Dá-me a impressão de que a OCDE (Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Económico)
se mete em tudo
no que atinge a vida do país. Com efeito, está em Lisboa a explicar o que deve
ser melhorado no organismo independente até agora presidido por Teodora Cardoso.
Elogiando
a liderança do CFP (Conselho
das Finanças Públicas),
a OCDE sustenta que o processo de nomeação deve ser revisto para obstar a
interferência política, sugerindo
que a lista de nomes propostos passe pelo Parlamento antes da nomeação final
pelo Governo.
O
relatório da avaliação (feita
a pedido do próprio CFP),
que foi apresentado hoje, dia 4 de fevereiro, em Lisboa, acontece quando
Teodora Cardoso termina o mandato e é conhecida a sua sucessora, Nazaré da
Costa Cabral, que foi nomeada pelo Conselho de Ministros no passado dia 30 de
janeiro. Querem os peritos que o CFP prime pela independência, pelo acesso à
informação e pela boa imagem. E concluem:
“O
processo de nomeação da liderança não está totalmente protegido da
interferência política.
Os arranjos para garantir que o CFP continua a ser servido por uma liderança
respeitada e não partidária num ambiente político cada vez mais fragmentado
poderiam ser reforçados.”.
Atualmente, os membros do organismo das contas públicas
são nomeados pelo Conselho de Ministros sob proposta conjunta do Banco de Portugal (BdP) e do Tribunal de Contas (TdC). E é este processo que a OCDE pretende ver
alterado, exemplificando:
“Para
ampliar a responsabilidade coletiva da decisão de nomeação da liderança e para
aumentar a transparência deste processo, o presidente do Tribunal de Contas e o
governador do Banco de Portugal poderiam submeter a lista de candidatos
propostos à Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa para
que emitisse uma opinião antes da decisão final ser tomada pelo Conselho de
Ministros”.
Assim,
melhoraria o conhecimento público sobre o processo de escolha, já que se
passava do mecanismo em que apenas é conhecido o nome final designado pelo
Executivo para um modelo de conhecimento de todos os nomes propostos e da
opinião do Parlamento sobre os mesmos.
Ainda
em termos de independência, os peritos
sugerem que o presidente do TdC e o governador do BdP aprovem mais
financiamento para o CFP, sujeito ao aval do Parlamento, para
“remover” a possibilidade de interferência política ao nível do orçamento ao
disponibilizado ao CFP.
Outro
ponto a ter em conta é o acesso do CFP a informação relevante nas suas análises
económicas. Dizem os peritos, a este respeito, que “o CFP tem dificuldade em
aceder a alguma informação, em particular a dados relativos à segurança social”,
o que “afeta a capacidade do Conselho em realizar projeções de médio e longo
prazo”. E desafiam os organismos e agências governamentais relevantes a
reunirem-se com o CFP para se ultrapassarem “os desafios do acesso à
informação, em particular na área da segurança social”.
Além
disso, na ótica da OCDE, o CFP deve dar conta dos pedidos de informação que
dirige ao Governo, adiantando se foram ou aceites não, e ter dados a tempo das
análises que faz. Para tanto, será de reforçar “a capacidade adicional de
pessoal em algumas áreas da administração pública” a fim de permitir “um maior
acesso à informação em tempo útil”.
E, quanto
à imagem do CFP, é de passar da verificação de que a criação do Conselho durante o período da
troika signifique a aposta numa “austeridade imposta externamente” para a
imagem duma “instituição nacional ao serviço dos cidadãos de
Portugal”. Sendo assim, esbater-se-ia a oposição dos que se opõem “à austeridade
orçamental” e aumentaria a “adesão pública e política”. Para tanto, o CFP deve
melhorar a forma como comunica para que o valor da instituição e os seus outputs (resultados) sejam compreendidos de forma mais abrangente.
***
Parece-me que não é a forma de nomeação que dá maiores garantias de
independência, mas o escrutínio que se possa fazer. O resto representa a
síndrome de desconfiança que impende sobre o Governo, que afinal superintende
na Administração Pública. Ninguém acusa o BdP, o TdC ou a PGR de falta
independência por constitucionalmente serem nomeados sem o aval do Parlamento. Aliás,
tanto o CFP como a UTAO (Unidade Técnica de Apoio ao Orçamento, que funciona no
Parlamento sob a égide da comissão do orçamento) sempre se manifestaram livremente sobre os dados orçamentais e da
execução do orçamento, ora em coincidência com o Governo, ora em discrepância.
Porém, a meu ver, justifica-se a audição parlamentar prévia, não pela questão
da independência, mas pelo reconhecimento do poder supremo da Assembleia da
República e da sua legitimidade representativa (estão nela representadas as forças
politicas a que o povo deu aval eleitoral).
Pressões políticas houve, há e haverá. Resta saber se são irresistíveis e
se os pressionados têm um dote suficiente de coragem para saber responder em
conformidade. E não se pode acusar o CFP de ser politicamente influenciável e
deixar no limbo da confiança o BdP, o TdC, a UTAO, a CGD, as universidades, a
instituição militar e tantas outras instituições bem prestigiadas. Até digo que
os casos de licenciaturas de duvidosa validade ocorreram em universidades
privadas onde é suposto os políticos não interferirem!
***
Teodora Cardoso, em vésperas de deixar a presidência do CFP aborda, em
entrevista ao ECO24 e à TVI24, o problema do banco estatal, o da
economia e o do otimismo orçamental de Centeno.
Embora não seja área que tenha acompanhado, não ficou completamente
surpreendida com os resultados da auditoria à CGD pela EY, tendo em conta as
notícias que foram surgindo. Assenta que a sua recapitalização teve efeito negativo no défice, mas entende que, “embora a injeção [de dinheiro] na Caixa fosse um
problema para as contas públicas, teria sido pior não o fazer”.
E pensa que o Governo fez bem em avançar
com essa recapitalização numa condição, que diz estar a ser cumprida. E
explica:
“No sentido de que a governação da Caixa
Geral de Depósitos (CGD) agora entre num caminho diferente, muito mais
rigoroso, e que evite que a situação possa repetir-se. Ninguém está em condições de dizer – pelo menos eu não estou – que
nunca mais haverá a recapitalização seja de quem for. Os acidentes no
sistema financeiro acontecem e nem são sequer exclusivamente responsabilidade
nossa. No caso da crise que acabou por dar origem a muitos dos nossos
problemas, uma parte não foi gerada em Portugal nem na Europa.”.
Apesar de achar que, depois da crise de que uma parte não é imputável a
Portugal nem à Europa, o sistema está mais fortalecido, aflora o
problema que fragiliza a banca, o da própria economia, sobre o qual diz:
“Quando a economia fraqueja, o sistema
bancário não pode ser muito forte. E aí as
coisas ainda precisam de muito trabalho.”.
Sublinha que não foi a crise que levou o país ao
estado a que se chegou no âmbito das contas, mas os fatores que levaram à
crise, ou seja, a euforia, a subavaliação
de risco e a convicção de que “os negócios
eram todos bons”. E acentua:
“Foi basicamente a década de 2000, a nível
internacional, em que se criou a ideia de que tudo era possível. Quando
começamos a acreditar que tudo é possível, é melhor estar precavido porque no
fim vai haver asneira, de certeza.”.
Quanto à credibilidade do banco público, onde
ocorreram desmandos como os dos bancos privados, assegura:
“Um banco público é sempre um problema,
porque está mais sujeito do que os bancos privados à influência política. Portanto, se a própria governação política não
for muito criteriosa e rigorosa, há um risco. E este risco, aqui manifestou-se.”.
E diz que as boas intenções, se as houve, “às vezes, resultam muito mal”.
Em termos gerais, aponta que, num contexto internacional perigoso, era
necessário inovar na economia, ter empresas competitivas e captar capitais
estrangeiros. E, em particular, acusou:
“Tínhamos dinheiro. Dinheiro que, ainda para mais, não
era nosso. Eram fundos europeus, à nossa disposição para subsidiar coisas. […] Depois,
é fácil de cair. Porque os negócios são sempre
apresentados como negócios muito bons. E numa primeira fase até podem
dar resultado. Agora, a capacidade de avaliar esses
negócios e a sua sustentabilidade, nós não tínhamos muita prática nisso.
E a CGD não a tinha também.”.
E acrescenta:
“Mas não era só a Caixa. O bancos também
raramente o tinham, porque, na prática, tínhamos sempre tido um sistema muito
virado para pequenos negócios e para áreas muito bem definidas: construção, imobiliário. Nisso os bancos são todos mestres. Agora,
propriamente, indústrias novas, investimento produtivo em inovação, de grande
dimensão, etc… Tínhamos muito pouco conhecimento e muito pouca prática.”.
Não arrisca dizer que o país tenha retirado as
lições do sucedido na banca e, em particular, na CGD, justificando:
“A informação, nesta matéria, é escassa, é
muitas vezes contraditória e não é diretamente da nossa responsabilidade.
Portanto, não estamos [no Conselho das Finanças Públicas] a observar
isso. Nós temos sempre dito, e continuamos a dizer, que o setor
financeiro continua a ser um risco para o Orçamento. Não somos
capazes nem de o quantificar, nem de dizer exatamente onde é que está o risco.”.
E indica um problema típico de Portugal – a
tendência para a desarticulação –, frisando:
“É o sistema de governação no seu conjunto.
Não é só o Governo, nem é só o banco central ou o Conselho das Finanças
Públicas. Todas essas entidades precisam de se articular. Quando há
esses negócios, a tendência é exatamente para se desarticularem. Quem está
interessado em fazer avançar uma coisa avança a informação que convém ser
avançada e não avança o resto.”.
Depois, há questão das normas. Os bancos “são obrigados a deter mais
capital” e a “ter provisões para risco de crédito muito mais altas”, o que
implica a necessidade de “rentabilizar o crédito”. Porém, como “as taxas de
juro estão aos níveis que sabemos”, não dando “margem de negócio aos bancos”, a
margem de negócio fica basicamente “em coisas como o crédito ao consumo”, o que
representa “um risco para os bancos e para a economia”. E sustenta que “o negócio financeiro é um negócio que vive do risco”, o que postula
a capacidade da sua gestão.
***
De Centeno diz ter conseguido uma coisa que tinha
de ser feita: “meter na
cabeça dos portugueses” que “precisamos de controlar o
défice orçamental”. E explicita:
“Durante muitos anos ninguém se interessava
muito pelo défice. Vinham as regras europeias, mas conseguia-se sempre, mais ou
menos, contornar. Com a crise isso ficou à vista e a necessidade de controlar o
défice tornou-se evidente. E ele conseguiu controlá-lo. Mas isto é só um passo.
O que falta é garantir que esse controlo se mantém.”.
Teodora Cardoso mantém-se convicta de que a redução
do défice para 2019 depende “de fatores transitórios”, como “o ciclo económico,
a evolução dos juros e dividendos do BdP e da CGD”, não confiando na sua
sustentabilidade. E explica:
“As medidas que foram tomadas e
que conseguiram controlar o défice são medidas que ou consistiram em aumentos
de impostos ou em cortes de despesa. Mas não houve, por exemplo,
uma maneira de gerir as despesas diferente para garantir que esses cortes eram
suscetíveis de ser mantidos.”.
Diz que os desperdícios existentes postulam outro tipo de medidas que só em
parte dependem do Ministério das Finanças, dependendo mais da gestão dos
ministérios de linha, que, “para poderem exercer essa competência, precisam de
ter uma perspetiva de quais são os meios financeiros à sua disposição e terem
capacidade de os gerir”. Discorda que seja o Ministério das Finanças a
determinar o que e onde se pode ou não gastar, sendo mau que haja “muito pouca” confiança nos ministros – “uma das falhas
graves das nossas finanças públicas”, colmatável pela lei de enquadramento
orçamental aprovada em 2015, “que devia estar em vigor este ano, mas foi adiada
por mais dois anos”. E clama:
“O pior é que muitas das coisas que estão na
base dessas reformas ainda não foram feitas e não parece haver nenhuma
prioridade política para as fazer. Enquanto isto durar, as finanças públicas
não estão seguras.”.
Reconhece haver a perceção da necessidade de ter o défice controlado, mas sem
acordo no modo de o conseguir. E acusa duas pressões: a demografia, com o
envelhecimento; e o peso enorme da Segurança Social e da Saúde no Estado.
Neste contexto conjuntural, considera otimistas
as metas de crescimento enunciadas pelo Governo – otimismo perspetivado logo
aquando da avaliação do OE 2019 pelo CFP, mas acentuado agora sobretudo por
pressões externas, nomeadamente as que podem ter impacto no emprego, nas
exportações e no turismo, decorrentes de fenómenos como o Brexit. E acha que Centeno não pode estribar-se nas
cativações, pois não passam de adiamentos de despesa.
***
Sobre o CFP, entende que não precisa de mais
poderes nem os poderá ter “porque
vivemos numa democracia”. Os seus membros não devem ser eleitos, porque entrariam no mesmo jogo político dos eleitos. Precisa é de ter recursos, sobretudo
a nível financeiro, “para poder contratar pessoas competentes, que não há assim
tantas”. E, dizendo que sentiu essa fragilidade, revelou:
“Já temos uma
equipa bastante razoável, mas ainda há áreas difíceis de cobrir porque não
encontramos pessoas no mercado. Por outro lado, o Conselho precisa de manter
uma grande independência para poder dizer essas coisas e muitas outras. Para
fazer pressão no sentido, por exemplo, da necessidade de um planeamento a mais
médio prazo do Orçamento, de uma revisão de despesas que efetivamente o seja.”.
Por outro lado, diz que o CFP precisa da comunicação social, o “grande veículo”
para a divulgação do que faz e isso ser visto e ouvido pela “opinião pública”.
Sobre tentativas de interferência política no
trabalho do CFP, refere que não recebeu nenhuma pressão direta, mas que “houve pressões indiretas, através também dos media”, o que “faz
parte” da vida pública. E convive muito bem com as críticas do Ministro das Finanças ao trabalho do CFP. E adianta:
“Quando fomos criados, nessa altura todos os
partidos estavam contra o Conselho das Finanças Públicas, porque esta noção de
uma entidade independente em Portugal não soa bem. Nessa altura, estavam todos
contra nós e todos nos tinham criticado. Um jornalista perguntou-me se não me
sentia mal com isso. Eu respondi-lhe, e continuo a pensar da mesma maneira, que
[me sentiria] muito pior se todos estivessem de acordo connosco.”.
Sobre a sucessora, diz que tem, por um lado, “uma vida muito mais complicada” porque agora já se
fazem mais coisas que no início, pelo que a preocupação terá de ser a da continuidade e a do desenvolvimento de áreas onde
ainda “não conseguimos chegar”. Por outro lado, “tem uma vida muito
mais simplificada, porque é extremamente difícil criar de raiz uma instituição
como esta”, sobretudo pela resistência havida em Portugal “a este tipo de
instituição.
Admite o risco de se acabar com o CFP, risco que
“existe sempre”, mas que “agora já
tem um custo político que não é fácil de suportar, enquanto no início o custo
não era nenhum”.
Por fim, sugere que o próximo Governo pense “mais a sério no futuro
e não só nas próximas eleições”.
***
Conquanto haja tomado posições públicas corajosas
sobre as contas públicas, deixava subentender uma certa preferência pela
nefasta gestão (pelo excesso de austeridade) do XIX Governo e uma certa desconfiança em relação
ao atual, desconfiança essa de que se foi redimindo com o tempo, o que não
retira a Teodora Cardoso a liberdade de expressão decorrente do rigor técnico e
uma forte independência por vezes a raiar a convicção de que a verdade está
exclusivamente do seu lado. Não obstante, penso que a entrevista em causa é bem
ponderada e equilibrada no quadro da vertente neoliberal. Ademais,
para dizer ao Estado o que pretende para o CFP, não precisava de se escudar na
OCDE, como fazem os governos portugueses quando dá jeito!
2019.02.04
– Louro de Carvalho
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