Portugal continua a ser acusado de tentar
eliminar Espanha das comemorações pentacentenárias primeira volta ao mundo. E é
o espanhol ABC que volta à carga sobre a alegada desvalorização que Portugal
faz do envolvimento do espanhol Sebastián Elcano na volta ao mundo iniciada por
Fernão Magalhães há 500 anos. E cita, para o efeito, as declarações do
historiador José Manuel Garcia ao DN,
há 15 dias.
Na verdade,
o diário espanhol insiste em acusar Portugal de “monopolizar” as comemorações
dos 500 anos da primeira circum-navegação mundial, iniciada, sob a égide de
Carlos I de Espanha, por Fernão de Magalhães, em 1519, e concluída por
Sebastián Elcano, em 1522, após a morte do navegador português. Com efeito,
segundo o jornal, o papel de Elcano na viagem não está a ser devidamente
enaltecido em Portugal.
E, para
continuar a sustentar essa ideia, o ABC
deu relevo a declarações que o historiador José Manuel Garcia fez ao DN. Num artigo publicado a 19 de
janeiro, intitulado “Portugal
acusado de tentar eliminar Espanha da primeira vota o mundo”, Garcia
afirmou que Elcano “fez o feito de dar a volta completa ao mundo ilegalmente”,
já que na viagem de regresso a Espanha teve de usar a rota do cabo da Boa
Esperança, contra indicações expressas do rei espanhol Carlos I e, depois,
imperador Carlos V.
E o ABC
escreveu no passado dia 5:
“As palavras do historiador português José Manuel Garcia surpreenderam
pelo seu contundente etnocentrismo. Segundo ele, os espanhóis ‘desesperaram’,
quando Fernão de Magalhães morreu antes de fazer o caminho de volta e tiveram
que recorrer à proposta portuguesa de regressar pelo Cabo de Boa Esperança.
‘Foi uma questão circunstancial’, conclui o polémico intelectual.”.
Mas o diário
não se fica pela crítica ao historiador; critica também o Primeiro-Ministro
português “por atirar mais achas para a fogueira”. Em causa está um artigo de
opinião de António Costa publicado no Le
Monde Diplomatique, de que o ABC
transcreve um trecho, referindo que o ano de 2019
“Dará uma oportunidade única de celebrar os dois vínculos [dos países
ibero-americanos] através do programa das Comemorações do V Centenário da
circum-navegação sob a direção de Fernão de Magalhães (2019-2022), navegador
que ligou os nossos dois continentes e os seus dois oceanos, deixando o seu
nome na geografia desses lugares e um legado de abertura do mundo ao
conhecimento mútuo”.
Vinca o
diário espanhol que, mais uma vez, Portugal quer brilhar à custa da eliminação
do papel de Elcano. Outro exemplo negativo que o jornal dá é a candidatura a
património da UNESCO da Rota de Magalhães, uma das iniciativas inseridas no V
Centenário, protestando contra o Governo espanhol por não se insurgir contra
tal atitude do Governo português.
***
Não me parece que Portugal esteja a desvalorizar Elcano ou a Espanha só
por ao falar de Magalhães no V Centenário da circum-navegação, omitindo Elcano,
embora não o negue. Com efeito, a viagem foi a expensas de Espanha e
protagonizada pelo português Magalhães. A continuidade do comando por Elcano
foi circunstancial, embora importante. E a sua importância não fica aumentada
nem diminuída por ter eventualmente sido a 5.ª escolha.
Em termos de justiça, uma comunicação conjunta de Portugal e Espanha deve
assinalar Magalhães e Elcano. O povo de Israel também fez a saída do Egito e a
maior parte do percurso do deserto sob a condução de Moisés, mas a entrada na
Terra da Promissão já ocorreu sob a condução de Josué, por via da morte de
Moisés. E os israelitas não apagam o nome de um nem o do outro. Porém, para os
hebreus, o grande legislador e condutor é Moisés.
Assim, nada me repugna, entretanto, que, em separado, Portugal toque o
sino por Magalhães e Espanha o toque por Elcano. Fazem os portugueses e os
italianos coisa parecida a propósito de Santo António: os portugueses
celebram-no como Santo António de Lisboa, por ter nascido em Lisboa, e os
italianos, como Santo António de Pádua, por ter morrido em Pádua.
Não obstante, é de reconhecer que Fernão de Magalhães é um navegador
português, mas que empreendeu a viagem sob a égide e a expensas do Rei espanhol
porque o Rei português Dom Manuel I rejeitou o empreendimento, pelos vistos,
temendo que a causa não fosse favorável à Coroa portuguesa. Apesar de tudo, não
podem os portugueses ser impedidos ou ver diminuída a sua pretensão de celebrar
o evento e o navegador só por o seu ato ser em prol de Espanha. Com efeito, o
mundo inteiro acabou por beneficiar do conhecimento e das relações que a viagem
propiciou. Aliás, o ABC bem podia ter feito justiça à
Ministra do Mar portuguesa, que, na apresentação do programa das comemorações
do V Centenário, há uma semana, sublinhou que a candidatura da primeira volta
ao mundo a património da humanidade da UNESCO será apresentada por Portugal e pela
Espanha. Ana Paula Vitorino justificou a apresentação conjunta com o facto de a
viagem ter sido iniciada por um português e terminada por um espanhol.
Garcia sustenta que o percurso feito sob o comando de Elcano foi ilegal,
por ter selecionado, para o regresso a Rota do Cabo, contra as indicações de
Carlos I. Porém, ao tempo, não havia telegramas nem correio eletrónico. E quem
estava à distância não tinha a capacidade de medir as circunstâncias do lugar e
do tempo atmosférico.
***
O predito historiador
diz não compreender a reação do ABC,
vincando que as suas afirmações se baseiam em factos. E, assegurando que o
objetivo não era dar a volta o mundo, sustenta:
“Ninguém está a tirar o mérito a Sebastián Elcano, mas não foi ele quem
dirigiu de início a expedição. Só o fez nos últimos meses e foi a quinta
escolha. Aliás, nem ele nem Fernão de Magalhães tinham o objetivo de dar a
volta ao mundo.”.
Depois, explica:
“É necessário compreender a circunstância de Fernão de Magalhães, ao
conceber e iniciar, em 1519, a sua grande viagem para ocidente, pretender
chegar apenas às Molucas, na Ásia, sem ter como objetivo uma circum-navegação.
Com efeito, Fernão de Magalhães nunca deu a entender, de forma alguma, ser essa
a sua vontade, pois o projeto que alimentou consistia em ir às Molucas por uma
via ocidental.”.
E
acrescenta:
“O navegador, ao querer voltar às ilhas por ocidente, depois de lá ter
estado em 1512, sabia que iria fazer a segunda parte de uma volta do mundo, mas
de forma indireta, sem ter a preocupação de fazer uma volta ao mundo direta e
completa”.
Quanto ao grande
mérito e feito de Juan Sebastián Elcano, diz o historiador:
“Foi o de concluir a primeira volta ao mundo depois de ter passado a
comandar a nau Victoria após a morte de sucessivos comandantes desse navio. Com
grande esforço ele comandou o regresso a Espanha dos sobreviventes da
expedição, completando assim a primeira volta ao mundo em continuidade. Só o
fez porque teve de seguir, como último recurso, a bem conhecida rota do cabo da
Boa Esperança, a qual, por ser portuguesa, lhe estava oficialmente interdita
pelo seu soberano Carlos V, e por isso, como já atrás sublinhámos, cometeu
então uma ilegalidade, contra a qual Dom João III muito se insurgiu, em 1522.”.
E José
Manuel Garcia frisa que aqueles factos estão provados através das ordens de
proibição dadas por Carlos V, pelo que, “nesse sentido, Elcano completou a
volta ilegalmente”.
A terminar,
o historiador sublinha que “o mais
importante é que Fernão de Magalhães foi o primeiro homem a dar dado uma volta
ao mundo, mas não consecutiva, pois deu-a em duas etapas”. A 1.ª etapa,
entre 1505 e 1513, foi de Lisboa às Molucas, ao passo que, a 2.ª etapa, entre
1519 e 1521, foi de Sanlúcar de Barrameda às Filipinas.
Por seu
turno, o El País escreveu
recentemente sobre a participação de Magalhães e de Elcano na 1.ª volta ao
mundo, elegendo-a como ponto da “luta entre os espanhóis e os portugueses”. Com
efeito, se não são os governantes a cavar a divergência, são os jornalistas, os
empresários, os comentadores ou os franco-atiradores. Mas fixação no espírito de
luta hoje é paupérrima.
***
É de
recordar que, em meados de janeiro, o ABC
acusava Portugal de tentar branquear a história no programa das comemorações
dos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães e na candidatura à
UNESCO da Rota de Magalhães.
Essas
iniciativas, como referiu em 2018 a Estrutura de Missão das Comemorações do V
Centenário da Circum-Navegação, pretendem “reconhecer
o papel, passado e presente, de Portugal e dos portugueses para a promoção do
conhecimento, do diálogo intercultural e da sustentabilidade do planeta,
contribuindo para uma sociedade mais justa, inclusiva e com maior bem-estar”.
E, quanto à candidatura a património mundial reconhecido pela UNESCO – já desde
2016 que a Rota de Magalhães consta na lista indicativa de Portugal – não
há quaisquer referências a Juan Sebastián Elcano, o espanhol que acabou por
terminar a viagem de Magalhães, depois de este morrer em 1521 nas Filipinas,
nem “um reconhecimento patrimonial
conjunto que contemple tanto Espanha como Portugal em harmonia” – dizia o ABC, que acrescentava não ser
reconhecido “o papel preponderante [de
Espanha] no feito”, referindo que o monarca português Dom Manuel I havia
rejeitado o financiamento para a viagem que acabou por ser prestado pela Coroa
espanhola, além de se recordar que Portugal tentou “com todas as armas evitar
esta travessia”.
O Ministério
da Cultura espanhol, contactado pelo ABC,
afirmou solicitar ao embaixador espanhol na UNESCO que elabore um pedido formal
sobre a proposta portuguesa.
Contudo, a
classificação pela UNESCO da Rota de Magalhães não deverá ocorrer num futuro
próximo, pois, em março de 2018, apenas o Santuário do Bom Jesus do Monte, em
Braga, e o Real Edifício de Mafra passaram à fase seguinte da candidatura a
Património Mundial.
Apesar das contestações
veiculadas pelo ABC, em setembro de
2018, o então Ministro da Cultura português, Luís Filipe Castro Mendes, e o seu
homólogo espanhol, José Guirao Cabrera, anunciavam, em Lisboa, uma exposição
conjunta sobre Fernão de Magalhães e davam conta da colaboração dos dois países
nas comemorações. Disse então o Ministro espanhol:
“Cada país tem a sua respetiva comissão, que se reuniram na semana
passada, e cada um está a elaborar o seu programa, e hoje, justamente, falámos
disso, que as duas grandes exposições que se vão fazer em Espanha e Portugal
[se fundam] numa só exposição, e que essa exposição conjunta hispano-portuguesa
seja a que viaje pelo mundo, para dar essa ideia de unidade, a par de outras
atividades que se podem fazer conjuntamente e de que estamos a começar a falar”.
Postura convergente revelaram, em conferência de imprensa, nos meados de
janeiro, o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva,
e o Ministro de Assuntos Exteriores, União
Europeia e Cooperação espanhol, Josep Borrell Fontelles.
Ao DN o já mencionado
historiador português José Manuel Garcia, autor de A Viagem de Fernão
de Magalhães e os Portugueses (2007) e atualmente a trabalhar
noutra obra sobre o navegador português, esclarece que se trata de um
empreendimento espanhol com o génio de um português, sustentando:
“O
feito de Fernão de Magalhães é um feito luso-espanhol. Até direi mais: é um
feito europeu, na medida
em que Fernão de Magalhães foi acompanhado por 239 homens de seis
nacionalidades diferentes. 10% eram portugueses, entre eles alguns dos
responsáveis principais.”.
Explicando
como acabou por acontecer o que foi uma espécie de aliança perfeita entre o
génio de Magalhães e as intenções espanholas, o historiador afirma que “não há
dúvidas nenhumas de que foi um empreendimento castelhano”. Carlos V aceitou o serviço do português por
ser ele o único que podia fazer o empreendimento de ir as Molucas – valorizadas como
o “berço de todas as especiarias” – como ele se comprometera a fazer. E reitera:
“Foi sob a alçada de Carlos V – na altura o rei Carlos I – que o
empreendimento foi realizado, embora protagonizado por um português revoltado
com o rei português [D. Manuel I]. Carlos V aceitou o serviço de um português
porque ele era o único que podia fazer o empreendimento de ir as Molucas como
ele se comprometera a fazer. Ao serviço dos portugueses Fernão de Magalhães
nunca faria a viagem que fez.”.
Porém, Fernão de Magalhães morreu no caminho, em luta contra aborígenes,
e os espanhóis, desesperados, tiveram de recorrer a uma solução que lhes estava
proibida: o caminho português do Cabo da Boa Esperança. E coube a tarefa de
completar uma circum-navegação direta, ao comando da nau Victoria, a Juan
Sebastián Elcano, “que tinha estado sempre na sombra, era uma figura
secundária”. Segundo o plano original, a viagem deveria ter continuado com
outro percurso que não daria a volta ao mundo – volta essa que implicou tornar a última parte da viagem ilegal, segundo as
normas vigentes ao tempo e contra as diretivas de Carlos I, uma vez que
implicava atravessar domínios portugueses, nos termos do Tratado de Tordesilhas.
Garcia lembra
que Sebastián Elcano, reconhecido e celebrado em Espanha, mas não mais longe, levou
a cabo um feito que “foi uma coisa de circunstância”. E nota que Magalhães, mesmo tendo morrido antes do
final da expedição, acabou por completar uma volta ao mundo e foi, aliás, o
primeiro homem a fazê-lo, embora em duas vezes, pois, como se disse acima, “ele
já tinha feito a 1.ª parte da volta, quando tinha ido com os portugueses de
Lisboa até às Molucas”.
O
historiador reconhece a ironia de Portugal querer celebrar a circum-navegação
que tentou a todo o custo boicotar. Com efeito, o rei Dom Manuel, ao saber que Fernão de Magalhães começara a viagem,
“mandou uma armada de 5 navios para a Índia, destinados a dar cabo dele, se o
encontrassem nas Molucas” que então pertenciam a Portugal, como Fernão
de Magalhães terá verificado.
Também o académico
espanhol Agustín Rodríguez González disse ao ABC:
“Foi um empreendimento espanhol. Tratava-se de chegar ao arquipélago das
Molucas por outro caminho distinto do português, que atravessava o Índico para
chegar ao Extremo Oriente.”.
E este
professor universitário, autor da obra La primera vuelta al mundo (2018), referiu que os portugueses “enviaram barcos armados
contra a expedição”. Assim, por medo de ser detido, Elcano teve de evitar as
escalas. Apenas terá feito uma, em Cabo Verde, onde vários marinheiros foram
detidos.
Por seu
turno, Enriqueta Vila, membro da Real Academia Espanhola, afirma que Portugal
tentou, como pôde, boicotar a viagem e que é “uma verdadeira ousadia tentar
fazer ver que [a circum-navegação] foi uma obra” portuguesa.
***
Dá-me a
impressão de que os políticos (ou melhor os governantes) têm uma postura mais tolerante e benevolente que alguns historiadores. O
feito de Magalhães-Elcano teve projeção mundial. Não interessa hoje discutir se
a 2.ª parte da viagem foi legal ou ilegal. Ela tinha de ser feita com os
recursos disponíveis. Se era legítimo torpedeá-la à face dos tratados, era
também lógico, por uma razão vital e patriótica dar-lhe prossecução.
Não vi
ninguém dizer que a circum-navegação fosse obra portuguesa. Até se sublinha que
fora boicotada por receio de ser desinteressante para a nossa Coroa. Parece que
hoje se diria que o projeto era do Estado espanhol sob a direção científica dum
curador português.
Enfim, a 1.ª
circum-navegação abriu ao mundo novas rotas do conhecimento e das relações.
2019.02.08 – Louro de Carvalho
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