As últimas semanas têm sido palco de notícias referentes ao anúncio de
suspensão, ou mesmo de rutura, dos acordos de prestadores privados de cuidados
de saúde em que se destacam alguns grupos bastante poderosos, como a José de
Mello Saúde, que já disse ter estabelecido tabela de preços especial para os
beneficiários deste subsistema, a Luz Saúde e o Hospital dos Lusíadas. A par da
postura destes grupos e em contraste com ela, surge a Fundação Champalimaud a descrever como
sereno e “perfeitamente normal” o relacionamento que a instituição mantém com a
ADSE, sem registo de problemas.
A este respeito, Leonor Beleza, presidente da Fundação
sustentou:
“A convenção está a
funcionar em termos normais. O que precisamos de discutir com a ADSE discutimos
tranquilamente. Não temos intenção de provocar qualquer tipo de alteração.”.
***
Criada pelo Decreto-lei n.º 45002, de 27 de abril de 1963, a
ADSE completará, este ano, 56 anos ao serviço da proteção dos funcionários
públicos, nos domínios da promoção da saúde, prevenção da doença, tratamento e
reabilitação. Começando por abranger apenas os servidores civis do Estado, o seu
âmbito de abrangência foi sucessivamente alargado, englobando, a partir de 1970,
os cônjuges, a partir de 1971, os descendentes menores de 7 anos e, a partir de
1972, todos os descendentes menores. Assim, contando com apenas 57.174
beneficiários em 1966, rapidamente atingiu o milhão de beneficiários a partir
de 1978. E, desde a sua criação, já financiou mais de 15 biliões de euros em
cuidados de saúde.
Hoje conta com 1,2 milhões de beneficiários, entre funcionários públicos
no ativo, aposentados do Estado e familiares. É um sistema de saúde pago com os
descontos mensais dos titulares.
Funcionando,
há mais de meio século, como uma espécie de seguro de saúde dos funcionários
públicos e aposentados que, a troco do desconto mensal de 3,5% sobre o seu salário
ou pensão, podem ter acesso a prestadores de saúde privados a preços mais
baixos, no regime convencionado, e ser reembolsados a posteriori, se recorrerem ao regime livre.
Nos últimos
tempos, a ADSE tem estado envolta em polémica por causa do diferendo com alguns
hospitais privados, surgido porque este instituto público de gestão participada
exige a devolução de 38 milhões de euros por excesso de faturação em 2015 e
2016, que os serviços detetaram. Isto, no quadro dum agitado período de negociação
em torno da tabela de preços da ADSE, alguns dos grandes grupos de saúde
privados a ameaçar romper as convenções com este subsistema de saúde a partir
da segunda semana de abril.
A ADSE, como
Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado, foi criada a 27 de abril
de 1963, sem que os beneficiários efetuassem qualquer desconto para o subsistema.
De início, só abrangia os funcionários públicos no ativo, mas foi sendo
alargada aos dependentes, cônjuges e aposentados. E, em 1979, os beneficiários
passaram a contribuir para este sistema de saúde com 0,5% do salário, ficando isentos
os aposentados.
Em 1980, a
ADSE passou a Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções
Públicas, mantendo a sigla, e a contribuição passou para 1%, vigorando por mais
de 20 anos.
Em 2006, o
Governo de José Sócrates introduziu várias alterações ao funcionamento e ao
esquema de benefícios da ADSE, sendo equiparada a entidade administradora das
receitas provenientes do desconto obrigatório. A inscrição deixou de ser
obrigatória e os beneficiários passaram a poder renunciar a este subsistema de
saúde, mas sem hipótese de regressar. E, em 2007, a contribuição dos
funcionários no ativo aumentou para 1,5% e os aposentados passaram a contribuir
com 1% da pensão (exceto os que percebessem pensão igual ou inferior ao
RMMG - remuneração mensal mínima garantida), percentagem que foi subindo até
atingir 1,5%. Os descontos passaram então a constituir receita própria da ADSE.
E, em 2008, foi adotado um novo logótipo.
Na vigência do
programa de ajustamento, em 2012, os encargos de saúde dos beneficiários em estabelecimentos do
SNS deixam de ser suportados pela ADSE; em 2013, a taxa de desconto dos beneficiários aumentou num primeiro momento
para 2,25% e num segundo momento para 2,5%; e, menos de um ano depois, em maio
de 2014, voltou a subir para 3,5%, valor que se mantém hoje. Nesse ano, as
receitas provenientes dos descontos ultrapassaram 520 milhões de euros (contra cerca
de 280 milhões de euros em 2013). Foi nessa
altura que o subsistema deixou de receber verbas do Orçamento do Estado e
passou a ser suportado integralmente pelos descontos dos beneficiários, tendo
registado o seu primeiro excedente, de 63 milhões de euros, em 2015.
Era usual a
ADSE pagar integralmente as despesas com a saúde dos beneficiários em hospitais
públicos desde que em urgência, tratamento ambulatório e internamento em regime
enfermaria, sendo que em regime de quarto o beneficiário pagava a diferença. Também
era este subsistema que custeava a comparticipação pública nos medicamentos.
Tudo isto cessou com a troika. O SNS deixou de ter acordos com a ADSE e
responsabiliza-se por toda a comparticipação pública na aquisição do
medicamento por parte dos doentes. Os funcionários públicos passaram a ter
acesso ao SNS e a recorrer aos prestadores privados com acordo com a ADSE ou ao
regime livre, com o reembolso posterior de parte das despesas feitas.
Em 2015, a
ADSE passou para a tutela do Ministério da Saúde e, em 2016, foi criada a
Comissão de Reforma do modelo da ADSE, passando esta a Instituto de
Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE,
IP)
a partir de 1 de janeiro de 2017. E,
no final desse ano, começou a discutir-se a atualização das tabelas da ADSE, o
que deu o diferendo com os hospitais privados.
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Segundo o
último relatório de contas da ADSE, o universo dos prestadores convencionados,
em 2016, abrangeu 1.613 entidades. Cerca de 908 mil beneficiários procuraram a
rede da ADSE, enquanto 475 mil recorreram ao regime livre. Da demonstração de
resultados daquele ano conclui-se que os custos com o sistema de financiamento
de cuidados de saúde, suportados diretamente pela ADSE, foram 538,8 milhões de
euros (um acréscimo
de 19,6% face ao ano anterior). E a
faturação dos prestadores da rede convencionada aumentou 26,3% entre 2015 e
2016 para 405,3 milhões de euros. O custo médio por beneficiário no regime
convencionado tem vindo aumentar substancialmente ao longo dos últimos anos,
tendo crescido 29,6% entre 2015 e 2016, para 331,45 euros. Já o custo médio por
beneficiários em regime livre foi de 137,74 euros.
***
As novas
tabelas apresentadas ao setor privado suscitaram fortes críticas, considerando a
APHP (Associação
Portuguesa de Hospitalização Privada) que os valores
comportam perdas incomportáveis para o setor e põem em causa o acesso dos
beneficiários aos cuidados de saúde. E o bastonário da Ordem dos Médicos, em
declarações à Lusa em janeiro de
2018, classificou como “absolutamente escandalosos” os preços que a ADSE paga
por alguns atos médicos, o que podia levar os privados recusar o seguro da ADSE
nestas circunstâncias. A discórdia agravou-se nos últimos meses quando, em dezembro,
o conselho diretivo deste instituto público de gestão participada comunicou aos
hospitais e clínicas privados que estes teriam de devolver 38 milhões de euros
devido a excessos de faturação efetuados entre 2015 e 2016. E fê-lo com base num
parecer da PGR (Procuradoria-Geral da República) que surgiu na sequência de recurso à justiça por
parte da APHP onde contestava as regularizações. Com efeito, segundo o conselho
diretivo da ADSE, IP, os prestadores de saúde podiam faturar o valor que
entendessem sobre atos médicos (sobretudo medicamentos, dispositivos ou cirurgias, sem
que estivesse definido um valor máximo). Porém,
estão sujeitos a regularização posterior, já que em 2009 foi introduzido o
princípio da regularização. Ora, a APHP alegou desconhecimento do parecer da
PGR, vincando que o assunto estava a ser dirimido nos tribunais, tendo em seu
poder um parecer de Vital Moreira, a defender o contrário. E, para a APHP, “não
é razoável pretender fazer regularizações retroativas de faturas conferidas e
pagas”, com base em valores desconhecidos e sem ninguém saber do seu contexto.
No entanto, é intolerável a disparidade enorme entre os prestadores para o
mesmo ato médico e o mesmo medicamento, como a sobrefaturação. E esses erros
devem corrigir-se quam primum.
Assim, no
final de 2018, a APHP realizou uma assembleia geral extraordinária para
analisar a situação e o presidente da associação disse que alguns prestadores
admitiam deixar a convenção com a ADSE, tendo já dado corpo a essa intenção os
grupos acima referidos, cujo montante de faturação resulta em 25% dos serviços
prestados aos beneficiários da ADSE.
Tal decisão
criou ondas de mal-estar geral e reações dos vários partidos políticos, alguns
dos quais jogaram o facto como arma de arremesso contra o Governo pelo estado
em que está o SNS, do Primeiro-Ministro, que acredita nos acordos e que diz que
a ADSE não vai acabar (morte que alguns desejam e vaticinam), e do Presidente da República, que apelou ao entendimento.
***
Por outro lado, a presidente do conselho diretivo da ADSE disse, na Comissão Parlamentar de Saúde (onde foi ouvida a pedido do CDS-PP,
BE e PSD sobre a polémica), que o instituto vai avançar com novo sistema de combate à fraude que
monitorize e evite “comportamentos desviantes”.
Aquela
dirigente, que garantiu que a proposta com as novas tabelas será apresentada
“dentro de muito pouco tempo”, defendeu que há “um caminho” a fazer de
“controlo, modernização” que leve a fazer atempadamente um conjunto de análises
tendentes à monitorização e a “evitar comportamentos desviantes ou, pelo menos,
atuar se eles vierem a acontecer”. E frisou:
“Nesse sentido, a ADSE adjudicou, há poucos
dias, um processo de ‘business intelligence’ e tem por objetivo este ano
avançar para um sistema que acompanhe aquilo que são as práticas dos dias de
hoje em termos internacionais de fraude em saúde”.
Trata-se,
para Sofia Portela, de fraude “no sentido mais lato”, ou seja, “abuso,
desperdício, no fundo, é avaliação de comportamentos desviantes”. Porém, já em
2018 a ADSE avançou com vários instrumentos com vista à eficiência e controlo,
como a faturação eletrónica, a exigência do número da cédula do médico e o
processo de autorizações prévias para vários atos, processo que deverá ser
alargado – um caminho a fazer em diálogo com os prestadores.
***
Por seu turno, o presidente do CGS (Conselho
Geral e de Supervisão) da ADSE defendeu, no Parlamento, em audição na predita comissão, realizada a pedido BE e do PSD, sobre a
situação atual da ADSE, que as tabelas
com os novos preços do subsistema de saúde da função pública (para o
regime livre e para o convencionado) devem ser publicadas, com ou sem acordo dos
privados, embora preferencialmente com acordo. Ainda não foram
publicadas por “falta de cooperação” de alguns grandes grupos privados e por
haver um levantamento “demasiado demorado” que está a ser feito por parte do
conselho diretivo sobre custos de próteses e medicamentos.
Sobre o
alargamento da ADSE a novos beneficiários, nomeadamente aos contratos individuais
de trabalho (CIT) no Estado, Proença considerou “um
abuso” ter Sofia Portela anunciado na comissão que está a fazer um estudo
adicional sobre o assunto, depois de o CGS ter já realizado um sobre a
sustentabilidade do sistema. A este propósito, Proença referiu que, no geral, a
relação entre o conselho diretivo e o CGS tem sido “razoável” e não “boa”.
Também para José
Abraão, membro do CGS presente na audição parlamentar, em causa está um
universo potencial de 80 mil novos beneficiários, a maioria dos quais com CIT no
Estado.
A ADSE quer
novos beneficiários para reforçar receitas. E considera que não é necessário
negociar tabelas, só regularizações. Mas o presidente do CGS afirma que “é totalmente falso que a ADSE esteja com
dificuldades financeiras” e totalmente inaceitável que esteja a envelhecer “quando
há imensa gente que quer entrar na ADSE”, sendo apenas necessário o aumento de
receita com a abertura do regime a novos beneficiários, como os trabalhadores
com CIT no Estado, e reforçar pessoal e instrumentos de gestão do instituto
público.
O
Conselho, lembrou Proença, realizou um estudo sobre a sustentabilidade do
subsistema de saúde público que recomenda o alargamento do universo de
beneficiários e a celebração de novas convenções – que está paralisada. O
estudo realizado pelo órgão de supervisão foi entregue ao governo em dezembro,
tendo por base os indicadores do SNS, e não está ainda publicado (o
CGS admite publicar uma versão resumida).
Segundo
Proença, a direção da ADSE deve negociar o processo de regularizações de
faturas passadas que exige 38,8 milhões aos hospitais privados, mas não
necessariamente a fixação de preços máximos nas tabelas de preços. O processo
de revisão foi iniciado em alguns itens em 2009 e teve a última revisão em
2014, com a proposta de fechamento de preços que levaria à regularização de
faturas de próteses e de medicamentos. E o presidente do CGS, que assegura que
tem vindo a pedir “a rápida publicação das tabelas”, salientou que a demora
acontece “por falta de cooperação de alguns, nomeadamente, os grupos privados,
que recusaram entrar no sistema, para os medicamentos e para as próteses”. E Proença
lembra ter sido, após 1 de outubro de 2014, que os prestadores de cuidados do
regime convencionado recusaram colaborar com a ADSE na entrega de elementos
pedidos, como número de cédulas de médicos responsáveis por prescrições e
códigos dos consumos de saúde faturados. Além disso, em maio de 2018, recusaram
a generalização do regime de autorizações prévias de despesa e faturação.
***
Talvez ficasse
mais barato ao Estado ter mantido a relação com a ADSE e com as seguradoras no
SNS, chamando os privados, também convencionados, à prestação de serviços de saúde
em regime supletório ou promoção dos beneficiários. O SNS precisa de ser mais
robusto, o que se obtém pela diversidade de financiamento, pela intervenção reguladora,
fiscalizadora e corretiva do Estado ao nível de preços, faturação e qualidade
dos serviços (prevenindo, travando e punido o chico-espertismo), pela dignificação das carreiras
e pela motivação da sociedade civil. Um sistema puro, embora desejável, não
existe, seja na saúde, seja em qualquer campo de atividade. Por isso, o Estado
não devia descurar a saúde dos seus trabalhadores, como deveria incitar o setor
empresarial e o social (privados e cooperativos) a fazerem o mesmo em relação
aos seus.
Tudo funciona
melhor com a cooperação de todos. E o Orçamento do Estado ficaria menos depauperado
se a contribuição para o SNS fosse paulatina e diversificada do que se tiver de
vir apagar a posteriori apagar fogos de
dívidas de milhões, como vem acontecendo.
2019.02.27 –
Louro de Carvalho
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