O
Governo, as entidades que o pressionam e as que têm o dever cívico e institucional
de com ele cooperarem erraram na gestão do evento da final da Champions League no Porto. Com efeito, se não
pôde e não pode haver público nos estádios, como não o houve nas disputas do
Campeonato Nacional e na final da Taça de Portugal, é legítimo perguntar como
foi possível admiti-lo agora no Dragão para ingleses e advertir que ainda não
se vislumbra o tempo em que o público preencherá o espaço dos estádios para ver
e apoiar as partidas de futebol.
Se temos de aprender com aquilo que corre mal, há
mesmo que aprender e não remeter essa aprendizagem para ulteriores ocasiões, em
que a pressão pode não a permitir, ou chutá-la para as calendas gregas.
O ano passado, com a região de Lisboa e Vale do Tejo
em situação técnica de calamidade por via da covi-19, realizou-se também, mas
em Lisboa, a final da
Champions League, previamente anunciada com
pompa e circunstância pelo supremo garante da independência nacional, da unidade
do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, a partir da
sua residência oficial – ele que agora fustigou o Governo pela deficiente
gestão do evento, alegando que, tendo sido prometido que os adeptos ingleses viriam
em bolha, tal não aconteceu, porque ou se vem em bolha ou não se vem em bolha.
Na verdade, a Ministra da Presidência garantira que os
adeptos ingleses viriam em bolha, ou seja, viriam somente para assistir ao
espetáculo e iriam embora de imediato, sem terem contacto com o resto da população
(esqueceu-se de que não renunciariam ao contacto com a
cerveja, quando os portugueses não podem consumir álcool na via pública…), o que não
sucedeu, já que, ao invés, se dentro do estádio não terá havido problemas, o
mesmo não aconteceu nas imediações, até porque a especulação encareceu
excessivamente muitos dos bilhetes pela venda subterrânea dos mesmos, e muitas ruas
da baixa portuense, desprovidas temporariamente de residentes, se polvilharam
de estrangeiros. Se tinham vindo para o Algarve e demais sítios…
Quer dizer, isto é défice de comunicação, mas não só. Há,
desde logo, incoerência e duplicidade de atuação face aos critérios que pautam
a manutenção das normas de restrição que o Governo mantém, para já, no
seguimento do aconselhamento dos especialistas, que entendem que os critérios
precisam de ser revistos mais tarde, por exemplo introduzindo o fator de
gravidade tendo até aconselhado mais etapas do desconfinamento, o que o Governo
prometeu seguir. Depois, não se percebe como, se no interior do estádio não
houve problemas, como é que as forças de segurança não conseguiram travar as
aglomerações de pessoas nas imediações e nas ruas. Foi a direção nacional da
PSP que o proibiu, o comando metropolitano que esteve menos atento ou, mais uma
vez, foi obra da suposta fragilidade de Cabrita, apontado como responsável por tudo
quanto corre mal no país, talvez com a exceção dos fogos florestais de 2017,
porque não era ainda o responsável pela tutela da Proteção Civil?
O Presidente da Câmara do Porto e o Presidente do FCP,
que dantes ficaram orgulhosos porque, o ano passado, o clube portuense do Dragão
não se espalhou nas ruas da covid-19 como desta vez o SCP, assestaram as baterias
contra o Governo e a DGS pela permissividade para uns e o rigor para outros. E Pinto
da Costa quer a demissão da responsável pela DGS, de governantes e o próprio
Primeiro-Ministro (caso este não
seja capaz de provocar as demissões). Obviamente, além da incoerência, há aqui insciência ou
défice de comunicação: a Ministra da Presidência ou não sabia o que era vir e
ir em bolha ou não o explicou como não o acautelou; e, até agora, todos os putativos
responsáveis – políticos (governantes: Primeiro-Ministro,
MAI, Ministra da Saúde, Secretário de Estado do Desporto) ou técnicos (PSP, SEF, FPF) – têm fugido a dar atempadamente respostas. Veremos se
as respostas que estão a ser vertidas perante o Parlamento serão satisfatórias
ou se apenas denotam o conveniente oportunismo face à força do desporto internacional
e ao advento de turistas provenientes do Reino Unido, quiçá no quadro da velha aliança,
em vez da firmeza na manutenção das condições de promoção da saúde pública em
tempo de pandemia que ainda não abandonou o país, sendo que os dados mais
recentes apontam para algum recrudescimento.
E, se é compreensível o oportunismo dos residentes no
Porto em deixarem a cidade no passado fim de semana, já não o será o daqueles
que exigem a abertura imediata dos estádios aos espectadores desportivos, o dos
pregoeiros do deslaçamento das medidas de contenção no acesso às praias e
permanência nas mesmas ou o dos preconizadores dos festejos dos Santos
Populares (o Porto já está a começar com
a disseminação dos odores joaninos) tudo ao molho e fé em Deus, pois se continuam a ser
vedados os casamentos, batizados e comunhões com mais de 50% dos participantes,
os grandes ajuntamentos peregrinacionais e processionais, que são muito menos
infetocontagiosos que os ajuntamentos em regime anárquico…
Esta gritaria do Chefe de Estado sobre a pretensa revisão
dos critérios da matriz da contenção da pandemia versus desconfinamento (porfiando respeitar os especialistas, mas lançando dúvidas porque o não
seguiram), os remoques ao Governo pela bolha / não bolha do Dragão ou bolha que
rebentou (aliás, toda a sua loquaz intervenção sobre tudo e
mais alguma coisa, a tempo e fora de tempo), as acusações personalizantes
das oposições políticas aos gestores técnicos da coisa pública (que devia ser mais direcionada aos decisores
políticos) e a reivindicação intempestiva da volta imediata ao antigo normal nas ruas
e estádios e da “democratização” das praias, tudo poderão ser indicadores duma
certa heterofagia social que dê azo a um aproveitamento indevido e oportunista de
forças políticas marcadas exteriormente por um populismo-nacionalismo desviante
e interiormente prisioneiras duma nostalgia restauradora de passados indesejáveis
para o comum dos cidadãos. A presença de Matteo Salvini em Portugal a mostrar a
intenção de confederar a direita e os conservadores na Europa é de duvidoso augúrio
como o é o facto de um determinado partido português reivindicar num futuro governo
de coligação as pastas da Administração Interna, da Defesa, da Justiça e a da
Segurança Social. Esta reivindicação, a ser concretizada no futuro, é um figo
para quem pretende a exclusão de imigrantes e o banimento de determinadas
etnias, a manutenção da paz e da segurança a qualquer preço, a multiplicação da
tipificação de delitos, a criação de novas molduras penais e o agravamento de
outras, o atropelamento do direito processual, os benefícios sociais
alegadamente mal atribuídos e a subversão das normas constitucionais.
Passo ao lado a suposta discrepância comunicacional
entre o Secretário de Estado da Saúde, que falava da aceleração da vacinação na
região de Lisboa e Vale do Tejo, alegadamente por via do agravamento da situação
pandémica, e o Primeiro-Ministro, que, em concordante resposta a Rui Moreira,
do Porto, disse que a vacinação é feita equitativamente em todo o país. Como é
sabido, a isto, o coordenador da ‘Task Force’, esclarecendo que a vacinação era
equitativa para todas as regiões, explanando que a coordenação monitoriza o
avanço da vacinação em cada região segundo os dados percentuais e que vai acelerando
conforme verifica o atraso, aceleração que já tinha acontecido no Algarve
segundo o critério percentual, o que acontecerá sempre de acordo com os
parâmetros etários. Porém, no dia 28, no Infarmed, o Vice-Almirante Gouveia e
Melo precisou que era necessário cuidar das pessoas idosas ainda não vacinadas –
que vivem sós, acamadas ou em sítios inóspitos. São poucas, mas são pessoas e
não podem ficar para trás.
Ora o episódio da suposta divergência não é injustiça,
nem incoerência, nem mesmo défice de comunicação. É antes a ânsia do protagonismo
da palavra. Efetivamente, se o renomado Vice-Almirante está a conduzir com proficiência
o trabalho que lhe foi confiado, o que é verdade, embora com as pequenas exceções
nas grandes tarefas, porque vêm as demais entidades bedelhar numa tarefa cujas competências
delegaram? Se dúvidas tiverem, que lhas exponham no local próprio para tal
debate, pois não se podem esquecer de que em tempo de pré-campanha eleitoral autárquica
(mais que em outras) a tentação é de valer tudo ou
quase tudo.
E as oposições, que têm tantas matérias em que podem e
devem criticar o Governo, perdem-se em minudências… E o Governo agradece em
silêncio. É pena se não têm projetos alternativos para o país, que parece estar
a marcar passo na economia, na educação e na saúde, apesar de haver alguns indicadores
de melhoria, sendo que não se passa do poucochinho que o Primeiro-Ministro
criticava ao seu predecessor na liderança do partido.
É de esperar que a verborreia emergente do cansaço da
crise sanitária e da crise económica e social não gere autofagia dentro de cada
instituição, nos partidos e no todo nacional. Facilmente a heterofagia por via
da exaustão gera autofagia disruptiva.
Enfim, quem não tem telhados de vidro!
2021,05.31 – Louro
de Carvalho