segunda-feira, 31 de maio de 2021

Incoerência, défice de comunicação, heterofagia, oportunismo

 

O Governo, as entidades que o pressionam e as que têm o dever cívico e institucional de com ele cooperarem erraram na gestão do evento da final da Champions League no Porto. Com efeito, se não pôde e não pode haver público nos estádios, como não o houve nas disputas do Campeonato Nacional e na final da Taça de Portugal, é legítimo perguntar como foi possível admiti-lo agora no Dragão para ingleses e advertir que ainda não se vislumbra o tempo em que o público preencherá o espaço dos estádios para ver e apoiar as partidas de futebol.

Se temos de aprender com aquilo que corre mal, há mesmo que aprender e não remeter essa aprendizagem para ulteriores ocasiões, em que a pressão pode não a permitir, ou chutá-la para as calendas gregas.  

O ano passado, com a região de Lisboa e Vale do Tejo em situação técnica de calamidade por via da covi-19, realizou-se também, mas em Lisboa, a final da Champions League, previamente anunciada com pompa e circunstância pelo supremo garante da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, a partir da sua residência oficial – ele que agora fustigou o Governo pela deficiente gestão do evento, alegando que, tendo sido prometido que os adeptos ingleses viriam em bolha, tal não aconteceu, porque ou se vem em bolha ou não se vem em bolha.

Na verdade, a Ministra da Presidência garantira que os adeptos ingleses viriam em bolha, ou seja, viriam somente para assistir ao espetáculo e iriam embora de imediato, sem terem contacto com o resto da população (esqueceu-se de que não renunciariam ao contacto com a cerveja, quando os portugueses não podem consumir álcool na via pública…), o que não sucedeu, já que, ao invés, se dentro do estádio não terá havido problemas, o mesmo não aconteceu nas imediações, até porque a especulação encareceu excessivamente muitos dos bilhetes pela venda subterrânea dos mesmos, e muitas ruas da baixa portuense, desprovidas temporariamente de residentes, se polvilharam de estrangeiros. Se tinham vindo para o Algarve e demais sítios… Só vieram e foram em bolha os jogadores e dirigentes desportivos, que não os turistas!

Quer dizer, isto é défice de comunicação, mas não só. Há, desde logo, incoerência e duplicidade de atuação face aos critérios que pautam a manutenção das normas de restrição que o Governo mantém, para já, no seguimento do aconselhamento dos especialistas, que entendem que os critérios precisam de ser revistos mais tarde, por exemplo introduzindo o fator de gravidade tendo até aconselhado mais etapas do desconfinamento, o que o Governo prometeu seguir. Depois, não se percebe como, se no interior do estádio não houve problemas, como é que as forças de segurança não conseguiram travar as aglomerações de pessoas nas imediações e nas ruas. Foi a direção nacional da PSP que o proibiu, o comando metropolitano que esteve menos atento ou, mais uma vez, foi obra da suposta fragilidade de Cabrita, apontado como responsável por tudo quanto corre mal no país, talvez com a exceção dos fogos florestais de 2017, porque não era ainda o responsável pela tutela da Proteção Civil?

O Presidente da Câmara do Porto e o Presidente do FCP, que dantes ficaram orgulhosos porque, o ano passado, o clube portuense do Dragão não se espalhou nas ruas da covid-19 como desta vez o SCP, assestaram as baterias contra o Governo e a DGS pela permissividade para uns e o rigor para outros. E Pinto da Costa quer a demissão da responsável pela DGS, de governantes e o próprio Primeiro-Ministro (caso este não seja capaz de provocar as demissões). Obviamente, além da incoerência, há aqui insciência ou défice de comunicação: a Ministra da Presidência ou não sabia o que era vir e ir em bolha ou não o explicou como não o acautelou; e, até agora, todos os putativos responsáveis – políticos (governantes: Primeiro-Ministro, MAI, Ministra da Saúde, Secretário de Estado do Desporto) ou técnicos (PSP, SEF, FPF) – têm fugido a dar atempadamente respostas. Veremos se as respostas que estão a ser vertidas perante o Parlamento serão satisfatórias ou se apenas denotam o conveniente oportunismo face à força do desporto internacional e ao advento de turistas provenientes do Reino Unido, quiçá no quadro da velha aliança, em vez da firmeza na manutenção das condições de promoção da saúde pública em tempo de pandemia que ainda não abandonou o país, sendo que os dados mais recentes apontam para algum recrudescimento.

E, se é compreensível o oportunismo dos residentes no Porto em deixarem a cidade no passado fim de semana, já não o será o daqueles que exigem a abertura imediata dos estádios aos espectadores desportivos, o dos pregoeiros do deslaçamento das medidas de contenção no acesso às praias e permanência nas mesmas ou o dos preconizadores dos festejos dos Santos Populares (o Porto já está a começar com a disseminação dos odores joaninos) tudo ao molho e fé em Deus, pois se continuam a ser vedados os casamentos, batizados e comunhões com mais de 50% dos participantes, os grandes ajuntamentos peregrinacionais e processionais, que são muito menos infetocontagiosos que os ajuntamentos em regime anárquico…

Esta gritaria do Chefe de Estado sobre a pretensa revisão dos critérios da matriz da contenção da pandemia versus desconfinamento (porfiando respeitar os especialistas, mas lançando dúvidas porque o não seguiram), os remoques ao Governo pela bolha / não bolha do Dragão ou bolha que rebentou (aliás, toda a sua loquaz intervenção sobre tudo e mais alguma coisa, a tempo e fora de tempo), as acusações personalizantes das oposições políticas aos gestores técnicos da coisa pública (que devia ser mais direcionada aos decisores políticos) e a reivindicação intempestiva da volta imediata ao antigo normal nas ruas e estádios e da “democratização” das praias, tudo poderão ser indicadores duma certa heterofagia social que dê azo a um aproveitamento indevido e oportunista de forças políticas marcadas exteriormente por um populismo-nacionalismo desviante e interiormente prisioneiras duma nostalgia restauradora de passados indesejáveis para o comum dos cidadãos. A presença de Matteo Salvini em Portugal a mostrar a intenção de confederar a direita e os conservadores na Europa é de duvidoso augúrio como o é o facto de um determinado partido português reivindicar num futuro governo de coligação as pastas da Administração Interna, da Defesa, da Justiça e a da Segurança Social. Esta reivindicação, a ser concretizada no futuro, é um figo para quem pretende a exclusão de imigrantes e o banimento de determinadas etnias, a manutenção da paz e da segurança a qualquer preço, a multiplicação da tipificação de delitos, a criação de novas molduras penais e o agravamento de outras, o atropelamento do direito processual, os benefícios sociais alegadamente mal atribuídos e a subversão das normas constitucionais.

Passo ao lado a suposta discrepância comunicacional entre o Secretário de Estado da Saúde, que falava da aceleração da vacinação na região de Lisboa e Vale do Tejo, alegadamente por via do agravamento da situação pandémica, e o Primeiro-Ministro, que, em concordante resposta a Rui Moreira, do Porto, disse que a vacinação é feita equitativamente em todo o país. Como é sabido, a isto, o coordenador da ‘Task Force’, esclarecendo que a vacinação era equitativa para todas as regiões, explanando que a coordenação monitoriza o avanço da vacinação em cada região segundo os dados percentuais e que vai acelerando conforme verifica o atraso, aceleração que já tinha acontecido no Algarve segundo o critério percentual, o que acontecerá sempre de acordo com os parâmetros etários. Porém, no dia 28, no Infarmed, o Vice-Almirante Gouveia e Melo precisou que era necessário cuidar das pessoas idosas ainda não vacinadas – que vivem sós, acamadas ou em sítios inóspitos. São poucas, mas são pessoas e não podem ficar para trás.

Ora o episódio da suposta divergência não é injustiça, nem incoerência, nem mesmo défice de comunicação. É antes a ânsia do protagonismo da palavra. Efetivamente, se o renomado Vice-Almirante está a conduzir com proficiência o trabalho que lhe foi confiado, o que é verdade, embora com as pequenas exceções nas grandes tarefas, porque vêm as demais entidades bedelhar numa tarefa cujas competências delegaram? Se dúvidas tiverem, que lhas exponham no local próprio para tal debate, pois não se podem esquecer de que em tempo de pré-campanha eleitoral autárquica (mais que em outras) a tentação é de valer tudo ou quase tudo.

E as oposições, que têm tantas matérias em que podem e devem criticar o Governo, perdem-se em minudências… E o Governo agradece em silêncio. É pena se não têm projetos alternativos para o país, que parece estar a marcar passo na economia, na educação e na saúde, apesar de haver alguns indicadores de melhoria, sendo que não se passa do poucochinho que o Primeiro-Ministro criticava ao seu predecessor na liderança do partido.

É de esperar que a verborreia emergente do cansaço da crise sanitária e da crise económica e social não gere autofagia dentro de cada instituição, nos partidos e no todo nacional. Facilmente a heterofagia por via da exaustão gera autofagia disruptiva.

Enfim, quem não tem telhados de vidro!

2021,05.31 – Louro de Carvalho

domingo, 30 de maio de 2021

O que implica na prática “dizer” pela fé “Deus uno e trino”

 

Celebrar o mistério da Santíssima Trindade neste Ano B não postula a compreensão do mistério de Deus uno e trino ou triuno, que é inacessível à nossa inteligência limitada. Não obstante, a relação de Deus ao longo da História, mais explicitada e aprofundada com a incarnação do Filho de Deus, que pregou a Boa Nova e deu testemunho do Deus que é Amor, e iluminada quotidianamente pelo Espírito Santo, dá-nos a perceção suficiente para sabermos como celebrar a Solenidade e agir na vida em conformidade.

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Já o trecho do livro do Deuteronómio (Dt 4,32-34.39-40), tomado para 2.ª leitura na liturgia da Solenidade, nos leva à contemplação do Deus uno, não só o maior, mas o único. Na verdade, o livro em referência é o “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18.° ano do reinado de Josias (622 a.C. cf 2Rs 22). Aí os teólogos deuteronomistas, originários do Norte, mas refugiados no Sul após as derrotas dos reis do Norte pelos assírios, garantem a existência de um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém), pois amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna. Por seu turno, o Povo de Deus deve ser um único Povo e propriedade pessoal do Senhor, pelo que não têm sentido as questões que levaram o Povo à divisão político-religiosa, após a morte de Salomão.

O livro compagina um conjunto de três discursos de Moisés, proferidos nas planícies de Moab, como o testamento espiritual que Moisés, pressentindo a proximidade da morte, Moisés legou ao Povo lembrando-lhe o compromisso assumido para com Deus e convidando-o a renovar a aliança com Ele. E o trecho ora em apreço insere-se no 1.º discurso de Moisés (cf Dt 1,6-4,43). Na primeira parte do discurso (cf Dt 1,6-3,29), o hagiógrafo põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, da estada no Horeb (Sinai) à chegada ao monte Pisga (Transjordânia); e, na parte final (cf Dt 4,1-43), resume, em modo exortativo, o teor da Aliança e das suas exigências. Com efeito, a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo deve conduzir ao compromisso.

Será de frisar que o capítulo 4 do livro foi redigido na fase final do exílio na Babilónia. Perdido em terra estrangeira, imerso numa cultura estranha, hostilizado ao afirmar a fé no Senhor e celebrá-la pelo culto e impressionado com o esplendor ritual e solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico tentava-se a trocar Javé pelos deuses Babilónicos. É, pois, neste contexto que os teólogos se veem na urgência de instar o Povo a rever a sua história e ali redescobrir a presença salvadora e amorosa de Javé e a recomprometer-se com Deus e com a Aliança.

Assim, no trecho que a liturgia põe à nossa consideração, vemos o teólogo a convidar Israel à contemplação da história desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra, com o contínuo empenho de Javé em oferecer ao seu Povo a vida e a salvação. Toda esta história é uma história extraordinária de relação, em que ressalta a manifestação do amor de um Deus empenhado em estabelecer comunhão e familiaridade com o seu Povo. Ou seja, Javé escolheu Israel de entre todos os povos da terra, veio ao seu encontro, falou-lhe ao coração e realizou gestos destinados a levar o Povo ao encontro da vida. De muitos modos, Deus fez ouvir a sua voz, indicou caminhos e conduziu o seu Povo da escravidão para a liberdade.

Por consequência, na ótica do teólogo deuteronomista, Israel deve, antes de mais, reconhecer que “só o Senhor é Deus e que não há outro”. D’Ele e só d’Ele brotam a vida e a salvação, o que postula que o Povo não coloque a sua esperança noutros deuses ou noutras propostas ilusórias e enganadoras. Depois, Israel deve cumprir as leis e os mandamentos de Deus, pois essas leis e mandamentos são o caminho seguro para a felicidade. Mais: este caminho dos crentes de Israel é indicado aos crentes de todas as épocas e lugares. Não é um caminho de dependência e servidão, mas de felicidade. Deus não se imiscui na vida dos homens para os fazer dependentes, mas para os libertar e os levar à vida e felicidade plenas.

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O Povo bíblico veterotestamentário tinha a noção do Deus Único e do seu desvelo pelos homens, mas não a ideia da Trindade de Deus na Unidade. Esta é revelada por Jesus, como se pode ver compulsando várias passagens do Novo Testamento, de que o trecho (Mt 28,16-20), tomado para proclamação e meditação orante na liturgia da Solenidade, é um bom exemplo.  

Estamos na Galileia, após a ressurreição de Jesus (sem dizer se é muito ou pouco tempo após a visão do túmulo vazio – cf Mt 28,1-15). Segundo Mateus, pouco antes da prisão, Jesus marcara encontro com os discípulos na Galileia (cf Mt 26,32); e, na manhã da Ressurreição, o anjo que apareceu às mulheres no sepulcro (cf Mt 28,7) e o próprio Jesus, vivo e ressuscitado (cf Mt 28,10), mandam recado para que os discípulos, ora irmãos, se dirijam à Galileia, que lá O encontrarão.

Recorde-se que a Galileia, região setentrional da Palestina, era próspera e povoada, de solo fértil e cultivado. A situação geográfica fazia da região ponto de encontro de muitos povos, pelo que um número significativo de pagãos integrava a sua população. Ora, a coabitação de populações pagãs e judias fazia com que os judeus da Galileia vivessem a religião de maneira diferente dos judeus de Jerusalém e da Judeia: a presença diária dos pagãos levava os galileus a suavizar a prática da Lei e a interpretar amplamente as regras conexas com ela, por exemplo, no atinente às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. E isto fazia com que os judeus de Jerusalém desprezassem os galileus e considerassem que da Galileia “não podia sair nada de bom” (cf Jo 1,46). Todavia, foi na Galileia que Jesus viveu quase toda a sua vida e foi ali que Ele começou a anunciar o Evangelho do Reino e a reunir à sua volta um grupo de discípulos (cf Mt 4,12-22). Para Mateus, este facto sugere, desde logo, que o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão universal: destina-se a judeus e pagãos.

Mateus situa o encontro final entre Jesus ressuscitado e os discípulos, num “monte que Jesus lhes indicara”, impossível identificar geograficamente, mas que talvez se ligue com a montanha da tentação (cf Mt 4,8) e com a da transfiguração (cf Mt 17,1). Seja como for, é certo que o monte é sempre, no Antigo Testamento, o lugar onde Deus Se revela aos homens.

Para Dom António Couto, Bispo de Lamego, a montanha é aqui a analepse das montanhas que afloram no Evangelho mateano: da tentação (Mt 4,8), das bem-aventuranças (Mt 5,1), da oração (Mt 14,23), das curas (Mt 15,29) e da Transfiguração (Mt 17,1). O prelado mui sabiamente considera esta página evangélica a condensação e resumo de todo o Evangelho mateano, bem como o termo de abertura de “novos e insuspeitados horizontes” aos “discípulos e irmãos do Ressuscitado”. E surpreende-nos a evidenciar as notas essenciais do texto, qual “átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo”: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade; a missão universal confiada a uma Igreja discipular, reunida à volta dum único Mestre e Senhor; o mandato do ensinamento pelos discípulos (só aqui é dito que os discípulos devem, por sua vez, ensinar), mas não se transformando os discípulos em mestres, devendo permanecer discípulos; o ensinamento de nada de próprio nem por conta própria, mas só de “tudo o que Eu vos mandei” (“pánta hósa eneteilámên hymîn”); e a presença nova e permanente, ou seja, “todos os dias” (“pásas tàs hêméras”) do Ressuscitado na comunidade dos discípulos.

O trecho em referência divide-se em duas partes.

A primeira (Mt 16-18) descreve o encontro em que Jesus, vivo e ressuscitado, Se revela­ aos discípulos e os discípulos O reconheceram como “o Senhor” e O adoraram (“prosekýnêsan”). Depois da adoração, Mateus acrescenta a expressão “hoi dè edístasan(em latim: “quidam autem dubidauerunt”), que uns traduzem por “alguns ainda duvidaram” e outros por “eles que tinham duvidado”. São legítimas as duas traduções em termos gramaticais. Para o primeiro caso, é de ter em conta que a fé não é uma certeza científica e não exclui a dúvida; para o segundo, é de recordar a dúvida constante dos discípulos, expressa recorrentemente ao longo da caminhada para Jerusalém e que perde aqui razão de ser. Ao reconhecimento e à adoração dos discípulos, seguiu-se a manifestação do mistério de Jesus, que reflete a fé da comunidade mateana: Jesus é o Kýrios, que possui todo o poder sobre o mundo e a história; é o Mestre cujo ensinamento será a referência para os discípulos; Jesus é o Emmanuel “Deus­ connosco(“meth’ hêmôn ho Theós”), que acompanha pari passu a caminhada dos discípulos pela história.

A segunda parte (Mt 19-20) sublinha o envio dos discípulos em missão pelo mundo. A Igreja de Jesus é uma comunidade missionária, cuja missão é testemunhar, sempre e em toda a parte, a salvação que Jesus traz a toda a humanidade e que deixou no coração e nas mãos dos discípulos. A grande marca do envio dos discípulos por Jesus e do mandato que lhes dá é a universalidade: a missão dos discípulos destina-se a “todas as nações(“pánta tà éthnê”). Outra marca é a do faseamento da concretização da missão em duas etapas: o ensino catequético e o batismo. O conteúdo da catequese eram as palavras e os gestos de Jesus (o discípulo começava em catecumenato, que lhe dava as bases da doutrina). Depois, quando os catecúmenos estavam suficientemente cientes e cônscios dos conteúdos da catequese, recebiam o batismo a selar a íntima vinculação do discípulo com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E a marca mais reconfortante é da perpétua presença de Jesus com os discípulos, “até ao fim dos tempos” (“héôs tês synteleías toû aiônos”). Esta garantia de Jesus exprime a convicção, própria da comunidade mateana, de que o Ressuscitado está sempre com a Igreja, acompanhando a comunidade dos discípulos na marcha pela história, ajudando-a a superar as crises e as dificuldades da caminhada.

Dom António Couto sublinha que a soberania nova de Jesus foi preparada na cena em que o anjo reorientou os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes:

Indo depressa, dizei aos seus discípulos (“toîs mathêtaîs autoû”) que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (“proágei hymâs) na Galileia” (Mt 28,7).

E Jesus apresenta-se às mulheres no caminho e reformula o recado do anjo:

Ide e anunciai aos meus irmãos  (“toîs adelphoîs mou”) que partam para a Galileia, e lá me verão” (Mt 28,10).

Meus irmãos é o precónio da nova e indestrutível familiaridade, com Jesus a apontar para nós e a envolver-nos no indizível abraço fraternal. E, chegados à Galileia, à montanha indicada por Jesus (Mt 28,16), é Ele quem toma a dianteira e Se aproxima deles e de nós (Mt 28,18); é d’Ele a iniciativa; é sempre Ele que abraça a humanidade e abre rotas à nossa fragilidade.  

“Indo (“poreuthéntes), fazei discípulos (“mathêteúsate) de todas as nações” (Mt 28,19) é um segmento textual que espelha a missão sem fim que nos é posta ante os olhos, pois todas as nações são todos os corações. E “ir” é o inverso dinâmico do ficar à espera aqui ou ali. É ir pelo imensurável caminho abraâmico que se abre para nós e cuja bitola é a nossa eleição por Deus, a sublimidade da bênção e a grandeza da missão. E não estamos sozinhos neste caminho, porque Ele está connosco todos os dias. Com efeito, o seu nome e identidade são estar connosco. É assim que termina o Evangelho “Eu convosco sou todos os dias até ao fim dos tempos(“Egô meth’ hymôn eimi pásas tàs hêméras héôs tês synteleías toû aiônos: Mt 28,20), quase como vem no início: “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão Emanuel, que se traduz: “Deus connosco(“meth’ hêmôn ho Theós”: Mt 1,23), mas no final do Evangelho com a explícita garantia da perpetuidade. Aliás, é assim todo o Evangelho, segundo Dom António Couto, como indica a figura da inclusão literária, em paralelismo ou em confronto, que vai, por exemplo, da Galileia onde se inicia a pregação messiânica (Mt 4,12-17) à Galileia onde os discípulos se reuniram com o Ressuscitado (Mt 28,16); da visão da estrela pelos magos (Mt 2,11) à visão de Jesus pelos discípulos (Mt 28,17); da adoração dos magos e da exigida a Jesus pelo diabo (Mt 2,11; 4,9) à adoração dos discípulos (Mt 28,17), do poder que o diabo daria a Jesus (Mt 4,9) ao poder dado a Jesus Pelo Pai (Mt 28,18).

E o “ensinando” (“didáskontes) discipular, não magistral – continua o Bispo de Lamego – “apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade e criatividade”. Tanto assim é que o Senhor deixa bem nítido o teor deste ensino: “tudo o que Eu vos mandei(“pánta hósa eneteilámên hymîn”: Mt 28,20), como já foi referido. Só permanecendo discípulo fiel é que o apóstolo exerce a missão, pois discípulo é quem segue com fielmente o Senhor que nos guia e precede.

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Por tudo isto, na Solenidade da Santíssima Trindade, o crente e a Igreja dos crentes exprimem a sua alegria celebrando o mistério e adorando o Deus Triuno – um só Deus em três Pessoas iguais e distintas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A pari, renovam e reforçam o peculiar compromisso que assumiram, através de Jesus, Deus Filho, com Deus Pai e com a sua obra, guiados por Deus Espírito Santo. Como seres discipulares e comunidade discipular, devem assumir com fidelidade o ónus e a alegria da missão universal, conforme ao mandato que receberam, sentindo a presença companheira do Senhor e dando testemunho do Deus que é Amor, do Deus que é para nós, do Deus uno e único e que é família em intimidade e comunhão.

Depois, à semelhança de Deus que é unidade de natureza na diversidade de pessoas, há que respeitar, promover e garantir a diversidade e diferenças entre pessoas, povos e culturas, mas fazer vingar a certeza de que devemos caminhar para a unidade a que somos chamados, porque filhos do Pai comum, a começar por Jesus Cristo que, redimindo-nos, Se fez nosso irmão e nos alçou à condição de filhos com Ele, Nele e por Ele.

Por fim, há que almejar a plena comunhão e intimidade de todos com e na Santíssima Trindade, percurso que se inicia neste mundo e nele se alimenta com a Oração, a Palavra, o Testemunho e o Sacramento da Eucaristia. É um dinamismo de filiação divina, prerrogativa conferida à condição humana, que pretende não deixar ninguém para trás; é a perspetiva da fraternidade universal porque todos, na diversidade de dons, serviços, culturas, comungamos da mesma natureza humana e, pela fé, formamos um só compro, recebemos um só batismo, temos um mesmo Senhor e Mestre, somos vivificados e conduzidos pelo mesmo Espírito, que nos leva a clamar “Abba, ó Pai!”.

Segundo a Carta aos Romanos (Rm 8,14-17), a condição de filhos equipara-nos a Cristo. Somos “herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo”, herdamos a vida eterna. O nosso Deus é o Deus da relação, apostado em vir ao encontro de todos os homens e mulheres a oferecer a vida, a integrá-los na sua família, a amá-los com amor de Pai, a torná-los herdeiros da vida plena e definitiva.

2021.05.30 – Louro de Carvalho

sábado, 29 de maio de 2021

A Igreja pode ter papel importantíssimo na mudança de mentalidade

 

É a pertinente convicção de Luísa Schmidt, pioneira da Sociologia do Ambiente em Portugal, manifestada em entrevista do dia 23 de maio à Renascença e à Ecclesia, em que assume a ‘Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum ou ecologia integral, como uma referência e o Papa Francisco um interlocutor indispensável na próxima Cimeira do Clima, em Glasgow.

Maria Luísa de Carvalho de Albuquerque Schmidt, socióloga especialista nas áreas da comunicação e do ambiente, jornalista, é professora e investigadora principal do ICS (Instituto de Ciências Sociais) da UL (Universidade de Lisboa) e trabalha sobre temas conexos com o ambiente, educação e educação ambiental. Faz parte da equipa que introduziu em Portugal a Sociologia do Ambiente, tanto na investigação e no ensino como na articulação entre academia e sociedade.

Alia, desde cedo, a investigação à promoção da cultura científica e à sensibilização das populações para as políticas públicas na área do ambiente.

Integra o Conselho Consultivo da APREN (Associação Portuguesa das Energias Renováveis) e, desde 2009, o Comité Científico do Programa Doutoral em “Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável”, resultante de parceria entre a Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa e com a colaboração da Universidade de East Anglia, da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenou o grupo de trabalho no âmbito da Comissão Nacional da UNESCO para a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014).

Desde 2019 é Vice-Presidente da Mesa do Conselho Científico Internacional do Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo & Globalização, em Portugal. E, desde 2018, participa nas investigações dos projetos “People & Fire – As Pessoas e o Fogo: Reduzir o Risco, Conviver com o Risco” e “RIVEAL – Riparian Forest Values and Ecosystem Services in Uncertain Freshwater Futures and Altered Landscapes / Valores e serviços dos ecossistemas fluviais e das florestas ripárias em paisagens fluviais alteradas e futuros climáticos incertos” – ambos financiados pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia)

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Considerando a progressiva atenção dada à crise climática, aborda o papel que a Igreja tem tido e pode ter na mudança de mentalidade, com impacto global. Pensa que “a Igreja pode ter um papel importantíssimo na mudança de mentalidade” e nas mudanças que urge pôr em prática, inspiradas na encíclica ‘Laudato si’, pois esta contém aspetos que “chegam às pessoas todas” e hoje “são muito valorizados na sociedade”. E releva dois pontos: a questão científica e a da equidade e justiça ambiental. É importante a encíclica ser muito bem baseada em factos científicos, já que o quotidiano é cada vez mais modelado pela ciência, o que se torna ainda mais evidente na pós-pandemia. Ora, a assunção da vertente científica por parte da encíclica releva a importância dos factos científicos e constitui um exemplo de audição dos cientistas e da premência do papel que eles podem desempenhar. No atinente à equidade e justiça ambiental, salienta como da pandemia se concluiu pela cada vez mais clara necessidade de as fazer chegar a toda a gente, tal como outros bens, pois “vivemos num mundo interdependente”, não valendo a pena dizer que estamos “muito seguros num lado”, se não houver segurança generalizada. O mesmo se diga da questão central das alterações climáticas.

Assegura que perspetiva social com que o Papa aborda estas temáticas é uma chave leitura “fundamental, absolutamente central e muito inovadora”. Com efeito, Francisco acrescenta aos estudos teóricos atinentes à justiça ambiental e à justiça climática “uma ênfase especial”, deveras importante. Fala muito na dívida dos países do Norte aos países do Sul, mercê da exploração excessiva de recursos, do abuso dos recursos naturais e das emissões de gases com efeito de estufa (produzidas sobretudo pelos países do Norte, mas sendo os países do Sul quem sofre). Chama a atenção para esta dívida Norte-Sul, extremamente atual. E Schmidt explica:

No acordo de Paris, uma das questões essenciais a partir de agora, de 2021 (…) é a transferência de verbas avultadas, 100 mil milhões de dólares por ano, para os países em desenvolvimento poderem adaptar-se às alterações climáticas. Porque o que temos hoje é, de facto, uma grande injustiça, temos eventos extremos, tempestades, que nos países que não estão adaptados, os países pobres, provocam danos enormes e tragédias imensas, com muitos mortos, quando a mesma intensidade de tempestade ou de evento extremo num país do Norte, organizado e preparado, tem muito menos impacto.”.

Concorda com os entrevistadores que lembram ser esta a lógica do discurso do Papa, que convocou o ano especial ‘Laudato si’ para ouvir “o grito da Terra e o grito dos pobres”, acabando por ser central neste discurso “a questão da dívida ecológica”. Todavia, chama a atenção para a necessidade de percebermos que, “enquanto não resolvermos esses problemas, o securitário Norte também não está seguro”, como a pandemia deixou entrever: “ninguém está seguro, porque justamente a globalização trouxe-nos esta interdependência em que todos vivemos”. Considera “também uma questão de inteligência e pragmatismo por parte do Norte” (mesmo que não seja a questão ética, que é fundamental no Papa e para si também) “que se resolva este problema pensando na adaptação dos países do sul, na transferência de tecnologia, mas que seja uma tecnologia adaptada”. E avisa:

Não vale a pena continuarmos a transferir tecnologia para os países em desenvolvimento e depois não haver pessoas com capacitação para a gerirem. O mundo está cheio disso, infelizmente, muitas destas organizações internacionais fazem isso, e temos países pobres e em desenvolvimento com cemitérios de tecnologias que não são utilizadas. Não é isso que se pretende.”.

Outra das áreas caras para o Papa é a capacitação. É certo que outros economistas também a consideram, mas Francisco releva aqui uma componente importante: “a pobreza e o ambiente estão interligados”, não valendo a pena pensar-se que “vamos conseguir resolver os problemas ambientais” mantendo “esta pobreza extrema, esta desigualdade enorme”.

Observa que se ganhou, com a encíclica, mais consciência da relação direta entre a pobreza e o ambiente. E coloca a par a tríade de eventos muito interessante em 2015: a assinatura do Acordo de Paris; o lançamento dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) para todo o mundo pelas Nações Unidas; e a encíclica papal. É uma tríade que “traz para a agenda pública e política todo este problema visibilidade da questão das alterações climáticas, da justiça socioambiental e da necessidade de nos entendermos para conseguirmos todos continuar aqui”.

Sobre a grande mobilização dos mais novos, de que são exemplo as greves climáticas e a intervenção da Greta Thunberg, entende que é importante e tem contribuído para o aumento da consciência global. Porém, frisa que isso vem já depois daLaudato si’ e do Acordo de Paris. Na verdade, foi em 2018, na cimeira da Polónia, que surgiu a figura da Greta Thunberg e todo o movimento jovem ligado à greve climática e aos Friday For Future, movimento interessante, por configurar uma chamada de atenção das gerações novas para este problema intergeracional, o de “um planeta imprestável”. Ora, como escreve o Papa na encíclica, “não podemos deixar esta herança absolutamente imprestável às gerações futuras”.

Depois, a importância destes fenómenos juvenis decorre do facto de os jovens de hoje serem muito ouvidos e esta  geração estar particularmente preparada. Com efeito, “se olharmos para os indicadores da educação, nunca tivemos uma geração jovem com tanta formação como agora existe em todos os sítios do mundo”; e, no nosso país, talvez esta seja a geração com maior formação que existe, “mesmo em termos internacionais”. Ademais, é “uma geração muito preparada em termos mediáticos, dos novos media, comunica entre si com uma grande facilidade”; geração muito sensível, pois viveu várias crises: a crise financeira, a crise climática e ambiental e a crise pandémica, o que a faz atenta à necessidade de mudança. 

A propósito destas crises e de tantos outros sinais preocupantes, a entrevistada considera este compromisso das novas gerações como um sinal de otimismo, pois são os jovens quem decidirá amanhã o que se vai passar. E aproveita o ensejo para desmontar a ideia de que os jovens não se interessam pela política, ao invés, assegurando que “estão interessadíssimos na política” e com “preocupação sobre o que se passa a vários níveis, desde logo o nível ambiental e todo o problema das alterações climáticas e da perda de biodiversidade”, outro problema gravíssimo “a que eles estão particularmente atentos”, referindo os relatórios que a situação se agravou.

São, pois eles que “vão levar muito mais a sério todas estas medidas de que o Papa, aliás, fala”.

Depois, salienta como um dos dados interessantes da encíclica a sua abrangência, pois “vai desde os problemas todos elencados até às soluções, até à ideia de que todos nós temos aqui um papel, o papel individual e coletivo”, o que é deveras importante.

Sendo-lhe lembrado que a biodiversidade é interessante, porque Francisco fala de qualquer pequeno organismo, não apenas do ser humano, Schmidt aduz que “não podemos desarticular a questão climática da crise da biodiversidade”, como a pandemia tornou claro. E, como a pandemia nitidificou que “o excesso de intrusão na natureza” pode ter – e está a ter – “consequências catastróficas”, é preciso acabar com esse excesso de intrusão.

Deplora as coisas más que vêm ocorrendo desde 2015 até agora, entre as quais destaca a administração Trump e a forma como travou a continuidade duma série de medidas ligadas ao Acordo de Paris. Mas não esquece as coisas interessantes que também ocorreram, como o Pacto Ecológico Europeu, em 2019, direcionado para a regeneração da natureza, a crise climática, a transição energética e ecológica e a economia circular, vincando que nunca a Europa tinha assumido como seu plano e programa um pacto ecológico, uma questão central, muito inovadora e esperançosa, agora que temos nova gestão nos EUA, com Biden muito preocupado com o Green Deal (uma das primeiras coisas que fez foi reintroduzir os EUA no acordo de Paris). Sublinha que, apesar dos problemas que decorrem a outros níveis, há uma conjuntura particularmente interessante, com o Secretário-Geral da ONU (António Guterres) com mais força, o qual “tem chamado muito a atenção para estes temas”. E enfatiza que, nos últimos 5 anos, muitas tecnologias ficaram maduras e que tudo o que se liga com as energias renováveis é muito mais barato. Por exemplo, um painel solar, baixou quase 60% nos últimos 7 anos.

E, considerando que há uma série de condições muito propícias para que muitas das medidas pensadas na ‘Laudato si’ possam fazer o seu caminho, entende que se abriu um novo capítulo, com apetência e sensibilidade diferentes por parte das populações, por via da pandemia, em relação ao que se prende com a biodiversidade. Isto, a par duma certa visão do consumismo excessivo e da “cultura do descarte”, que o Santo Padre vem denunciando. Com efeito, o consumismo excessivo, porque é predatório, tem de ser travado.

Que as pessoas estão muito mais sensíveis, devido à pandemia, vê-se através dos inquéritos do “Observatório de Ambiente, Território e Sociedade”, que mostram que as pessoas têm muito maior sensibilidade às questões da natureza, aos espaços verdes, a uma vida cívica mais ativa, mas também mais interativa com esses espaços. E exigem isso pela necessidade da relação da natureza com o lazer e, sobretudo, por se tratar duma “questão de saúde, mental ou física”.

Está convicta de que não se trata de reação transitória, mas de “coisas que vieram para ficar”. Di-lo estribada num inquérito lançado logo no rescaldo da crise financeira em Portugal, de que resultou a perceção de que “as pessoas, cada vez mais, procuravam espaços verdes, públicos, de uso gratuito”, o que se reforçou e alargou “substancialmente com a crise pandémica”. E um dos indicadores que seleciona “é que nunca houve tantos movimentos em Portugal” – “um país onde as pessoas, civicamente, não se mexem muito, não participam” – “por espaços livres, contra determinado tipo de obras que podem ser lesivas do espaço natural”, o que indicia mudança de paradigma e mostra que “nunca a ‘Laudato si’ esteve tão atual. Na verdade, como afirma, o que se passou nos últimos 5 anos dá razão, força e realce a alguns dos aspetos que o Papa considera centrais na necessidade de mudança.

Tem como ótimo exemplo de mobilização a existência, no país, da Rede ‘Cuidar da Casa Comum’, ligada à Igreja Católica, que promove a ecologia integral e estilos de vida mais sustentáveis. E evoca a memória de Manuela Silva, a sua iniciadora, para enfatizar esta ligação entre movimentos, que “pode criar uma dinâmica importantíssima, em Portugal, no sentido da mudança que todos precisamos de fazer”.

Quanto à nova cimeira de Glasgow, em novembro próximo, julga fundamental que o Papa venha a participar, pois ele, que participou no encontro promovido pela administração Biden, uma espécie de pré-cimeira, neste momento, é a grande figura política, o líder político da investigadora, por ter conseguido algo que estava em falta na Igreja, esta ligação às pessoas. Na verdade, como critica, e bem, a Igreja Católica estava afastada, do que pode ser o maior sintoma a proliferação de “Igrejas” em vários sítios. Porém, este Papa “chama a atenção para a importância dos católicos na vida ativa, na vida quotidiana, na vida política, na intervenção política”, no sentido mais nobre do termo, que é o sentido em que ele o utiliza sempre. E é deste ponto de vista que a entrevistadora o considera um líder político.

E, falando da diplomacia, Schmidt releva que Biden trouxe de volta uma América interessada na diplomacia ambiental, o que é muito importante, com a tal pré-cimeira. E, a pari, diz que a diplomacia do Papa é central aqui, tendo ele um papel consensual, sem ter de fazer milagres. Por isso, a sua participação na cimeira de Glasgow, um encontro tão importante, seria grande mais-valia e grande esperança para chegarmos a bom porto, pois “temos pouco tempo”. 

Por fim, destaca um conjunto de variáveis que propiciam a conjuntura de esperança: vontade de exercício da diplomacia ambiental; uma geração nova muito preparada e com vontade de intervir e alcançar compromissos a este nível; a UE com o Pacto Ecológico Europeu, a querer a mudança de fundo, não deixando ninguém para trás; e o exercício da diplomacia da UE com os países que são mais próximos, na África, promovendo este modelo, para “conseguir integrar e levar mudanças, tecnologias apropriáveis e apropriadas a outros países”. De facto, é de não esquecer que “África é particularmente importante no nosso contexto português”.

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Requer-se, pois, forte mudança de mentalidade e hábitos, sendo os líderes, entre os quais o Papa, o grande motor, para o que se há de mobilizar toda a sociedade, mormente os mais novos.

2021.05.29 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Direita política órfã de pai vivo desentende-se e o Governo sobrevive

 

 

A 3.ª conferência do MEL (Movimento Europa e Liberdade), que ocorreu em Lisboa recentemente, recebeu Passos Coelho com o entusiasmo usualmente manifestado perante os grandes líderes. Porém, o antigo líder socialdemocrata – neste convénio supostamente das direitas, mas que parece não o ser pela recusa de Rui Rio em situar-se à direita, reclamando-se do centro político – mostrou-se decidido a manter-se afastado da corrida à liderança do PSD, pelo menos no atual ciclo político, pois o dele, se houver de surgir, não parece estar iminente. Assim, não é crível que se apresente às eleições diretas, em janeiro próximo, para a liderança do ainda maior partido da oposição, momento de reavaliação da liderança de Rio.

Um pouco à semelhança do que dizia António José Seguro em tempos idos “qual é a pressa?”, embora sem se despedir da política ativa e sem dizer “vou andar por aí(como Santana Lopes), Passos finca-se persistente na indisponibilidade, por sentir prematuro um eventual regresso.

O ex-Primeiro-Ministro disse-o a algumas pessoas que lhe acenaram com a ambição da disputa da presidência do partido, mas o próprio mantém a avaliação de que é preciso dar lugar a gente mais nova, quiçá por julgar que não há condições para a direita governar, com ele ousem ele, nos anos mais próximos. Sentindo-se desejado pela sua família política, observou que “uma coisa é federar a direita, outra é ter condições para governar” e que, não estando esgotado o ciclo do PS, este terá que responder pela sua gestão da coisa pública, nada lucrando os opositores em antecipar um desfecho, a menos que seja através do desgaste do costismo, o que não é fácil. E, sem o dizer verbalmente, mostrou pela mímica a insatisfação pelo desempenho de Rio, apesar de este haver desferido um ataque direto e frontal ao Governo, que acusou de “não querer reformar o país”.

Entretanto, o ex-Primeiro-Ministro é cada vez mais apontado como o único homem capaz fintar a esquerda, não vá acontecer que o Chega, de André Ventura, se consolide como tendência para o segundo lugar no xadrez político-partidário. Por isso, alguns defendem a reiteração da sua presença em eventos como o MEL. Consideram que ele “tem o carisma dos líderes míticos”, que “acabam por ficar reféns do próprio mito”. Só que dizem ter ele um antídoto para esse risco, como sair de cena, voltar à vida pacata e ir reaparecendo. Assim, é errado querer estabelecer-lhe prazos ou encarregá-lo de preencher um vazio. Mas, para os observadores, ele quereria recuperar a governança para fazer o que deixou a meio e mostrar a validade do seu programa reformista para o país, embora longe de estar disponível para repetir a saga de 2015 de eleições ganhas e com a obrigação de passar a pasta ao então dito maior partido da oposição. Por isso, é crível que regresse apenas quando pressentir a consecução duma maioria absoluta, o que não parecer assomar no horizonte.

Rui Rio assente que “é muito difícil uma maioria absoluta, sozinho é difícil, temos de estar abertos”. E Passos, mesmo estando fora, quis vincar com a sua permanência na ‘convenção das direitas’ que a via do PSD é por ali, sem medo de se somar à direita.

Foi nesta linha de pensamento que todos queriam falar com Passos, dos membros do Chega ao IL (Iniciativa Liberal), passando pelo CDS. O socialdemocrata Miguel Pinto Luz justificou esta postura assim: foi a “orfandade” deixada na direita após a saída de Passos que levou ao surgimento de forças como o Chega ou o IL. E sustentou que só uma mudança de liderança no PSD resolveria parte do problema, mas com um “projeto alternativo para o país”, enquanto Miguel Poiares Maduro defende: primeiro, um “projeto de país”, não confundível com um “projeto de poder oportunista”, como o do Chega (iliberal); e, depois, a liderança.

Uma fonte socialdemocrata disse acreditar que Passos poria o partido com 32% e, somando com o resto da direita, faria os 45%, o que Marcelo terá dito que era o que a direita precisava.

Contudo, até os órfãos do passismo se vão adaptando à ideia, no sentido de terem de esperar pelo fim do ciclo do PS e mesmo da zanga de comadres no partido do governo por via da luta sucessória. Porém, outros com José Miguel Júdice pensam que a direita pode mesmo ficar a ver navios até 2027, pois, como dizem, “Costa é mestre a beneficiar do seu próprio demérito”.

Por sua vez, o CDS tem o centro no programa, mas abusa da crítica aos socialdemocratas.

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André Ventura avisou Rio de que, a haver um Governo liderado pelo PSD, saído das próximas eleições legislativas, o Chega não será “partido-muleta, como o CDS foi em tempos”, nem de protesto, como o BE (Bloco de Esquerda), nem força partidária engolida pelo PSD. E o líder diz:

Se tivermos de mandar abaixo um Governo do PSD, mandamos”.

Na moção que levará ao Congresso (este fim de semana) sob o título “Governar Portugal”, Ventura tem o partido como “parceiro incontestável de Governo por direito e mérito próprios” e quer que ele “imponha uma margem para ser um membro ativo de uma governação”, esperando que o Congresso o valide, ou seja, conceda o mandato para fazer as negociações necessárias. Quer, ao menos, 4 ministérios: Administração Interna, Defesa, Justiça e Segurança Social. E garante:

Se o Chega tiver 15% e o PSD se recusar a conceder-nos esses 4 ministérios, não haverá Governo”.

Diz que Rio conhece genericamente estas condições, mas que no Congresso apresentará este caderno de encargos para Rio ou para outro que venha a ser eleito. E reconhece que o partido a que já pertenceu tem “gente inteligente”. Todavia, o Congresso decidir-se-á ou só pelo apoio parlamentar ou por negociações para condicionar um Governo com a presença do Chega.

Assim, face a duas hipóteses que o PSD venha a propor – participação do Chega no Governo, mas sem Ventura ou o Chega limitar-se a dar apoio parlamentar sem entrar no Governo – Ventura entende que a segunda deve ser recusada liminarmente, sendo tal recusa inspirada na experiência nos Açores. O Chega e o Iniciativa Liberal (IL) sustentam o Governo Regional de Bolieiro (PSD/CDS/PPM) por acordos de incidência parlamentar, mas Ventura já ameaçou fazer cair o Executivo pelo menos duas vezes. E, dar apenas apoio parlamentar implica uma capacidade fraca de influenciar a governação. Por isso, formula um recado interno:

Se o Congresso entender que devemos apoiar um Governo do PSD, seja em que circunstâncias for, há uma certeza: não será comigo”.

Porém, o IL diz que não participará num Governo onde esteja o Chega. E tal postura dependerá da força eleitoral dos liberais, sendo, para Ventura, praticamente impossível PSD, CDS e IL formarem um Governo sem o Chega.

Ventura conta com a dramatização que o PSD faça num cenário de finca-pé do Chega, prognosticando que “O PSD dirá que só não há um Governo de direita porque o Chega não aceita as suas condições” e “vai procurar dizer até ao fim que não tem nada a ver com o Chega”, acabando por concluir que precisa dos votos do Chega. Ora, se não aceitarem então as condições do Chega, permitirão ao PS a sua perpetuação no poder – diz.

Serão apresentadas “mais de 70 moções” ao Congresso no horizonte das próximas eleições autárquicas, as primeiras que o partido disputará. Com mais de 100 candidaturas apresentadas, o líder reconhece que o partido está “muito aquém do que já deveria ter feito”. E, como não irá concorrer aos 308 municípios, mas quer “aproximar-se das três centenas”, terá de “acelerar o processo”, já que pretende tornar-se “a terceira força a nível na­cional” (superar o BE e o PCP).

Preveem-se mudanças na cúpula do Chega. Embora não tenha revelado quem sai e quem entra, o líder disse gostar que o Congresso valorize o trabalho dos que vão sair e projete os que vão entrar e apelou a “uma transição pacífica”.

O Congresso ocorre poucos dias depois de um estudo de opinião ter indicado que metade dos portugueses estão dispostos a aceitar um líder autoritário. Porém, Ventura disse não se ver como um líder autoritário, mas como um líder capaz de tomar medidas difíceis. E, inferindo que estão fartos os portugueses deste “modo de fazer política”, atirou:

Estou disponível para ser esse líder por entender que chegou o momento de dar um murro na mesa. Se isso é ser um líder autoritário, então eu sou um líder autoritário.”.

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Face ao que se passou no MEL e o que se antevê no Congresso do Chega, percebe-se que a reeleita coordenadora do BE (Catarina Martins), num misto de receio de ascensão da direita e na reclamação dum lugar na condução da política do país, reitere a insistência na disponibilidade para negociar com o PS, pois não se esgotou a perspetiva de entendimento à esquerda que permita viabilizar o próximo OE e evitar qualquer crise política. Trabalho, saúde e sistema financeiro são as matérias principais do caderno de encargos BE, e a líder até deixa um desafio a António Costa: “Porque não fazer um acordo sobre trabalho?”.

Em entrevista ao Expresso, revela que na vida do BE houve períodos com e sem oposições internas. Regista a unanimidade em torno da solução governativa com o PS, mas também a exigência de mais reflexão face à mudança da vida política e à renitência do PS em ir adiante.

Reconhece que em todas as convenções há a crítica da “asfixia democrática”, mas sustenta que “só partidos que permitem a pluralidade de opiniões tornam visíveis as críticas”.

Rejeita a crítica de que o BE ficou pelos “corredores do poder” e deixou de lado a militância e os movimentos sociais, observando que o Bloco “nunca teve tanta interlocução com setores normalmente afastados da decisão política, esquecidos ou distantes da esquerda”, sendo o setor da vigilância um dos exemplos.

Tendo-lhe sido apontado que, no discurso de encerramento da Convenção, fez mira à direita e ao “enamoramento” de Rui Rio pela extrema-direita, retorquiu:

Do ponto de vista da disputa da governação, a direita não conta para nada. Não tem um projeto para o país, nem capacidade eleitoral, mas há um problema: esta direita incapaz decidiu apoiar projetos de política de ódio e dar-lhes visibilidade. E isso é muito grave porque legitima discursos de ódio.”.

Diz que o BE responde à direita do ódio com um projeto consequente que faça diferença na vida das pessoas, pois “o desespero não pode tomar conta da sociedade, nem das pessoas que desesperam por tratamento no SNS ou por resposta da Segurança Social” (ódio cresce do desespero).

Questionada sobre se a esquerda falhou a essas pessoas, reage com a asserção de que o PSnão tem tido um projeto de esquerda forte”, embora tenha dado algum oxigénio de esperança no período pós-troika, mas diz que “é preciso muito mais”.

Acha natural que a direita tenha o Bloco como alvo principal, pois “a extrema-direita vive de atacar direitos as liberdades de parte da população para tirar vantagens económicas”, sendo o BE quem mais defende direitos e liberdades e quem mais denuncia os poderes económicos.

Embora considere que toda a esquerda é alvo da extrema-direita, sustenta que só para o Bloco foram usados termos tão radicais e inaceitáveis como o pedido de extermínio. Mas um tribunal – e não o BE – já condenou o Chega por ultrapassagem dos limites em ataque racista e de ódio.

Admite que, pela grande hipocrisia de tais partidos (com discurso e prática a desdizer os estatutos), são contraproducentes os pedidos de ilegalização, sendo mais úteis os processos judiciais.

Desvaloriza a reunião do MEL, que não constituiu qualquer reagrupamento à direita, apenas fulminando o auditório com discursos inacreditáveis e endeusando Passos Coelho – o que mostra uma direita sem projeto para o país e com as sondagens a vaticinarem que não será Governo, mesmo que toda junta.

Sobre o hipotético deslaçamento do projeto de esquerda, diz: 

O que conta é o que queremos e conseguimos fazer pelo país. Os partidos não têm de pensar todos o mesmo e continuamos a achar que há alguma capacidade de entendimento. O PM considerou um dos maiores erros não ter reforçado os direitos laborais antes da pandemia e reconheceu a precariedade como um dos maiores problemas. Então, porque não fazer um acordo sobre trabalho?”.

Preferiu, na Convenção, a reabertura da porta que o PS fechou, mantendo as mesmas linhas de negociação, por exemplo o reforço dos profissionais do SNS, as formas de reforço da Segurança Social, o combate à precariedade do trabalho, a alteração do sistema financeiro. Mantém, pois, o BE toda a disponibilidade para continuar essas conversas” e acrescentar a da legislação laboral, para a qual “o PS não demonstrou disponibilidade nenhuma”.

Disse que o BE não tem negociado com o PS desde o OE, pois o Governo tem estado muito concentrado na presidência europeia, havendo que voltar à terra, mas tem-se encontrado com o PM, nomeadamente sobre as questões da pandemia, sobre as quais tem havido diálogo.

O Bloco está disposto a facilitar um novo entendimento à esquerda, mas permanecendo fiel ao mandato de discutir o trabalho, a saúde e o sistema financeiro. Entende que um OE (orçamento do Estado), para ser viabilizado à esquerda, “tem de determinar as condições do emprego e defender o SNS”, pois, “é inaceitável o discurso de que cabe à esquerda aprovar o OE do PS”, mesmo que o PS não faça orçamento de esquerda nem o negoceie com a esquerda.

Por fim, descarta qualquer cenário de crise política, pois “uma esquerda firme em matérias como o trabalho, o SNS ou o sistema financeiro pode conseguir orçamentos com contributos importantes para o país”.

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Um regresso de Passos Coelho será possível a médio prazo se Rio se desgastar até ao limite e se Carlos Moedas tiver mau resultado nas autárquicas em Lisboa. Se o resultado de Lisboa for muito bom, o jovem candidatar-se-á com êxito à liderança do PSD e baralhará as contas. Resta saber se os socialdemocratas são de centro e adeptos da socialdemocracia, como preconizava Sá Carneiro, ou se hão de contar-se na direita menos social que a propalada por Marcelo.

Ora, se um partido neoliberal pode fazer tremer o sossego do país, um partido iliberal, embora nascido dum partido dito socialdemocrata, torna-se altamente desestabilizador, quer pelo discurso racista, populista, xenófobo e de ódio que desenvolve, quer pelas pastas que pretende sobraçar (Administração Interna, Defesa, Justiça e Segurança Social), propícias à concretização do seu ideário: ostracização dos bairros degradados e dificuldade em admissão de estrangeiros, punição destemperada dos ilícitos, manipulação das forças armadas, retirada de benefícios sociais.

Deus nos livre de qualquer radicalização que nos torne irrespiráveis com em tempo de troika.

Porém, a esquerda dita moderada, ou oscilante para a direita e para a esquerda, que nos governa construirá uma solução válida e duradoura para o país ou vai mareando à vista, dando a asilo à corrupção e quejandos, ao facilitismo e à mediocridade?

2021.05.28 – Louro de Carvalho

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

 

Pacheco Pereira, na revista “Sábado”, desta semana (dia 27 de maio) fez publicar um texto sob o título “A institucionalização da censura” em que tece críticas pertinentes à “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital” transformada em lei, com os votos a favor do PS, PSD, CDS, BE, PAN e a abstenção dos outros partidos, mas que o ilustre colunista entende que “merece o mais completo repúdio e exige uma resposta alto e bom som”, pois “o perigo destas leis está em que, em vez de adaptarem a lei à nova realidade das redes sociais, retiram do direito e da justiça a justa reposição da legalidade”.

***

Antes de concordar, ou não, com Pacheco Pereira, dei-me ao cuidado de ver o teor do “Projeto de Lei n.º 473/XIV”, do PS, que serviu de base à discussão parlamentar e cuja redação final, secundada por outros contributos, desembocou na Lei n.º 27/2021, de 17 de maio.

Tal projeto de lei estriba-se no facto desde 2018, mais de metade da Humanidade ter acesso à Internet, constituindo-se, por outro lado, os milhões de infoexcluídos em situação de assimetria comprometedora da consecução dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) e da Agenda 2030. A pari, reconhece que o combate à covid-109 pôs a nu os benefícios do uso de ferramentas tecnológicas digitais e as insuficiências no acesso e riscos vários.

Considera a premência de, em linha com as diretrizes da ONU, pôr as tecnologias ao serviço da realização dos Direitos Humanos. Porém, observa que, apesar das diversas iniciativas a nível internacional (Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital; Fórum da Governação da Internet; 14.ª sessão do Fórum 2019, em Berlim, centrada nos temas da inclusão digital, governação de dados, e segurança, estabilidade e resiliência; Carta das Comunicações do Povo, 1999; Carta dos Direitos da Internet, da Associação para a Comunicação Progressista, 2001-2002; e Declarações de Princípios das Cimeiras Mundiais da Sociedade de Informação, 2003/2005/2008) e a nível nacional (plataforma nacional de diálogo sobre a Governação da Internet), ainda não há uma Carta Internacional dos Direitos Humanos na era Digital, devidamente aprovada no âmbito da ONU, dada a oposição de alguns países.

Sublinha que, alinhadas com o Eixo 5 – Investigação do programa português INCoDe.2030, estiveram em apreciação as temáticas: “Governação de Dados”; “Segurança, Estabilidade e Resiliência”; “Para lá dos Conselhos de Ética: Como praticar Governação de Inteligência Artificial”; e “Para uma formação em cibersegurança centrada em Direitos Humanos”.

Os subscritores do projeto de lei recordam que a assembleia Geral da ONU, a 19 de dezembro de 2019, fez o balanço de todas as iniciativas em curso e aprovou uma resolução fundamentada sobre a estratégia digital para o século XXI, e que a Resolução do Conselho de Ministros n.º 30/2020, publicada a 21 de abril, aprovou o Plano de Ação para a Transição Digital, encarado como “um dos instrumentos essenciais da estratégia de desenvolvimento do país, em alinhamento com os objetivos políticos que irão nortear os investimentos da UE no período de programação 2021-2027, de acordo com o novo quadro da Política de Coesão”.

Têm em linha de conta os danos graves, para crise civilizacional, das vagas de xenofobia, do populismo, da intolerância política e religiosa, dos nacionalismos, do racismo, sendo que a utilização que os seus promotores fazem da Internet gera problemas difíceis de resolver pela natureza global que as redes assumem e pela inexistência dum sistema sólido de governance.

É certo que um estudo mapeou 30 iniciativas tendentes a afirmar um “constitucionalismo digital” e apurou que 22 dessas declarações de direitos digitais são de âmbito internacional; duas são de âmbito regional; e seis textos aprovados ou em preparação têm um âmbito nacional (com destaque para lei que aprovou o “Marco Civil da Internet” estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil). E muitas propostas de “Declaração de Direitos humanos na Internet” resultam do trabalho de organizações da sociedade civil, da cooperação entre Estados ou da iniciativa de instituições internacionais.

Por seu turno, o Conselho da Europa tem desenvolvido um trabalho sistemático centrado em questões conexas com o direito à liberdade de expressão, o direito à vida privada, a liberdade de reunião e de associação, a segurança em linha, o direito à instrução, os direitos da criança, a não discriminação e o direito a recurso efetivo face a ilegalidades. Também a União Internacional das Telecomunicações tem desenvolvido trabalho relevante, com realce para a inclusão digital, procurando colmatar o fosso digital e promovendo competências orientadas para o trabalho.

Merece referência a iniciativa Contract for the Web impulsionada por Sir Tim Berners-Lee, pai-fundador da World Wide Web, cujo objetivo é obter a adesão de milhares de pessoas físicas ou coletivas a 9 princípios: acesso à Internet para todos; garantir o acesso a toda a Internet a todo o tempo; respeitar e proteger os direitos fundamentais à privacidade online e os dados pessoais; tornar a Internet um bem acessível a todos; respeitar e proteger a privacidade e os dados pessoais para gerar confiança; desenvolver tecnologias que protejam o que há de melhor na humanidade e vençam o que há de pior; promover a criação e colaboração na Web; criar comunidades fortes que respeitem o trato civilizado e a dignidade humana; e lutar pela Web.

Merece realce a participação de organizações como a Electronic Frontier Foundation (EFF) e a Association for Progressive Communications, bem como a “Declaração Multissetorial da NETMundial” e a aprovada pelo “Fórum de Governance da Internet”, que elaborou em 2014 uma sugestão de “Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet” e os “Princípios de Manila sobre a Responsabilidade dos Intermediários”.

Proliferaram já os instrumentos jurídicos vinculativos como os que à escala da UE definiram políticas e direitos, com realce para a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, o Regulamento Geral de Proteção de Dados e o Regulamento (UE) 2015/2120, de 25 de novembro de 2015, que acolheu o princípio da neutralidade da Net e estabeleceu medidas respeitantes ao acesso à Internet aberta e ao serviço universal, bem como aos direitos dos utilizadores em matéria de redes e serviços de comunicações eletrónicas.

Aguarda-se a transposição a DIRETIVA (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018 que aprovou o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas, com medidas que visam promover o investimento nas redes de banda larga de elevado débito, adotar uma abordagem mais coerente à escala do mercado interno no respeitante à política e à gestão do espectro de radiofrequências e garantir uma defesa dos consumidores eficaz – condições de concorrência equitativas para todos os intervenientes no mercado e a aplicação coerente das regras – além de estabelecer um quadro regulamentar institucional mais eficaz. Todavia, ficaram por enquadrar e resolver problemas suscitados pelas grandes plataformas digitais como as regras de moderação de conteúdos gerados por utilizadores e o regime de tributação, cujos termos estão a ser ponderados no âmbito da OCDE e da UE.

No ano de 2020 foram redefinidos os objetivos a prosseguir no quadro da Estratégia Digital Europeia. Segundo a Comissão Europeia, “as tecnologias digitais, se forem bem utilizadas, beneficiarão os cidadãos e as empresas. Assim, nos próximos 5 anos, a Comissão centrar-se-á em 3 objetivos fundamentais no domínio digital (considerado essencial para a luta contra as alterações climáticas e a realização da transição ecológica): uma tecnologia ao serviço das pessoas; uma economia justa e competitiva; e uma sociedade aberta, democrática e sustentável”.

A 19 de fevereiro, a Comissão aprovou e publicou o Livro Branco sobre Inteligência Artificial e a Estratégia para os Dados, abrindo uma consulta pública.

E os subscritores do projeto de lei referem que a própria revisão constitucional de 1997 enriqueceu o art.º 35.º da Constituição da República Portuguesa com o aditamento duma norma que garante “a todos” “o livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras”, consagrando o primacial direito de livre acesso a redes digitais e a proibição de isolamento digital de Portugal. As políticas públicas adotadas desde 1996 permitiram mudanças históricas, mas carecem de medidas adicionais como as do Plano de Ação para a Transição Digital e as do Plano de Recuperação 2020-2027.

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Como aponta Pacheco Pereira, que poderia ter elogiado a exposição de motivos, o articulado (23 artigos) começa bem. Desde logo, a enunciação dos direitos em ambiente digital, sua proteção e promoção do seu exercício (artigos 2.º e 3.º), passando pela consagração da liberdade de expressão e criação em ambiente digital (art.º 4.º), à garantia de acesso à Internet e seu uso (art.º 5.º). Porém, o art.º 6.º, ao consagrar “o direito à proteção contra a desinformação”, faz soar o alarme, pois:

“1 – O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de iure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.

“2 – Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.

“3 – Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

“4 – Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.

“5 – Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo, sendo aplicáveis os meios de ação referidos no artigo 21.º e o disposto na Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, relativamente aos procedimentos de queixa e deliberação e ao regime sancionatório.

“6 – O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.”.

Obviamente, a responsabilidade do teor, que “é portuguesa e europeia”, como diz o colunista, “mostra a deterioração do pensamento sobre a liberdade na Europa, já que em Portugal nunca foi muito pujante”. Com efeito, radica no “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, que define a “desinformação” como vem plasmado no n.º 2 deste art.º 6.º. Com tal definição pode proibir-se uma parte relevante do discurso público, mesmo o dos governos, e atingir toda a propaganda e a publicidade, institucional, comercial e política. E o n.º 3 especifica como “falsa ou enganadora” a utilização de textos ou de vídeos manipulados ou fabricados, as práticas que inundam as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.

À semelhança do colunista, pergunto-me se é falsa a utilização dos livros de Sócrates escritos por outrem, se é falso o seu teor ou apenas a autoria. Pergunto-me se é falsa a utilização de narrativas mirabolantes como a Peregrinação de Fernão Mentes Pinto, como os romances, novelas, contos, poemas ou a expressão de opiniões ou mesmo um vídeo que tem uma costa escarpada com uma cabrinha ali especada a olhar para o mar e a legenda “Costa segura cabrita”? Afinal, este pode por configurar sátira ou paródia! E os vídeos daquelas inaugurações de obras por acabar ou de aviões a descolar e aterrar (virtualmente) em locar sem aeroporto ou aeródromo?

Não há narrativa falsa no quadro das literaturas, mas há, na comunicação social, ou veiculadas por esta, e no discurso político e económico, falsas notícias de factos e narrativas de factos distorcidos com intenção económica ou política para travar uma luta pela competitividade económica ou pela ocupação de lugar político ou de cargo público, ultrapassando os outros e prejudicando o público. Nunca será demasiado reler “O Crepúsculo da Democracia”, de Anne Applebaum a ver como “os novos adeptos do iliberalismo se organizam e mobilizam” e como “as teorias da conspiração, a polarização da opinião pública, as redes sociais e a nostalgia por um passado idealizado são usadas como armas para transformar as sociedades em que vivem”.

Por outro lado, diga-se que não incumbe nem à lei nem ao poder político e administrativo definir aquilo que e falso (compete-lhes, sim, prevenir e inquirir). Tal noção de falsidade resulta na prática como todas as outras que são objeto de acusação, julgamento e eventual condenação em tribunal, bem como de censura por parte da sociedade, a não ser que esteja anestesiada.

Por isso, é descabido confiar o veredicto de “desinformação”, mediante queixas de cidadãos, empresas, partidos, à ERC e “estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados”. Com efeito, a primeira entidade resulta de nomeação política, o que não lhe dá indubitavelmente independência; as outras dependem da orientação dos órgãos de comunicação, que tentarão fazer valer a sua postura. Ou seja, uma e outras são guiadas para o que escolhem verificar e para o modo como o hão de fazer.

Por tudo isto, é preciso dar asas ao livre debate público dos temas que são pertinentes aqui e agora ou impulsionadores e condicionadores do futuro próximo ou remoto. Os casos de fraude, falsidade e enganosidade, sobretudo se forem dolosos, devem ser julgados nos tribunais. O contrário é instituir novas formas de censura ou recuperar as velhas formas pela recauchutagem.   

As redes sociais precisam de lei e de regulação, mas não de açaime nem de ambiente de medo político ou económico.

Por fim, cumpre à família, à escola e aos agentes culturais e sociais fazer a pedagogia do que é verdadeiro e do que é falso, do que é facto e do que é opinião, do que é realidade e do que é ficção, do que é prosaico e do que é poético, do que é essencial e do que é acessório.

Do art.º 6.º em diante, por mais bondoso e atraente que seja o articulado da lei, já vai inquinado pelo teor acima transcrito e a chave da sua leitura será necessariamente distorcida. E é pena.

Duma composição parlamentar tão plural esperava-se melhor, pela nobreza do ato de legislar e pela premência de resposta às necessidades levantadas no e pelo mundo digital.

2021.05.27 – Louro de Carvalho