Depois de alguns jornais e revistas terem dado voz a várias
figuras públicas femininas que dizem ter sido assediadas e indicaram o modo
como conseguiram reagir, Bernardo Mendonça e Cátia Mateus deram corpo a uma
peça de reportagem ilustrada por Alex Gozblau sob o título “O
insustentável poder do assédio”, em que se aborda, com o contributo de
várias personalidades, o tema que, nunca tendo deixado de estar na ordem do
dia, reganhou atualidade num contexto de cada vez maior degradação da cultura
mental e social e do crescendo galopante do trabalho precário e sem direitos. E
a grande dificuldade parece residir na tenuidade da fronteira entre os fenómenos
de assédio sexual e de sedução, persistindo a ideia difusa sobre estas
duas realidades, o que se repercute na dificuldade
em definir as fronteiras entre os dois tipos de factos e, sobretudo, em
comprovar os casos de verdadeiro assédio.
A este respeito, Júlio Machado Vaz médico psiquiatra e
sexólogo, sustenta que a fronteira poderá definir-se pelo ‘não’, recusa ou
manifestação de desinteresse, nem verbal. Já se torna ambíguo um silêncio face
a “um avanço ou um convite”. Porém, considera inaceitável o caso de alguém,
sobretudo se for superior hierárquico, insistir apesar de ter recebido um ‘não’
ou de não ter retorno encorajador ou positivo da outra parte. Segundo o
psiquiatra evidencia-se aqui o machismo e outros estereótipos culturais. E
explicita:
“Ainda há aquela ideia de que quando as
mulheres dizem ‘sim’ é sim, mas, quando dizem ‘não’, há uma parte delas que
quer que nós [homens] insistamos. É um machismo que se tem vindo a diluir, mas [que]
não morreu.”.
Do lado da justiça e da lei, o advogado António Garcia
Pereira observa:
“A banalização do assédio e a falta de
consciência de que a pressão constante sob a forma de elogio ou tentativa de
sedução é crime faz com que muitas vítimas não consigam identificar que o que
estão a viver é assédio”.
O mencionado psiquiatra entende que “as pessoas são livres de
se envolverem em contexto laboral e que são muitas as relações e casamentos que
nasceram no trabalho”, mas aponta que, havendo uma assimetria hierárquica de
cargos entre as pessoas, a sedução da parte de quem tem mais poder induzirá
mais responsabilidade e implicações. Por isso, um superior hierárquico tem de
colocar a hipótese de outra pessoa se sentir coartada ou influenciada por ele. É
um terreno pantanoso, que pode influenciar no comportamento das pessoas. Assim,
quem lê o silêncio como ‘sim’, na linha do ‘quem cala consente’, tem de
refletir se ela ou ele não rejeitou por medo de despedimento ou de outras
represálias, pelo que não é legítimo assumir como aceitação tácita a não
expressão duma negativa inequívoca.
Revela o sexólogo que a maioria dos/as assediados/as confessa
que se fizeram desentendidos/as e que não era nada com eles/as por
“sobrevivência”. Porém, grande parte acabou por abandonar o local de trabalho,
pois ficaram com menos poder e na situação de se queixarem “ao poder sobre... o
poder”. Ademais, uma questão de assédio sexual converte-se frequentemente em
assédio moral e/ou laboral: pessoas que não cedem aos avanços do superior
hierárquico pagam o preço na ótica dum ajuste de contas nas relações assimétricas
em termos de poder.
Anália Torres, fundadora e coordenadora do CIEG (Centro Interdisciplinar de Estudos de
Género) do ISCSP (Instituto Superior de Ciências
Sociais e Políticas),
que, em 2015, coordenou o estudo “Assédio
Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal”, publicado em 2016, observou:
“Quando um colega ou chefe faz um avanço
para alguém com quem trabalha – e até pode ter boas intenções e querer encetar
uma relação romântica –, se essa outra pessoa mostrar que não quer ou não se
revelar interessada, começa logo o assédio quando após a rejeição se insiste em
perseguir, mandar mensagens e incomodar. E também, no caso de ser um chefe,
fazendo uso do poder para que a outra pessoa vergue porque sabe que depende
hierarquicamente de si.”.
Também Rosa Monteiro, Secretária de Estado para a Cidadania e
Igualdade, evocando a assimetria de poder, reconhece que “o assédio sexual tem
sido muito desconsiderado ao longo dos anos” e precisa que as situações mais
reportadas são de mulheres e vêm habitualmente relacionadas com aproximação
física, contacto não desejado, piada ou comentário ofensivo, regra geral da
parte de “superior hierárquico ou chefe direto”. E, realçando que o fenómeno “é
lesivo da igualdade e tem impactos muito negativos no campo laboral e também
psicológico”, considera que se impõe a instituição duma cultura de intolerância
total em relação a todo o tipo de assédio para que “nenhuma vítima seja
descredibilizada e perca a coragem para denunciar”.
O estudo coordenado por Anália Torres permanece atual. E a
socióloga destacava que 14,4% das mulheres assumiram terem sofrido assédio
sexual no trabalho, enquanto 8,6% dos homens passaram pela experiência. E 16,7%
das mulheres experimentaram situações de assédio moral, contra 15,9% de homens.
Mais se verificou ter a larga maioria destes incidentes de assédio sexual sido
causada por superiores hierárquicos ou chefias diretas, tendo as mulheres
revelado, acima de tudo, “medo de consequências profissionais negativas”. Na
verdade, é preciso ter em conta a “relação de género” nesta equação de forças,
pois as mulheres estão em menos situações de poder no mercado laboral, sendo a
probabilidade de assédio maior em situações em que os homens estão nas chefias.
A reputada socióloga assinala que o assédio existe desde que
há mulheres no mercado de trabalho, mas só nos anos 70 do século XX passou a
ter nome e a ser condenado. Com efeito, a prática de assédio está, há muito,
inscrita no Código do Trabalho. Mas só em 2017, com a atualização da lei,
passou a ser proibida e considerada uma contraordenação muito grave, com coimas
que podem chegar aos €61.200. Desde então, estão obrigadas as empresas com mais
de 7 trabalhadores a adotar códigos de conduta antiassédio, a abrir processos
disciplinares sempre que há denúncias e a proteger as vítimas e as suas
testemunhas do despedimento.
A este respeito, o art.º 29.º do Código do Trabalho, aprovado
pela Lei n.º 7/2009,
de 12 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 73/2017, de 16 de
agosto, estabelece:
“1 - É proibida a
prática de assédio.
“2 - Entende-se por
assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de
discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego,
trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou
constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente
intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
“3 - Constitui
assédio sexual o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal,
não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito referido no número anterior.
“4 - A prática de
assédio confere à vítima o direito de indemnização, aplicando-se o disposto no
artigo anterior.
“5 - A prática de
assédio constitui contraordenação muito grave, sem prejuízo da eventual
responsabilidade penal prevista nos termos da lei.
“6 - O denunciante e
as testemunhas por si indicadas não podem ser sancionados disciplinarmente, a
menos que atuem com dolo, com base em declarações ou factos constantes dos
autos de processo, judicial ou contraordenacional, desencadeado por assédio até
decisão final, transitada em julgado, sem prejuízo do exercício do direito ao
contraditório.
O art.º 28.º, para o qual remete o n.º 4 do art.º 29.º,
estabelece:
“A prática de ato
discriminatório lesivo de trabalhador ou candidato a emprego confere-lhe o
direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos
gerais de direito”.
Um acórdão
do STJ (Supremo
Tribunal de Justiça), de 1 de
março de 2018, sobre o conceito de assédio, considera:
“Não é toda e qualquer violação dos
deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser
considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objetivo final
ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por
verificado”.
E um acórdão
do STJ, de 9 de maio de 2018, sobre o conceito de assédio moral, sustenta:
“Não é toda e qualquer violação dos
deveres da entidade empregadora em relação ao trabalhador que pode ser
considerada assédio moral, exigindo-se que se verifique um objetivo final
ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável, para que se tenha o mesmo por
verificado. Mesmo que se possa retirar do artigo 29.º do Código do Trabalho que
o legislador parece prescindir do elemento intencional para a existência de
assédio moral, exige-se que ocorram comportamentos da empresa que, intensa e
inequivocamente, infrinjam os valores protegidos pela norma, o respeito pela
integridade psíquica e moral do trabalhador.”.
O n.º 3 do art.º 29.º, para definir assédio sexual, remete
para o n.º 2 os aspetos comuns ao assédio em termos gerais. Assim, define-se como
assédio sexual o comportamento indesejado, percecionado como abusivo, de
natureza física, verbal ou não verbal, podendo incluir tentativas de contacto
físico perturbador, pedidos de favores sexuais com o objetivo ou o efeito de obter
vantagens, chantagem e até uso de força, de poder ou de estratégias de coação
da vontade da outra pessoa – diferente da sedução, concretizável na apresentação
pessoal apelante.
O assédio sexual pode ser caraterizado em 4 dimensões: insinuações
sexuais, através de piadas
ou comentários sobre o seu aspeto que o/a tenham ofendido, piadas ou comentários
ofensivos sobre o seu corpo e piadas ou comentários ofensivos de caráter sexual;
atenção
sexual não desejada,
manifestada em convites para encontro indesejado, propostas explícitas e
indesejadas de natureza sexual, propostas indesejadas de caráter sexual através
de e-mail, SMS ou sites e redes sociais; telefonemas, cartas, SMS, e-mails ou
imagens de caráter sexual ofensivos; olhares insinuantes não desejados e não
correspondidos; e perguntas intrusivas e ofensivas acerca da vida privada; contacto
físico e agressão sexual,
através de contactos físicos não desejados (tocar, mexer, agarrar, apalpar,
beijar ou tentar beijar)
e agressão ou tentativa de agressão sexual; e aliciamento, com pedidos de favores sexuais
associados a promessas de obtenção de emprego ou melhoria das condições de
trabalho.
***
Todavia, como afirma a advogada Carmo Sousa Machado, sócia da
Abreu Advogados, apesar de a alteração legislativa ser um passo importante,
“falta coragem às vítimas para denunciar”, bem como “alguma simplificação destes
processos nos tribunais”. E Garcia Pereira reforça:
“Fazer prova de casos de assédio continua a
ser complexo, com os tribunais a desvalorizarem a declaração das vítimas em
casos em que os agressores não o fazem às claras e com testemunhas”.
Também por isso as denúncias são tão poucas.
Há, em Portugal, três entidades com poder inspetivo nesta
matéria: CITE (Comissão
para a Igualdade no Trabalho e no Emprego), ACT (Autoridade
para as Condições de Trabalho) e, para o setor público, IGF (Inspeção-Geral de Finanças). Entre 2016 e 2021, a CITE recebeu 23 queixas, todas
por assédio moral, segundo dados do MTSSS (Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança
Social). Desde 2019, a
ACT levantou 5 autos de contraordenação a entidades empregadoras por assédio.
Para o MTSSS o reduzido número de denúncias é explicado pelo
medo da maioria das vítimas em denunciar estas situações ou pelo receio de
perder o emprego ou por vergonha e até pelo temor de que ninguém acredite.
Assim, se explicará a maior incidência de queixas reportadas à IGF por
trabalhadores da administração pública, onde a possibilidade de perda de
emprego é residual. Na verdade, a IGF contabilizou desde outubro de 2017,
altura em que a lei n.º 73/2017 entrou em vigor, e até meados de abril do
corrente ano, “203 participações por assédio laboral no setor público, das
quais 189 foram por assédio moral e duas por assédio sexual e moral, sendo que
nas 12 restantes não foi declarado o tipo de assédio”. Já este ano e até abril,
a IGF recebeu 28 participações por assédio – universo que os advogados admitem
não espelhar a realidade das empresas, pois, como refere Carmo Sousa Machado, “há
medo de represálias e desconhecimento em relação aos processos de denúncia”. Com
efeito, penso eu, embora o despedimento qua
tali na administração pública seja residual, o que já não é verdade nas
empresas públicas, os chefes podem ter o caprichoso condão de fazer a vida
negra aos/às subordinados/as, sobretudo se não têm abrigo sindical. Há tantos
funcionários públicos, incluindo professores, que têm medo de se manifestarem e
reivindicarem o que quer que seja.
Para Anália Torres acrescem as questões culturais que
favorecem o assédio no trabalho já que “as mulheres são ensinadas a ceder”, na
esteira da imagem tradicional da mulher de “ser suave” e não assertiva, tendo
de, para ser profissionalmente bem-sucedida, “estar sempre com um sorriso suave
para a chefia, para que não seja vista como conflituosa e desagradável”.
Rosa Monteiro pensa que “é preciso investir na formação” e
sensibilizar para estas questões, que “estão também na base do problema”. E
revela que “a CITE formou no ano passado mais de 1700 pessoas em matérias
relacionadas com a igualdade, entre elas, o assédio”. E avisa que “é preciso
estabelecer uma linha vermelha em matéria de assédio”, visto que “punir e travar o assédio não passa apenas pela lei, mas é preciso dar um
passo atrás e mudar mentalidades”.
Anália Torres, considerando que o reforço da lei, em 2017,
foi um primeiro passo, diz que há muito caminho a percorrer, podendo melhorar e
aumentar o tempo para a prescrição da denúncia de assédio (atualmente, de 6 meses). E alerta para o facto de haver
ainda “poucas empresas a aplicar essa lei e a cumprir o Código do Trabalho, com
mecanismos sérios e rigorosos para as pessoas fazerem queixa”.
E Garcia Pereira confirma:
“A lei determina a abertura de um processo
disciplinar em caso de denúncia, mas o que muitas vezes acontece é que as
empresas instauram processos de inquérito e, mesmo com indícios consistentes,
não chega a haver processo disciplinar”.
O advogado identifica ainda como entrave “a cultura de
desvalorização dos danos morais na justiça portuguesa” e o facto de as custas
destes processos serem de tal forma elevadas que, muitas vezes, a vítima
arrisca receber uma indemnização que não chega para pagar as custas”. Por isso,
Garcia Pereira considera que é preciso melhorar a lei.
Rosa Monteiro, reconhecendo que “há sempre aspetos que é
possível melhorar na lei”, adverte que “não basta exigir o Direito”, mas que “é
preciso garantir o acesso ao Direito”. Assim, para a Secretária de Estado, é essencial
repensar a questão da “admissão da prova”, “porque muitas vezes estas vítimas
não têm prova convencional”. E, em sentenças recentes, já foram aceites gravações
de telemóvel como prova, o que não deixa de constituir um avanço.
Anália Torres é perentória nos excessos e alarmismos, que
alguns chamam de ‘caça às bruxas’:
“Não se trata disso, e as falsas declarações
são puníveis e marginais. Isto é uma coisa séria. O que não é marginal é a
desacreditação das vítimas. Por isso, as vítimas têm medo de avançar. É preciso
criar um clima favorável para a denúncia destes casos.”.
Diga-se que, embora seja contraordenação muito grave, o
assédio não está tipificado como crime autónomo. O lado penal é dedutível da
prática de crime associado (vg: importunação sexual).
***
Enfim, embora muito já se tenha avançado nesta ordem de
abordagens, muito está ainda por fazer, esperando-se a melhoria da legislação,
a agilidade processual, a dilatação do prazo para a prescrição, o incentivo à
denúncia, o arejamento das relações sociais e de trabalho e, sobretudo, a morigeração
das mentalidades, na linha do total respeito pela pessoa humana na sua
dignidade e na dignificação do trabalho e da relação social.
2021.05.18 – Louro
de Carvalho
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