O DN
revelava, a 12 de janeiro, que Elisabete Jacinto foi a primeira piloto
portuguesa a vencer o África Eco Race.
Com efeito, embora a 12.ª e última etapa se cumprisse no dia seguinte, os 22 quilómetros cronometrados cumpridos em torno das
margens do Lago Rosa, em Dakar, no Senegal, já não entravam na classificação
final.
A piloto, em
MAN, tinha vencido a prova de todo-o-terreno África Eco Race ao terminar na 2.ª posição nos camiões a 11.ª etapa
da competição, que decorreu na Mauritânia. E confessou:
“Hoje correu tudo bem. Apesar de ainda termos feito algumas travessias
de dunas, logo nos primeiros quilómetros, a especial era curta e muito rápida.
Não tivemos problemas a assinalar e conseguimos imprimir um bom andamento.
Alcançámos o segundo lugar nesta especial, que é muito positivo, e estamos
verdadeiramente felizes com a nossa prestação neste África Race.”.
A equipa
lusa, composta por Elisabete Jacinto, José Marques e Marco Cochinho, cumpriu em
2.02.09 horas os 217,69 quilómetros cronometrados da especial, que ligou Akjout
e Fimlit, na Mauritânia, ficando a apenas 1,49 minutos do checo Tomas Tomecek,
vencedor da tirada.
Na
classificação final, Elisabete Jacinto ficou com uma diferença de 2:42.00 horas
para o segundo classificado, o belga Noel Essers. E alcançou o 7.º lugar da
classificação conjunta de automóveis/camião, fechando a competição com a 5.ª
posição da geral.
A piloto
portuguesa tem no seu historial vários triunfos entre os T4 (camiões) nas mais diversas provas africanas (Rali de
Marrocos e Rali da Tunísia), mas nesta
longa maratona de todo-o-terreno, uma das maiores da atualidade, a sua melhor
classificação tinha sido até agora o segundo lugar da classe que alcançou em
dois anos consecutivos, 2011 e 2012. Desta
feita, Elisabete Jacinto conseguiu o que “mais nenhum português fez”: venceu o África Eco Race, o rali-maratona de
África com cariz revivalista do antigo Rali Dakar. À
terceira foi de vez para a piloto portuguesa, que levou finalmente o MAN TGS
com o navegador José Marques e o mecânico Marco Cochinho ao primeiro lugar do
pódio, secundados pelo carro de apoio com três elementos. E não podia estar
mais feliz, como declarou eufórica ao DN,
a 13 de janeiro, depois de completar a última etapa, a da consagração, no Lago
Rosa em Dakar, no Senegal:
“Sinto-me muito bem, a sensação é muito boa, é uma sensação de dever
cumprido, de sonho realizado, no fundo de justiça por aquilo que fiz e
trabalhei durante vários anos. Foi para isto que eu trabalhei durante 16 anos”.
Não é
mulher de meias palavras nem se põe em bicos de pés. Contudo, não teve problema
em dizer que há anos sentia ter condições para vencer uma prova deste nível, mas
que nem sempre as coisas corriam de feição. Ora, este ano, como disse, “o gozo
desta corrida foi maior, ganhar a camiões com orçamentos que são o dobro do [seu]
ou mais, com equipa de apoio gigantescas”.
Começou
a preparar-se em 2003, quando trocou a moto pelo camião e foi aprendendo com os
erros, muito trabalho, persistência e espírito de equipa. E revela a este
propósito:
“Nos primeiros tempos era uma anedota, andava de noite e de dia,
arrastava-me pelo deserto fora... Para ter uma ideia eu ia para o deserto com
os pneus demasiados cheios e não sabia. Fui vendo como o camião reagia, fui
aprendendo e ganhando experiência e comecei a perceber que a minha condução
melhorava ao mesmo tempo que melhorava coisas no camião. Investi numa boa
equipa de apoio, melhorei a minha estrutura e o progresso notou-se logo. Eu e o
camião crescemos juntos.”.
Confessou
ao DN, em 2018, que temia que nunca a
vissem como piloto e se referissem a ela como a “mulher do camião”. Agora, com
este triunfo reconhece ter dado mais um passo, esperando que os “deem uma boa
educação aos filhos, uma educação baseada na igualdade”. Agora, quer descansar
e, depois, pensar e fazer um balanço. Para já, feliz por fazer “aquilo que mais
nenhum português fez neste tipo de provas”, propõe-se:
“Cheguei aonde queria chegar, adoro isto, andar aqui a guerrear com os
homens e a chateá-los por chegar à frente dele, mas estou cansada de andar a
correr pó só para mostrar que sou boa piloto. Agora vou descansar e depois vou
parar para pensar.”.
E
destacou a sua proeza comparativamente com a de outra mulher, mas alemã:
“Foi um dia histórico para o desporto motorizado internacional, pois é a
primeira vez que uma mulher vence uma longa maratona de todo-o-terreno ao
volante de um camião. A alemã Jutta Kleinshmidt foi pioneira entre os
automóveis, ao vencer em 2001 o Paris Dakar aos comandos de um Mitsubishi.
Agora Elisabete Jacinto torna-se precursora nos camiões.”.
Anote-se
que o África Eco Race é a maior
maratona de todo-o-terreno do continente africano e realiza-se sempre em
janeiro (entre
os dias 12 e 14). A
caravana atravessa Marrocos, Mauritânia e Senegal, finalizando no Lago Rosa, em
Dacar, numa prova com mais de cem participantes. A ideia dos organizadores era
criar uma prova onde se mantivesse vivo o espírito do Rali Dakar, após o
cancelamento da edição de 2008. E foi isso que seduziu Elisabete, que falhou o
primeiro African Race para “experimentar
o rali América Latina”, como chama ao Rali Dakar, aliciada pelo prestígio da
prova e pela “curiosidade” de ver como seria o rali fora de África, mas ficou
desiludida com o que encontrou, não era nada como o Dakar africano, que
adorava; era uma grande corrida, mas não era para aquilo que tinha batalhado. Por
isso, optou pelo African Race.
Natural
de Lisboa, a professora de geografia, autora de vários manuais escolares, com
54 anos, tem no seu historial vários triunfos entre os T4 (camiões) nas mais diversas provas
africanas (Rali de Marrocos e Rali da Tunísia), mas nesta longa maratona de
todo-o-terreno, uma das maiores da atualidade, a melhor classificação tinha
sido até agora o segundo lugar da classe.
***
Lamenta o
facto de Portugal não olhar “para as mulheres atletas da mesma forma que olha
para os atletas homens” e o facto de haver quem pense que o desporto não é para
mulheres e diz:
“Ultrapasso isso com inteligência e bom senso, mas a maior parte das
vezes a culpa é nossa, das mulheres, que nos colocamos rótulos e barreiras.
Gostamos de nos refugiar na sociedade que nos impõe obstáculos sociais e
culturais, que nos afastam do desporto.”.
Mas se
Elisabete desbravou o caminho feminino no desporto motorizado e no
automobilismo, poucas houve que o seguiram, pelo que observa, anotando o avanço
da tecnologia, que facilita:
“Com muita pena minha. Mas não há razões para uma mulher não andar de
moto ou não conduzir um camião. Há uns anos, sim, a direção era muito pesada e
era precisa força. E, se há coisa que temos é menor capacidade física do que os
homens, mas hoje em dia a tecnologia já o permite.”.
No caso de
Elisabete, a mulher e a atleta são uma só – diz ela, explicando:
“Misturamo-nos. Abdiquei de coisas como mulher para ser atleta,
nomeadamente a maternidade, mas foi uma opção, fui adiando, adiando e o
desporto foi vencendo sempre. Mas não me anulei como mulher, não sou nenhuma
maria-rapaz, pelo contrário, e acho que todas as minha facetas femininas me
ajudam como atleta e posso dizer que melhorei muito como pessoa à custa do
desporto.”.
Diz que o
segredo reside em ter um companheiro que a entende e a ajuda. E conta,
confessando que, se ele lhe disser que não quer mais, ela para, porque o trunfo
é tê-lo do seu lado:
“Começámos a andar de moto juntos, a correr juntos. Chegou a uma altura
em que não tínhamos dinheiro para continuar os dois e ele abdicou e optou pela
mecânica para me dar apoio a mim. Ele dizia que eu como rapariga iria conseguir
mais patrocínios, como ele havia mais 300.”.
***
No seu camião de 10 toneladas, vai uma equipa de três, a piloto, um
navegador que diz o caminho a seguir e um mecânico “para o caso de haver algum problema a qualquer
momento”, mas que tem outras tarefas: leva a maquineta “que enche e vaza os
pneus, porque a pressão dos pneus é fundamental para o camião andar bem” e dá
de comer à mão à piloto quando ela tem fome. A piloto alimenta-se de barras
energéticas, barras de refeição, pão ou gel comestível usado pelos ciclistas. E
“uns biscoitos que a mulher do Zé Marques, o navegador, faz”.
O segredo
para manter a circulação nas mãos, pernas e pés resulta duma boa preparação
física: ir ao ginásio durante todo o ano, pelo menos duas horas por dia. E,
sobre a condução, explica:
“Sente-se muito o peso. Uma das formas de conduzir bem um camião é saber
manobrar o peso dele, a inércia que aprendemos na escola funciona. Se ele vai a
acelerar e eu me engano no caminho não posso simplesmente virar para curvar.
Ele não trava de repente, tenho de abrandar e depois manobrar. Para acelerar, a
mesma coisa. Saber gerir aquela massa toda em andamento é o segredo.”.
Até 2002
estava habituada a manobrar a moto, muito pesada e a que chamava camião por
causa do peso, sobretudo quando se irritava. Assim, entrou nos camiões com a
experiência das motos, mas tendo de “ler muitas coisas na área da psicologia”
para saber e trabalhar melhor em equipa.
***
Em relação
ao reconhecimento por parte do Estado, refere que a solidão que sentia nas
longas etapas de Dakar, bem como a angústia do empréstimo que teve de contrair,
desapareceu com ajuda da Medalha de Mérito, que recebeu das mãos do Presidente
da República Jorge Sampaio, em 1999, por ser a primeira portuguesa no Dakar. Percebeu
que “não estava sozinha”, que “tinha um país inteiro” a olhar para ela e que “todos
os sacrifícios valiam a pena”. Esse reconhecimento foi o conforto de que
precisava para continuar a lutar pelo objetivo maior, ser vista como piloto.
Desta vez, o Parlamento deu-lhe um louvor, mas o
Presidente da República ignorou-a, não lhe tendo dado os parabéns e, se o vier
a fazer, já será tarde. E, penso eu, é de estranhar esta falha de Belém, que
está atento a tudo. Será que a prioridade de Marcelo, ao tempo era andar em
camião pelo país?
***
Hoje, dia 14
de fevereiro, o DN publica uma longa
entrevista da piloto conduzida por Céu Neves, em que refere dados da sua vida e
da competição, bem como das dificuldades que experimentou e do reconhecimento
que lhe tem sido prestado. Dela se respigam alguns dados.
Elisabete
Jacinto licenciou-se em Geografia na Faculdade de Letras (Universidade
de Lisboa), onde conheceu, Jorge Gil, o
marido, da mesma área de formação, que deixaram para trás. Juntos há mais de 30
anos, a piloto diz que nunca pensaram nisso, com a certeza de que, se não fosse
esta parceria, não teria chegado ao topo. Competem com outras equipas que
chegam a ter quatro vezes mais pessoas e a quem ganharam o África Eco Race. A segunda mais nova de uma família de quatro irmãs
espera ser um exemplo para as mulheres e tem recebido muitos parabéns, menos os
do Presidente da República, preferindo destacar a felicidade de ter o voto de
louvor da Assembleia da República.
Não lhe
custa nada dar entrevistas, pois gosta do que faz e de partilhar isso com os
outros. Para no fim de cada corrida para descansar. Tinha o sonho de ir para as
corridas, disputar o pódio e ganhar. Agora realizou o sonho, o que não
conseguira com a moto. Aponta como qualidades a persistência, o espírito de
sacrifício, o trabalho, a capacidade de engolir sapos, a capacidade de gestão e
de orientação e o espírito de equipa.
Tem um
patrocínio, que tenta rentabilizar ao máximo usando da parcimónia necessária. Dispõe dum orçamento muito inferior ao dos
outros competidores e explica:
“Só para dar um exemplo, as organizações gostam de colocar os três
camiões do pódio lado a lado e, tive uma situação, onde estávamos nós os três
em cima do tejadilho e ao lado um piloto da Kamaz [equipa russa] com 20 pessoas
à volta, isso faz uma diferença enorme”.
Quanto ao prémio, diz:
“Não há prémio em dinheiro, só o troféu e todo o prestígio que isso me
possa dar. De uma maneira geral, os desportos que não têm bilheteira não têm
prémios em dinheiro. O que posso conseguir é provar aos patrocinadores que sou
uma boa aposta e esperar que deem mais dinheiro para poder continuar.”.
Desvaloriza a postura presidencial perante si, mas refere outras mais
relevantes:
“O voto de louvor da AR disse-me muito, são diferentes
pessoas a votar e é o órgão máximo de um país. Este voto de louvor foi, de
facto, o reconhecimento de que fiz o meu trabalho, deu-me uma satisfação muito
grande. Depois, tive os parabéns dos meus patrocinadores, de amigos, de pessoas
com quem não falava há muito tempo, o que me fez perceber que iam seguindo a
corrida. Isso é muito bom, a pessoa acaba por se sentir acompanhada e sentir
que está a representar alguém.”.
Contrapõe à
alegação de que um carro ou uma moto se sentem mais e criam mais adrenalina:
“O camião é um veículo muito difícil, muito mais difícil de conduzir do
que um carro. É mais largo, mais alto, mais comprido, mais pesado, tem uma
carga de velocidades mais elaborada – oito mudanças e mais oito meias mudanças –,
temos de gerir dez toneladas em movimento. Dizer que não dá a mesma adrenalina
não sei se é verdade, o que sei é que é uma conquista enorme poder fazer
corridas de camião.”.
Salienta que num camião se
sente “um ego enorme” e “a convicção
de que somos muito melhores do que os outros, fazemos uma coisa que é muito
mais difícil e que exige muito mais de nós”. Diz que ser mulher na competição de camiões “é uma mais-valia no
sentido de conseguir financiamento para correr”, mas que “tudo o resto é mais
complicado, todo o processo de construção, de evolução, é bastante difícil”. E
teve “muitas contrariedades”, nomeadamente o facto de não lhe darem
credibilidade a princípio, porque pretendia “ser reconhecida como um bom
piloto, por ter bons resultados, até para ser um bom exemplo de que se pode
fazer”, pois “não há coisas para homens ou para mulheres, é para quem quiser
fazer”.
Admite que veio para a ribalta quando dizia que em miúda era muito tímida
e não gostava de dar nas vistas. Não gosta efetivamente do estrelato, mas
precisa disso para
conseguir patrocínios para correr. Por isso, não dá “uma entrevista sem estar
vestida com a roupa das marcas”, pois, “de outra forma, não teria dinheiro para
correr”.
Sobre a tensão e o esforço na corrida, observa:
“Dá-me um gozo muito grande mas, de facto, em termos de competição é
extremamente violento. O prazer na condução dura os primeiros 100 km, depois
vem o cansaço e é um martírio para chegar ao fim. O prazer de condução na moto
acaba por ser muito mais limitado, sozinhos, passamos frio, fome, calor, é um sofrimento
atroz. No camião, somos três no camião de corrida e mais três no de assistência,
pode-se ligar a sofage, comer, não tem de se puxar uma moto de 200 quilos. Há
uma folga de energia que se pode canalizar para a condução, faz que se tire
maior partido da capacidade física e goze muito mais da condução.”.
É óbvio que a via de competição acusou avanços e recuos, mudança de
modalidade, melhoria do equipamento, aperfeiçoamento do guia de corrida e
manutenção dos equipamentos, participação em várias provas. Mas a piloto nunca
desistiu, porque a meta era chegar ao ponto
mais alto, crendo que era capaz de o fazer. E, nos momentos mais difíceis, tornou-se fundamental para continuar “o
facto de acreditar que tinha condições para fazer uma boa prova, ter bons
resultados e não querer deitar para o lixo tudo aquilo em que tinha investido
durante tantos anos”. Por isso, vinca:
“Entreguei a minha vida à competição, foram muitos anos para tentar
chegar a um ponto: provar que era uma boa condutora e que era capaz de andar
rápido”.
E, questionada se nestes 27 anos houve melhorias a nível da igualdade de
género, refere que a agora a mudança consiste em se falar “muito nas questões de igualdade de género, da
igualdade de oportunidades, da necessidade de um tratamento mais igualitário”,
sem que as coisas estejam muito diferentes. Com efeito, nada se fez até aqui para mudar a forma de
educar. E diz:
“Temos de educar as crianças de forma diferente e nós, mulheres,
educamos os nossos filhos como as nossas mães nos educaram, como as nossas avós
educaram as nossas mães e não questionamos, não paramos para pensar. E passamos
valores que muitas vezes são contra nós, cultivamos a situação que temos.”.
***
Há, de
facto, muito caminho a percorrer!
2019.02.14 – Louro de Carvalho
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