A primeira obrigação do trabalhador é trabalhar e fazê-lo com a maior e
melhor consciência profissional e a mais adequada dedicação, quer ao próprio
trabalho, quer aos seus beneficiários. Porém, esta obrigação não pode exceder
as forças físicas e psíquicas do trabalhador, que tem o direito e o dever de
zelar pela sua saúde e pelo cumprimento de outras obrigações também
importantes, tanto as que dizem respeito a si próprio como as atinentes à
família e à sociedade.
Se o trabalhador opera por conta própria, faz as suas interrupções de
acordo com o seu prudente juízo, que articula o direito-dever de repouso com os
compromissos assumidos e as finalidades do seu labor (abjurando da “ergofilia”). Mas,
se o trabalhador o faz por conta de outrem, obviamente terá de prestar contas
das suas ausências à entidade patronal. E, para regular as relações entre
empregador e trabalhador, está em vigor o código do trabalho e legislação
complementar.
No caso dos trabalhadores ao serviço do Estado, vigora como diploma de
referência a LTFP (Lei Geral do
Trabalho em Funções Públicas),
aprovada pela Lei n.º 35/2004, de 20 de junho, e cuja última alteração foi
introduzida pelo Decreto-lei n.º 6/2019, de 14 de
Janeiro, que altera a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, quanto à caducidade
dos processos disciplinares e às condições de exercício de funções públicas por
aposentados ou reformados.
A nossa
legislação laboral (e obviamente a que diz respeito aos
trabalhadores em funções públicas) prevê o regime
de trabalho e o do tempo de não trabalho. Ora, o trabalhador consciente não
pode compadecer ao trabalho se efetivamente estiver incapacitado, pois, em tal
circunstância, o trabalho pode colocar em risco o trabalhador, a produtividade
e até os destinatários do labor. E mal avisado é o empregador (nomeadamente o público) que força o trabalhador a
operar em estado de debilidade de saúde ou em condições sub-humanas. Ora, de
vez em quando, a comunicação social traz manchetes sobre as baixas médicas por
doença fraudulenta em que alegadamente incorrem trabalhadores por conta de
outrem, com relevo para trabalhadores em funções públicas e, em especial,
professores. O ano passado até a OCDE referia que as juntas médicas detetaram
muitas baixas por doença fraudulentas, falando em aproximadamente metade das
ocorridas.
À partida, o
atestado médico (agora certificado de incapacidade
temporária – CIT) faz fé. É certo que os serviços
podem e (devem ao 8.º dia de ausência) mandar verificar a doença do trabalhador através da visita domiciliária
da competente autoridade sanitária, o que tantas vezes se deixa de fazer, sendo
mais fácil mandar atoardas para os jornais sobre alegadas situações
fraudulentas. Porém, quando gestores intermédios tinham provas iniludíveis de
funcionários que efetivamente não estavam doentes, escalões superiores da hierarquia
pública não os deixavam atuar.
Quanto à
alegada verificação da OCDE sobre baixas fraudulentas, veio a saber-se que as
juntas médicas concluíam da fraudulência, porque muitos funcionários, quando se
apresentavam à junta médica, já estavam em condições de trabalhar, mascarando o
facto de que a submissão à junta sucede bastante tempo depois de o trabalhador
estar de baixa – mais de 60 dias consecutivos de ausência por doença – o que
não significa que esse tempo fosse de fraudulência. Aí tinha razão Filinto
Lima, presidente da ANDAEP (Associação Nacional de Diretores de Escolas Públicas), ao aduzir tal facto na comunicação social a propósito da atoarda da
OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico), dizendo que habitualmente o trabalhador, quando
vai ao médico e vem com o CIT, está mesmo doente. Mas o Governo, em vez de
acreditar em Filinto Lima, preferiu acreditar na OCDE, como se o trabalho desta
fosse resultado de encomenda e jurou combater as baixas fraudulentas. Porém,
não se sabe que o Estado não estabeleceu um regime de controlo das condições de
saúde dos seus funcionários nem pensou, de imediato, em corrigir tal situação.
E a Resolução do
Conselho de Ministros n.º 28/2019, de 13 de abril, que entrará em vigor até
final de 2020, não resolve o problema atual e não sei se o resolvera no futuro.
Por outro lado, pergunta-se porque se impõe que a determinados serviços só pode
faltar-se com atestado médico, sem atender à razoabilidade dos motivos
invocados.
***
É mau,
muito mau mesmo, o trabalhador estar de baixa por doença sem efetivamente estar
doente, mas igualmente mau ou ainda pior é o que refere o JN de hoje, 21 de fevereiro, a pgs 9. Com efeito, Alexandra Inácio
escreve, em título, que “professores
em maca e sem voz estão a ser mandados dar aulas” e, em pós-título, que
“diretores dizem que decisões da ADSE
são ‘inadmissíveis’ e que docentes, escolas e alunos são penalizados”.
A denúncia é feita pela Fenprof (Federação Nacional de Professores): há professores doentes, de baixa prolongada em situação incapacitante (alguns, três anos – prazo máximo) que estão a receber ordem da junta médica da ADSE para regressarem às
suas escolas.
Mário Nogueira especifica de
viva voz:
“Uma das professoras está de maca, não se
consegue pôr de pé. Outras duas não conseguem falar. Uma outra tirou um tumor
na garganta; outra sobreviveu a três AVC. É humilhante.”.
E mais podia dizer. Uma
professora que não pode escrever foi obrigada a ir dar aulas de Física e de
Química, como uma professora com doença degenerativa em estado avançado teve de
regressar ao serviço.
Porém, o líder da Fenprof, referindo que a
Federação espera, desde outubro, pela resposta do ME (Ministério da Educação) ao pedido de reunião por causa
destes casos, esclarece:
“Não estamos a falar de pernas
partidas ou fortes gripes. São situações de extrema fragilidade: casos de
cancro, AVC, hemodiálise, alguns que nem conseguem falar ou pôr-se de pé.”.
Desde abril de 2018, quando as juntas médicas passaram da DGEstE
(Direção-Geral dos Estabelecimentos
Escolares) para a ADSE –
o Governo prometeu ganhar milhões de euros com a travagem das baixas por doença
e quer levar tudo a eito – que as escolas passaram a receber cada vez mais
professores em situação incapacitante. Sem apontar um número, Mário Nogueira
revela que, pelo menos, 20 decisões estão a ser contestadas e acompanhadas, em
contencioso, pelo gabinete jurídico da Fenprof.
Por seu turno, o presidente da ANDAEP, Filinto Lima, já
mencionado, assegura que quase “não deve haver escola sem um caso destes”.
A declaração da junta médica passada aos professores pela
ADSE define que o regresso seja para “serviços moderados, adaptados à sua
condição clínica”, cujas condições devem ser definidas pela medicina
ocupacional. E Mário Nogueira frisa que a lei não especifica o que são
“serviços moderados” e a medicina do trabalho não intervém nas escolas. E eu acrescento:
ao invés do que sucede que com a obrigação empresarial (que alguns empregadores observam, nomeadamente
a banca), nem a ACT (Autoridade para as Condições do
Trabalho) intervém nas
escolas.
Porém, apesar de a lei não especificar o que são “serviços
moderados” ou “adaptados”, talvez os diretores pudessem socorrer-se da sua
criatividade autónoma – que o Estado tanto apregoa como cerceia, só a
concedendo residualmente e para questões de lana
caprina – e atribuir a estes docentes trabalhos de cooperação com outros
colegas, nomeadamente em coordenação e planeamento de atividades. Ora, isto
fica altamente dificultado quando obrigatoriamente os docentes substitutos, que
percebem um vencimento de miséria, são obrigados a afastar-se aquando do
regresso do titular do respetivo horário.
Antes da passagem das juntas médicas para a ADSE, os docentes
que prolongavam as baixas até 18 meses e, para algumas doenças, até 36 meses (tempo máximo), passavam da junta da DGEstE para a
da CGA (Caixa Geral de
Aposentações) “para
eventual decisão sobre a sua aposentação por incapacidade total e permanente
para o exercício da profissão”.
Ora, antes que me esqueça, quero perguntar se a ADSE se sente
confortável em fazer uma coisa que é da competência do empregador público,
fiscalizar o regime de não tempo dos seus subscritores, utilizando assim
indevidamente os 3,5% do vencimento ou pensão que lhe entregamos todos os meses.
Perceberia perfeitamente que algum médico da ADSE integrasse uma junta de verificação
de doença prolongada, mas como provedor do subscritor, não como provedor do
patrão público e sobretudo compondo integralmente o grupo fiscalizador em nome
do Estado. Como está, essas juntas médicas são a aberração institucionalizada,
que funciona, na prática, como látego contra os doentes públicos, quer pela
frequência com que os obriga à sua frequente submissão, quer pelas previsões do
tempo em que terão de ir trabalhar, quer pela pressa com que são atendidos,
quer pelas condições degradantes de espera no próprio local de atendimento.
***
Em comunicado, a Fenprof questiona:
“O que são serviços moderados? Atribuição de
menos turmas? Atividade que não obrigasse a falar? Atividade que não obrigasse
a permanecer de pé?”.
E Mário Nogueira e os líderes das duas associações de
diretores referem que o professor que tenha de regressar à escola, tem de o fazer,
pelo menos durante 30 dias, tendo o professor contratado, seu substituto, tem
de sair do horário e passando o docente regressado a assumir o seu horário.
Manuel Pereira, presidente da ANDE (Associação Nacional de Dirigentes
Escolares) sublinha que “os
diretores não têm por onde fugir”, pois “têm de cumprir a lei”. E insiste:
“São professores que assim que sabemos que
vão regressar, será por apenas 30 dias e que depois voltam a pôr baixa.
Entretanto, os alunos perdem o docente que lhes estava a dar aulas e, depois
desse mês, temos de lançar novo concurso. São situações de enorme prejuízo para
os alunos.”.
Por sua vez, o presidente da ANDAEP considera:
“É tirar a dignidade a uma pessoa, em
situação de extrema fragilidade, a maior parte no fim da carreira. É
inadmissível.”.
Os dois diretores consideram que o ME deve esclarecer os
procedimentos que as escolas devem seguir nestes casos e reclamam autonomia
para manter os professores contratados nos horários e atribuir outras funções
aos titulares regressados.
***
Parecido com o que se passa com os docentes acontece com os assistentes operacionais
nas escolas. Dadas as condições presentes, estes funcionários também entram em situação
de incapacidade temporária. E, se já são poucos, menos ficam porque os doentes
não são substituídos. Os casos surgem recorrentemente relatados na comunicação social.
Ainda gora o JN da conta do que
sucede em Canelas. Por falta de assistentes operacionais, professores e alunos ajudam
nas limpezas.
A isto, o ME, que desde o fim da troika admitiu cerca de 2500 assistentes
operacionais (AO) nas escolas, tendo começado por 300, vem agora anunciar a solução. Assim, a Secretária de Estado Adjunta e da Educação revelou que o Governo
vai contratar mais mil funcionários (aliás 1067) para as escolas e criar
uma bolsa que permita aos diretores substituir trabalhadores de baixa médica. A
este respeito, disse no Fórum TSF
hoje, dia 21:
“Vamos já hoje autorizar – e isto está ser
trabalhado com as Finanças há muito tempo – a contratação de mil assistentes
operacionais para as escolas portuguesas. Mais mil assistentes operacionais.”.
E a Secretária
de Estado garantiu que essas contratações serão por tempo indeterminado.
O anúncio
foi depois confirmado pelo Ministro da Educação no final do Conselho de Ministros:
o número de contratações será, afinal, de 1067 assistentes operacionais. Tiago
Brandão Rodrigues explicou que o reforço foi articulado com o Ministério das
Finanças e que o objetivo é que as escolas abram os concursos o mais
rapidamente possível.
O presidente
da ANDAEP aplaudiu tanto o reforço do número de assistentes operacionais como a
criação da bolsa, reivindicada há anos pelos diretores que já a desejavam
incluir na portaria de rácios na última revisão.
Já Artur
Sequeira, dirigente da FESAP Federação Nacional dos Sindicatos dos
Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais frisou que as mil contratações são
positivas, mas insuficientes para responder à escassez a que as escolas
chegaram. E esclareceu:
“Claro que não desvalorizo. O anúncio é
resultado da denúncia e luta dos trabalhadores, alunos, pais e professores que
têm feito queixas constantes e que forçaram Ministério da Educação e Ministério
das Finanças a dar uma resposta.”.
O dirigente
sindical recorda que 2500 funcionários contratados durante esta legislatura têm
contratos a termo certo (anuais) e desde o
início do ano letivo, só nas escolas cujos AO estão sob alçada do ME, foram
recrutados mais de 2500 trabalhadores a tempo parcial – a maioria por três
horas por dia (tarefeiros). E a Federação
estima que, “mesmo que estes 5000 entrassem nos quadros podia não resolver o
problema”, pelo que reivindica do Governo uma revisão imediata da portaria de
rácios, um regime especial de aposentação e a recuperação da carreira especial
para os não docentes, pois a idade média dos AO é superior a 50 anos. Assim, não
admira que haja “tantas baixas por tempo prolongado”.
***
Enfim, além
de o Estado dever rever as condições de trabalho do pessoal docente e do
pessoal não docente nas escolas acabando com situações sub-humanas, incluindo o
salário de miséria, deve reforçar a autoridade dos professores e dos demais
trabalhadores públicos e, para já, acabar com a prepotência de obrigar doentes
a trabalhar, pensando a prazo na instituição de um sistema de controlo eficaz
da saúde dos trabalhadores da administração pública, atalhando a tempo as
situações verdadeiramente fraudulentas. Obrigar quem está doente a trabalhar,
alegando boa saúde, não deixa de ser fraude e bem amarga para quem a sofre. O mesmo
se diga da pretensa indução de levar alguém a uma situação de aposentação antecipada
por motivo de doença com as fortes penalizações em vigor.
2019.02.21 –
Louro de Carvalho
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