A 12 de
fevereiro de 1931, há 88 anos, um dia após o 2.º aniversário do Tratado de
Latrão, Pio XI inaugurou a “Statio
Radiophonica Vaticana”, o tesouro tecnológico de então construído por
Guglielmo Marconi para abrir as fronteiras do mundo ao Magistério dos Papas.
Passou, como era desejo do Pontífice, a ser a voz do Estado da Cidade do
Vaticano, minúsculo em termos geográficos e populacionais, mas importante ponto
de referência para a catolicidade e ponte de contacto entre as diversas
soberanias que viessem aceitar a sua mediação e a sua autoridade moral.
Guglielmo
Marconi tinha 56 anos. E, dois anos antes, Pio XI, que queria uma estação de
rádio de última geração para a recém-criada Cidade do Vaticano, fez-lhe a
proposta. E, apenas quatro meses após a assinatura do Tratado de Latrão (a 11 de
junho de 1929), o
inventor da rádio visitou o Papa no Vaticano. Estava acompanhado por Francesco
Pacelli, homem-chave nas negociações entre Santa Sé e Estado italiano. E logo
começaram os trabalhos de construção e, aproximando-se o 2.º aniversário do
Tratado, que sancionou a independência da Santa Sé, aproximava-se também
a inauguração da rádio que iria garantir ao centro visível da Igreja um maior
grau de liberdade, na certeza de que a palavra é o maior sinal dessa liberdade.
Alessandro De Carolis refere ao Vatican
News como tudo sucedeu.
Sobre uma discreta
tramontana, em Roma, por volta das 16,30 horas, a multidão despreocupada estava
reunida em diferentes pontos do centro, porque era um dia especial e os
aglomerados de pessoas notavam-se sobretudo nos lugares onde houvesse um
aparelho de rádio. Não era uma novidade propriamente, mas era um acontecimento
diferente que despertava curiosidade, induzida pelos jornais e pelas lojas de
material elétrico, que penduraram altifalantes do lado de fora. Entre a Via IV
Novembre, Piazza Vittorio, Via Nazionale e em outros lugares reuniam-se
centenas de pessoas que se tornavam milhares, a que se somavam as de Turim e de
outras cidades italianas, bem como as de Melbourne, Nova Iorque, Québec e não
só.
E havia
outra multidão apinhada no espaço de alguns cómodos, cheios de circuitos e maquinaria,
que atordoavam de maneira ensurdecedora. Era o edifício construído, em dois anos,
na colina atrás da Basílica de São Pedro, no verde dos jardins do Vaticano, com
as suas torres e uma arquitetura sóbria, um prédio que não passava de “mais um
do imenso canteiro de obras em que Pio XI transformou a Cidade do Vaticano após
a assinatura do Tratado de Latrão”. Os muitos olhares convergiam para o grande microfone
hexagonal sustentado por quatro molas dentro dum círculo de metal, que fazia de
ponto de convergência e de encontro dos olhares.
O Papa Pio
XI chegou ao local dez minutos antes da hora marcada.
Diante do
microfone, Marconi emocionado sublinhou o aspeto mais marcante da novidade.
Depois de “vinte séculos” de magistério pontifício que se “fez ouvir” com os documentos,
é a “primeira vez” que este pode ser ouvido “simultaneamente” pela “voz viva”
do Papa. E Pio XI, que tinha escrito a primeira radiomensagem pelo próprio
punho, não queria dececionar as expectativas. Assim, às 16,49 horas, o Sumo
Pontífice entoou em latim uma oração-apelo-universal que reuniu, diante da
“invenção admirável de Marconi”, a criação e os sofredores, Deus e os
governantes, ricos e pobres, patrões e operários.
Passada uma
hora, Pio XI e Marconi estavam nas cercanias da Casina Pio IV, sede da Academia
das Ciências e, na presença de estudiosos membros da associação, o construtor
da Rádio do Papa foi solenemente nomeado membro da Academia a pedido do diretor
da emissora pontifícia, Padre Joseph Gianfranceschi, jesuíta e físico de fama
internacional.
As
pormenorizadas e vivas crónicas do dia refletiam o interesse e o clamor concitados
pela primeira transmissão papal ao vivo da história – sucesso devido também à
excelente qualidade da transmissão. Além dos jornais dos dias subsequentes que noticiaram
“aquela hora extraordinária”, mais factos ocorreram. Voltaram ao hotel os reis
do Piemonte para ouvirem a mensagem de rádio e formaram-se longas filas de
habitantes nas ruas de Veneza para a participação na competição anunciada pelo
jornal inglês “The Universe” com um
prémio de 5 libras esterlinas para quem enviasse o melhor pensamento sobre como
ouviu a voz do Papa.
As observações
do repórter do “Times” apontavam que
o discurso papal tinha sido “um pouco mais rápido do que os dos lábios acostumados
a transmissões de rádio” e o presidente da Sociedade Nacional Americana de
Radiodifusão referia, de Nova Iorque, a Marconi que tinham sido captadas perfeitamente
as transmissões em “lugares como Nassau, nas Índias Ocidentais”. E O L’Osservatore Romano daqueles dias
relatava uma correspondência de Praga dum médico surdo que ouviu a voz de Pio
XI no rádio, graças a um aparelho que ele inventou. O título era: “Até os surdos o ouviram”. Não era
milagre, mas era um excelente momento de humorismo.
***
Num contexto de pujança das redes sociais, a
Rádio do Papa completa 88 anos. Com efeito, em véspera de Dia Mundial da Rádio,
comemorado a 13 de fevereiro, é de relevar que houve vários momentos marcantes
que fizeram a história da emissora pontifícia. Do primeiro programa científico
até às postagens da era social, passando por oito Papas até à informação
multimédia de hoje produzida pelo Vatican
News, Vatican Media e Rádio Vaticano Itália. No início da
década de 80 do século XX, Fernando Bea, figura prestigiada na Rádio Vaticano, deu
vida a um livro sobre os primeiros 50 anos de vida da emissora pontifícia. E, no
final da obra, confessou:
“O dinamismo excecional e o zelo apostólico de João Paulo II de agora em
diante vão tornar-se, dia a dia, hora a hora, o ritmo da sua Rádio, que vai
seguir cada passo”.
Bea intuiu
que o dinamismo do jovem Pontífice polaco traria reflexos no trabalho da Rádio
Vaticano, mas não podia imaginar a revolução que trazia o Papa que “veio de um
país distante”.
O livro de
Bea conta à minúcia, com informações e episódios, os primeiros anos da emissora
vaticana, obrigada a mostrar sua capacidade de “influencer”, em vez de se limitar a fornecer à Santa Sé um
eficiente e tranquilo serviço de radiotelegrafia, propiciado a Pio XI por
Marconi.
A este
respeito, Eugenio Bonanata e Andressa
Collet dão conta da importância da Rádio Vaticano, referindo que a
propaganda fascista (e depois a nazista) que já usava a rádio de maneira moderna, mas também sem escrúpulos, faz
da Rádio Vaticano um contrabalanço através de ensinamentos do Papa e das
informações de primeira mão oriundas dos episcopados europeus – ideologias
liberticidas que em muitos países estavam consumindo a Igreja. Porém, quando
tudo precipitava o conflito, o célebre pregão de Pio XII “Nada
se perde com a paz, mas tudo pode ser perdido com a guerra” transformava
a emissora vaticana num “baluarte de racionalidade contra a loucura destrutiva
que envenenava o resto do éter”. O livro de Bea recorda uma reportagem,
produzida pela Statio Radiophonica Vaticana durante os anos da
II Guerra Mundial (e tantas vezes citada), de mais de um milhão e 200 mil mensagens transmitidas do Guiché de Informações
(entre os
anos 40 e 46) que ajudaram
tantas mulheres a ter notícias de maridos, irmãos e namorados desaparecidos ou
prisioneiros de guerra. E o renascimento depois da guerra para a Rádio Vaticano
constituiu um salto exponencial com a inauguração, em 1947, do Centro de
Transmissão de Santa Maria de Galeria que suporta, em nível tecnológico, o
esforço editorial realizado nos anos do Concílio. O Vaticano II foi um teste
jornalístico sem precedentes para a emissora, que “aprendeu” a falar em 30
línguas e que consegue contar todas as fases de produção com 3 mil horas de
transmissão e 300 mil Km de fitas de gravação.
São Paulo VI
era um jornalista e pretendia que a “sua” Rádio oferecesse chaves de leitura
cristãs dos acontecimentos do mundo. Queria jornalistas que agitassem as
consciências, não apenas técnicos que fizessem funcionar a máquina. A este
respeito, em 30 de junho de 1966 quando, no meio do equipamento do Centro de
Transmissão, explicava querer melhorar a Rádio Vaticano dizia: “Para
nada serve ter um magnífico instrumento, se depois não o sabemos utilizar
magnificamente”.
Por isso, a
partir de 1970, as salas do Palácio Pio, ocupadas por várias siglas católicas,
começaram a dar espaço a redações e estúdios. Depois, no ano de 1978, o ano dos
três Papas, 72 dias de fogo afetavam os ritmos bem compassados da emissora.
Assim, depois dos tempos da cobertura das primeiras viagens do Papa Montini ao
exterior com poucos jornalistas e das transmissões ainda com menos, surge o tsunami que muda tudo, com o primeiro
Papa polaco.
O gesto de
São João Paulo II infringir o protocolo e falar à multidão no dia da eleição constituiu
um presságio do ímpeto com que a Rádio Vaticano iria quebrar esquemas e hábitos
consolidados. O Pontificado de Papa Wojtyla é contado no segundo dos dois
livros, de 2011, editados pela LEV (Livraria Editora Vaticana), que sintetizam os primeiros 80 anos de história da
Rádio Vaticano.
O autor da
segunda parte é Alessandro De Carolis, que trabalha no jornalismo vaticano
desde o Jubileu de 2000. E é justamente o Ano Santo Jubilar, com as suas 6 mil
horas de transmissão, que se transforma no divisor de águas entre a Rádio Vaticano
pré-Internet e a sucessora que mudaria várias vezes a pele para se adaptar aos
condicionamentos impostos pela tecnologia e pelas mutações da web e das redes sociais, ou seja, aquele
“areópago da comunicação moderna”, como a definiu Bento XVI na sua visita à
Rádio a 3 de março de 2006.
Nesse areópago,
o Papa Francisco estabeleceu por Motu
proprio uma nova direção para os organismos de comunicação social do
Vaticano (Centro Televisivo Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, L’Osservatore
Romano, Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, Rádio Vaticano, Sala
de Imprensa da Santa Sé, Serviço Fotográfico, Serviço Internet do Vaticano, Tipografia
Vaticana e o serviço de Twitter do Sumo
Pontífice: @pontifex) reorganizando-os
sob um único dicastério, o Dicastério para
a Comunicação (resultante da transformação da Secretaria para a Comunicação) – um desafio aberto, que “fala as mil línguas da
interatividade e que requer a máxima credibilidade, própria de um veículo
institucional e durante o breve segmento do tempo real”. Tudo isto à distância
dos 90 anos dos transmissores de Marconi mostra que, “para fazer funcionar um
novo motor, às vezes é necessário o coração de uma válvula velha”.
***
Na base disto está o Tratado de Latrão, cujo 90.º
aniversário passou a 11 de fevereiro, e graças ao qual foi resolvida a Questão
Romana, permitindo cicatrizar uma ferida de mais 50 anos.
A este
respeito, em 10 de outubro de 1962, nas vésperas da abertura do Concílio Ecuménico
Vaticano II, o então arcebispo de Milão, cardeal Giovanni Battista Montini, fez
um discurso no Capitólio, inaugurando um ciclo de conferências sobre os
concílios ecuménicos.
Recordando o
fim do poder temporal do Papa, ocorrido com a Tomada de Porta Pia, em 1870, o
futuro São Paulo VI, disse:
“Parecia um colapso, e para o domínio territorial pontifício foi.
Pareceu então, e por muitos anos sucessivos, a muitos eclesiásticos e a muitos
católicos a Igreja Romana não poder renunciar e dever acumular a reivindicação
histórica da legitimidade de sua origem com a sua função indispensável,
pensou-se que aquele poder temporal deveria ser recuperado, reconstituído”.
Não
obstante, prosseguia o Cardeal, “a Providência, agora vemos bem, tinha
organizado as coisas de maneira diferente, jogando quase dramaticamente nos
acontecimentos”. E o papado “retomou com vigor extraordinário as suas funções
de Mestre de vida e de testemunho do Evangelho, de modo a elevar-se a tal
altura no governo espiritual da Igreja e na irradiação moral sobre o mundo,
como nunca antes”.
Durante
quase 60 anos aquela ferida não cicatrizou completamente. E Montini anotava:
“Alguma coisa faltou na vida italiana na sua primeira formação, apesar
da sua unidade interior, a sua consistência espiritual, a sua humanidade
patriótica e, consequentemente, a sua plena capacidade de resolver os problemas
da sua sociedade desigual, necessitada de novos sistemas, e desde então
atravessada por correntes agitadas e subversivas. Por sorte nossa, alcançámos
uma composição satisfatória com a conciliação famosa de 1929 e com a afirmação
da liberdade e da democracia no nosso país.”.
O jovem
Montini, inserido na vida da Secretaria de Estado, não acolheu com o mesmo
entusiasmo a notícia, no momento da assinatura do Tratado de Latrão. As diligências
tinham sido iniciadas em 1926. Pio XI socorreu-se do advogado romano Francesco
Pacelli, irmão mais velho de Eugénio Pacelli, futuro Secretário de Estado e
depois Pontífice, naquele momento Núncio Apostólico em Berlim, que redigiu o
esquema do tratado destinado a encerrar o conflito entre o Papa e o Estado
Italiano. E, o Tratado de Latrão, composto por dois documentos distintos, o Tratado,
que reconhecia a independência e a soberania da Santa Sé, fundando o Estado da
Cidade do Vaticano, e a Concordata, que definia as relações civis e religiosas
na Itália entre a Igreja e o Governo italiano, foram assinados, a 11 de
fevereiro, em São João de Latrão, pelo cardeal Pietro Gasparri e por Benito
Mussolini.
O Tratado e
a Concordata foram acolhidos com um suspiro de alívio por boa parte do mundo
católico. O que os governos liberais não fizeram em 60 anos de Estado unitário
foi feito pelo governo fascista, liderado pelo ex-socialista Mussolini. O Papa
voltava a ser realmente soberano, mesmo só com um quilómetro quadrado de
território, mas que serviu para representar a sua total independência e
autonomia em relação a qualquer outra autoridade.
O Bispo de
Roma não tinha mais um consistente domínio temporal para administrar, mas a
autonomia e a soberania naquele quilómetro quadrado representavam uma vitória
póstuma do Beato Pio IX, porque admitia que para realizar plenamente a sua
missão espiritual, o Pontífice não deveria estar sujeito a nenhum Estado.
2019.02.12 –
Louro de Carvalho
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