sindicatos, o processo administrativo determinaria a
greve ilegal e torná-la-ia nula (com consequências para os
enfermeiros que tivessem aderido ao protesto, que, de imediato, teriam falta
injustificada).
Entretanto,
em resposta ao anúncio de que o Governo está a ponderar avançar com uma queixa
no MP, Rita Cavaco já veio garantir que está apenas a “apoiar a greve” e “não a
incentivá-la”. Em entrevista à SIC, a bastonária disse que é sua “obrigação
estar ao lado” da classe. E a Ordem dos Enfermeiros fez saber, em comunicado,
que a bastonária estará nas manifestações marcadas para o dia 8 e que convocou
os sindicatos responsáveis pelo protesto (Sindepor e ASPE) para uma reunião, que terá lugar a 12 de fevereiro,
às 14 horas, adiantando que estão também convocados os enfermeiros diretores
dos centros hospitalares onde decorrem as greves.
É caso para
perguntar se estas ações tornadas públicas não configuram, ao menos por cumplicidade,
o incentivo à greve.
Já sobre a
notícia de que o PS quer proibir os donativos anónimos no crowdfunding,
que está a financiar a Greve Cirúrgica dos enfermeiros, Rita Cavaco respondeu
categoricamente: “Eu faço do meu dinheiro
pessoal aquilo que bem entendo”. Tem razão em relação ao dinheiro pessoal,
mas pode não a ter em relação à origem das receitas ou aos meios de as obter.
Por alguma razão, o Presidente Marcelo exprime dúvidas sobre a
constitucionalidade do crowdfunding e o PS quer legislação que proíba o anonimato destes donativos.
É de
registar que esta não é a primeira vez que um bastonário duma ordem
profissional apoia uma greve da classe. Aconteceu em junho de 2012, quando o
bastonário da Ordem dos Médicos apelou à greve dos médicos em defesa do SNS (Serviço Nacional de Saúde) e dos doentes. Em declarações à
Lusa, José Manuel Silva, declarava:
“Temos de ser todos mais exigentes e muito
mais interventivos relativamente às medidas que estão a ser tomadas pelo
Governo e que estão a pôr em causa o SNS”.
O então bastonário apelou à participação dos médicos numa
greve de dois dias, 11 e 12 de julho, pedindo mesmo que a paralisação tivesse
uma adesão de 100%. O apoio do bastonário à greve terá então passado
despercebido, ao contrário do que acontece agora, com o Governo a pôr em causa
a atuação da bastonária da Ordem dos Enfermeiros a propósito desta greve.
***
A meu ver, choca a greve que incida exclusivamente no SNS e o
adiamento crasso de cirurgias prioritárias. Assim, não repugna a requisição civil
se concretizada apenas nos casos justificados. Porém, não havia necessidade de
o Governo afrontar a bastonária com um processo judicial, sobretudo porque a sua
atuação não configura claramente ato administrativo nem ilícito criminal. Que atue
o Governo a montante legislando, negociando e valorizando as carreiras.
2019.02.09 – Louro de Carvalho
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