Questionado pela Lusa
sobre a entrevista da Ministra da Saúde à RTP no passado dia 30 de janeiro, na
qual a governante admitiu equacionar meios jurídicos para combater a nova greve
dos enfermeiros nos blocos operatórios, o Ministério da Saúde (MS) adiantou que os referidos meios jurídicos podem
passar pela requisição civil, que vinha sendo afastada pela Ministra por a
considerar “opção extrema”, só utilizável quando não há cumprimento de serviços
mínimos.
Contudo, na entrevista à RTP, Marta Temido foi
confrontada com a greve dos enfermeiros nos blocos cirúrgicos de sete centros
hospitalares, que se prolonga até 28 de fevereiro, após as negociações com os
sindicatos terem terminado na de forma inconclusiva.
Apesar de, à face da lei da greve, essa solução não
ser possível se estiverem a ser cumpridos os serviços mínimos, alertou para o
“aspeto absolutamente incomum” da duração da greve e dos serviços em causa, que
merecem “serviços máximos”. Admitiu, sem especificar pormenores, “equacionar
outras alternativas de resposta e, eventualmente, meios de reação jurídicos” em
relação a esta greve, que replica o modelo duma paralisação de enfermeiros que decorreu
no final de 2018. E observou, ressalvando que não está em causa a legitimidade
das reivindicações:
“Em última instância, esta greve,
que já enfrentámos antes e que nos preparamos para enfrentar outra vez, convoca
para uma reflexão sobre questões éticas, deontológicas e sobre o exercício do
direito à greve”.
Outra possibilidade de recurso a meios jurídicos,
apontada pela tutela, na resposta enviada à Lusa,
é a análise pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República “do
exercício do direito à greve e licitude do financiamento colaborativo, entre
outras questões relacionadas com a greve em causa”. Deixa aqui transparecer a
existência de dúvidas sobre a legitimidade da origem dos donativos que formam o
fundo de greve. Terá este tido origem em contribuições de entidades privadas
seguras da ausência de greve nos seus serviços e presente explícita e
exclusivamente no SNS?
No atinente à diferença nos números relativa ao
impacto da subida salarial no escalão base da carreira dos enfermeiros de 1.200
euros brutos para os 1.600 reivindicados pelos sindicatos, o MS reiterou as
suas contas, afirmando que o custo é de 216 milhões de euros, e não os 120
milhões apontados pela bastonária da Ordem dos Enfermeiros. E esclarece a
tutela:
“Este cálculo teve em conta o número
de enfermeiros que à data da análise (janeiro de 2019) auferiam remuneração
compreendida entre 1201,48 euros e 1613,42 euros. Neste sentido, atendendo ao
diferencial encontrado, multiplicado por 14 meses e com encargos sociais
incluídos, a estimativa corresponde efetivamente a 216 milhões.”.
Porém, segundo a
Ordem, tal valor diz respeito a aumentos de salários nas várias categorias,
significando o aumento do salário-base no início de carreira um impacto de 120 milhões.
***
Na opinião de Vital Moreira expressa no blogue “Causa Nossa”, o recurso à requisição
civil
só peca por tardio, dado o tipo de greve em causa e “os efeitos devastadores
sobre o SNS e sobre quem precisa de cirurgias”, sendo que uma greve reincidente
desta natureza dificilmente seria tolerada “em muitos outros países”. Na
verdade, “a greve,
sobretudo em serviços de saúde, não pode ser um direito absoluto”. E,
afirmando o SNS como “vítima
especial do abuso das greves no setor público”, pois o setor privado é “muito
menos afetado, apesar das vantagens da função pública” (vg: menor tempo semanal de trabalho, segurança no emprego,
ADSE, etc.), o
constitucionalista avança com duas justificações: o facto
de o Estado não ir “à falência em caso de prejuízos” nem poder “encerrar os
serviços públicos e despedir o pessoal”, pelo que “os sindicatos não temem o
risco de as suas greves porem em causa a existência da empresa e os seus
próprios postos de trabalho, como sucede no setor privado”; e o facto de os
Governos se verem muitas vezes forçados a ceder, apesar de as reivindicações
serem “despropositadas e orçamentalmente ruinosas”, já que “as greves nos serviços
públicos (como transportes, educação e saúde) afetam
maciçamente os respetivos utentes, em especial os de menores rendimentos”. Ora,
claramente a greve no SNS constitui “uma
ajuda ao setor privado”, onde praticamente não há greves de médicos ou de
enfermeiros. Daí, digo eu, poderá haver consequências impensáveis em situações
normais quando o Parlamento tem em mãos a discussão de nova LBS (Lei
de Bases da Saúde)
em rutura com a vigente, aprovada em 1990 pela maioria PSD e que, por diplomas
complementares, permitiu que se chegasse à situação presente com os partidos da
direita a fustigar a esquerda e o Presidente a elogiar a proposta de Maria de
Belém, uma alteração de cosmética, e a pré-anunciar um veto político se a lei
que chegar a Belém não levar o aval do PSD (o trunfo do veto).
Diz Moreira que,
além das
greves, o SNS “é vítima de uma taxa de absentismo laboral muito superior
ao setor privado”, escorado nos números
conhecidos de “baixas por doença” e faltas injustificadas. Confesso que não sei
onde topou tais números indesmentíveis, que os media empolaram. Depois, acusa “a irresponsabilidade profissional,
o laxismo médico na baixa por doença fictícia e na falta de controlo e de
sanção disciplinar do absentismo injustificado.
Nestes
termos, assegura que as vítimas são os utentes, “que sofrem
a paragem dos serviços, e os contribuintes, que têm de suportar o
sobrecusto do SNS” – o que reforça “os argumentos em defesa dum sistema alternativo ao SNS, tendencialmente num sistema de
prestação privada de cuidados de saúde financiado pelo Estado”.
***
Quatro
décadas após a institucionalização do SNS pela Lei n.º
56/79, de 15 de setembro, no seguimento da Constituição de 1976, estando
em debate parlamentar uma nova LBS e apesar da abertura que lhe conferiu a LBS
aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, mantém-se largo consenso social e
político sobre a importância do SNS para garantir o direito de todos aos
cuidados de saúde, mas são diferentes as perspetivas políticas sobre a sua
configuração em concreto, nomeadamente quanto ao papel do setor privado e do
social. Tais divergências, porém, são concomitantes a todo o processo. Com
efeito, o PSD votou contra a criação do SNS em 1979 e, em 1993, no seguimento
da LBS que fizera aprovar em 1990, introduziu-lhe profundas alterações através
do Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro. E, após alguns anos de publicação
de legislação complementar entre a reafirmação do SNS e o relevo dado aos
setores não estatais, o confronto volta a aflorar à medida que o SNS perde
capacidade de resposta e o setor privado aumenta visivelmente a oferta e
recursos inoculando sub-repticiamente (e vivendo muito à custa
do Estado) o
descrédito sobre o SNS.
No quadro
constitucional, sem prejuízo da liberdade das pessoas de recorrerem ao setor privado
(por
financiamento próprio ou de seguros de saúde e similares), o SNS tem de ser um
serviço universal de de cuidados de saúde, devendo o Estado financiar a
prestação privada a título subsidiário, isto é, na incapacidade pontual do SNS
ou para lograr soluções financeira ou tecnicamente mais propícias. Nestes termos,
não se justifica, em termos constitucionais, o
modelo, defendido pelo PSD e pelo CDS, de tornar o Estado o financiador de
cuidados de saúde, deixando a cada utente a opção pelos prestadores, públicos
ou privados, em total concorrência.
***
Porém, nestes
40 anos do sistema público abundaram as medidas legislativas e governativas
indutoras da acumulação de dificuldades no SNS e do crescimento do setor
privado na saúde. E, apesar dos ganhos de saúde no país, o SNS está em
crescentes dificuldades para concretizar os objetivos que pautaram sua criação.
Entre
essas medidas, Manuel Alegre destaca a implementação das taxas moderadoras, que
pesam na carteira do cidadão de médios recursos e já está onerado em impostos (apesar
de metade dos utentes estarem isentos)
e a gestão empresarial dos hospitais públicos (para aumentar a
autonomia, a eficiência e a responsabilidade da gestão hospitalar, embora sem o
conseguir em grande medida).
E
Moreira elenca muito mais medidas: autorização ilimitada da acumulação de funções
no SNS e no setor privado; recrutamento político de gestores hospitalares do
SNS, em prejuízo do critério de mérito e a falta de responsabilização dos
gestores pelos resultados da gestão e pelos insuficientes ganhos de eficiência;
cedência aos interesses da indústria do medicamento e falta de protocolos
relativos à utilização de medicamentos inovadores, de preços exorbitantes;
elevado nível de absentismo, frequência de greves no SNS e atitude
corporativista de quase todas as ordens profissionais da saúde; falta de
avaliação de desempenho dos profissionais e dos serviços, para efeitos de
remuneração e de financiamento de uns e outros, respetivamente; sobrecarga do
SNS com pacientes hospitalizados sem alta por falta de cobertura da rede de
cuidados continuados ou por falta de apoio familiar domiciliário; e subfinanciamento
crónico, a causar a degradação dos serviços, a fomentar a contratualização
externa e a aumentar os atrasos nos pagamentos, agravando os preços cobrados.
São de
registar ainda as PPP hospitalares, pelo menos, nos termos em que foram
estabelecidas.
Sobre estas, Moreira diz não haver objeção de fundo (a Constituição não o impede) ao recurso às PPP hospitalares
para investir em novos hospitais do SNS e produzir um comparador de gestão
hospitalar com vista à redução do défice de eficiência da gestão pública. Mas o
Estado tem de acautelar uma interação vantajosa para si em termos financeiros e
de eficácia técnica e humana. A pari,
os hospitais PPP devem ficar sujeitos às s obrigações que os hospitais de
gestão pública, sob escrutínio das entidades reguladoras e supervisoras. Porém,
como refere Moreira, excluir
as PPP só por razões doutrinárias é dogmatismo político que redunda em prejuízo
do SNS e dos contribuintes.
Em síntese, embora a génese e configuração constitucional do
SNS faça dele um serviço universal e geral, na lógica do Estado
financiador e prestador, ao
longo dos anos foi minguando crescentemente a sua quota no mercado de saúde em
contraponto à expansão do setor privado e social. E foram dois os processos de crescimento do setor privado: o aparecimento
crescente e autónomo do mercado privado de saúde à margem do SNS, financiado
pelos utentes ou por esquemas de seguros de saúde (incluindo a ADSE e congéneres); e a contratação
externa de cuidados de saúde pelo SNS, por incapacidade de resposta do
serviço público.
No âmbito da incapacidade de resposta do SNS, insere-se o seu
défice de oferta em algumas áreas, como a medicina dentária, a oftalmologia e a
psiquiatria, deixando a porta aberta aos privados. Acrescem,
por outro lado: a complacência pública com a prática sistemática da contratação
externa de exames e meios de diagnóstico, com abandono ou subutilização dos
recursos e serviços do SNS; o exclusivo público de formação de médicos e
especialistas, com os enormes custos, mas sem dedicação exclusiva dos estagiários
e sem exigência dum período de serviço posterior no SNS, constituindo-se assim um
investimento público na medicina privada; e a atribuição de seguros de saúde
por entidades administrativas e empresariais públicas. Torna-se claro que o
setor é estimulado deliberadamente pelos agentes do Estado como meio de reduzir
a procura e os encargos do SNS. Por isso, não obstante a cobertura
tendencialmente universal (um
grande eufemismo) do SNS como serviço de provisão pública, a despesa pública
em saúde em Portugal está abaixo da média da OCDE, ao passo que a privada está
acima, mas respaldada grandemente em receitas públicas. E SNS corre o risco de
se tornar num subsistema subsidiário, devotado aos cuidados mais onerosos que o
setor privado não cobre (oncologia, doenças
vasculares, etc.) e às camadas populacionais sem meios para aceder ao setor
privado.
No nosso modelo de SNS, de tipo britânico, o financiamento
público é assegurado pelo orçamento, isto é com base nos impostos,
diferentemente do que sucede, por via de regra, nos sistemas de saúde
bismarckianos, financiados por contribuições
específicas dos beneficiários, dispondo de orçamento e gestão próprios – uma
espécie de seguro coletivo obrigatório por lei. É o que se passa com a ADSE, o
subsistema de saúde dos funcionários públicos (já não obrigatório), embora haja um copagamento maior ou menor dos cuidados
recebidos pelos beneficiários.
Nada obsta à adoção desse tipo de financiamento em relação ao
SNS, pois a Constituição não determina o seu tipo de financiamento público.
Porém, seria importante que essa contribuição para o SNS fosse fixada em função
dos rendimentos reais de cada um (e não
exclusivamente dos declarados!) e que a sua introdução fosse acompanhada da correspondente redução
da carga fiscal.
Essa fórmula alternativa de financiamento, que nunca entrou na agenda de reforma
do SNS, permitiria autonomizar o
sistema público de saúde da política fiscal e orçamental do Governo e
tornaria mais visível para os cidadãos a sua responsabilidade individual e
coletiva no adequado financiamento das despesas de saúde.
***
Leal da Costa propõe a universalização
dum sistema como a ADSE com financiamento através de contribuição de saúde
dedicada universal, de montante variável, segundo os rendimentos de cada um;
provisão de cuidados de saúde a cargo duma pluralidade de prestadores privados
convencionados, à escolha dos beneficiários; e remuneração dos cuidados de
saúde consoante normas estabelecidas ou acordadas com o financiador – mas com a
manutenção do atual SNS como subsistema autónomo residual, financiado pelo
orçamento, à margem do novo sistema.
Vital Moreira diz tratar-se de
substituir o modelo “beveridgiano” por uma variante do sistema “bismarckiano” a
conjugar “o financiamento público, por via da contribuição dos beneficiários,
com a provisão de cuidados de saúde através de entidades, públicas ou privadas,
aderentes ao sistema”. E à asserção do articulista de que o modelo “não
careceria de revisão constitucional, pois respeitaria os requisitos
constitucionais da universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade”, o
constitucionalista contrapõe:
“Este
modelo alternativo [afasta-se] substantivamente da solução constitucional, que
prevê, claramente não somente o financiamento público, mas também, por
princípio, a provisão pública de cuidados de saúde no âmbito do SNS”.
E Moreira questiona-se se os partidos
à direita adotarão tal alternativa ao SNS ou se continuarão a apostar na
manutenção do regime consagrado na atual LBS rumo à sua “asfixia e implosão”
pela “crescente privatização, por via de ‘subcontratação’, da função de
prestação do sistema público de saúde” ou pelo “desenvolvimento de um sistema
privado de saúde alternativo (seguros de saúde),
explorando as crescentes insuficiências e deficiências do SNS”.
O quadro atual do desenvolvimento da greve dos
enfermeiros parece apontar para essa linha. Com efeito, parece mostrar que o SNS continua, ante a
incapacidade negocial do Governo e a sua complacência com a situação, refém de
chantagem – não tanto sindical como porventura empresarial – como nenhum outro
serviço público, tanto mais que o setor privado da saúde se vê poupado a
semelhantes formas de paralisação, o que ajuda à sua procura.
Neste contexto,
torna-se significativo o CDS criticar o Governo por estar a destruir o SNS e o
Bloco de Esquerda a denunciar que, à medida que as negociações avançam, cresce
o caderno reivindicativo dos enfermeiros. E não é de esquecer o propósito explícito
“Vamos paralisar o SNS!” e o pré-anúncio
de veto presidencial.
(cf
JN, 31 de janeiro; Observador, 21 e 22 de janeiro; blogue Causa Nossa, 20, 21,23, 24 e 25 de janeiro e 1 e 5 de fevereiro)
2019.02.05 –
Louro de Carvalho
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