Foi em 2000, durante uma presidência portuguesa do Conselho da União
Europeia (UE), que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em
Lisboa. No passado dia 8 de maio, no Porto (Palácio
de Cristal), nova edição
reatou as negociações comerciais entre as partes, paralisadas há 8 anos. Para a
UE, o caminho para a Índia significa a busca de alternativa à dependência da
China; e, para Portugal, a continuidade duma relação histórica com mais de 500
anos, podendo o nosso país desempenhar o papel de facilitador especial e fazer
a ponte entre a Índia e a UE.
A Índia é um país tão grande e diversificado. Em
superfície, o seu mapa engole os 16 territórios menores da UE e, em termos
populacionais, estima-se que, dentro de 5 anos, ultrapasse a China e se torne o
país mais populoso do mundo. Por isso, António Costa rotulou, desde a primeira
hora, esta cimeira como a “joia da coroa” da presidência portuguesa do
Conselho da UE, em política externa. E, segundo Constantino Xavier,
investigador no Centro do Progresso Económico e Social de Nova Deli, tanto Portugal
como a UE reconhecem a necessidade
de aprofundar as relações com a Índia para dependerem menos da China, mas,
ao invés desta, “a Índia tem sido um ator económico menos relevante e relutante
em relação à liberalização do comércio e dos investimentos, com negociações que
se arrastam desde 2007 e que foram interrompidas em 2013”. Assim, a cimeira teve que indicar um novo
compromisso político para aprofundar a dimensão económica, reatando
negociações.
A relação entre a UE e a Índia (duas das
maiores economias do mundo) formalizou-se
em 1994, com um Acordo de Cooperação bilateral, mas o objetivo maior dum acordo
de livre comércio nunca se concretizou, por via das divergências, sobretudo nas
tarifas alfandegárias a pagar pela indústria automóvel e na livre circulação de
determinadas categorias profissionais.
A Índia ocupa o 10.º lugar no ranking dos parceiros comerciais da UE e esta ocupa o
2.º lugar na lista de destinos das exportações indianas. E, enquanto
procura recuperar das consequências da
pandemia, a Índia precisa de trabalhar mais com a UE na questão da
distribuição equitativa de vacinas. A indiana Garima Mohan, investigadora no
German Marshall Fund, diz:
“A Índia tem
procurado aprofundar o seu relacionamento com a Europa desde meados dos anos
2000, como parte de um impulso geral na política externa indiana para
diversificar as suas parcerias em todo o mundo. A novidade é que a Índia começou a envolver-se, além de Berlim, Paris e
Bruxelas, com outros estados europeus, incluindo Portugal, Espanha, países
nórdicos, da Europa Central e Oriental também.”.
Tanto para Bruxelas como para Nova Deli, a cimeira serviu
para tomada do pulso uma à outra. A Europa quer aferir a tangibilidade do
interesse da Índia em cooperar mais com a UE e os setores em que a cooperação
pode acelerar; a Índia quer aferir as intenções da UE no atinente a objetivos
geopolíticos e geoeconómicos. Tinha, pois, Nova Deli a grande expectativa de a
cimeira resultar no empurrão ao Acordo de Cooperação de 1994 e na alavancagem da iniciativa ‘Make In India’ (com o mote ‘Zero Defeitos e Zero Efeitos’), com a qual se posiciona
como alternativa viável à ideia da China como fábrica do mundo. Por isso, a Índia procura parceiros que a confirmem
como potência regional emergente, alicerçada na ideia de tailored-by-size
diplomacy (diplomacia à medida).
O relançamento das negociações entre Europa e Índia é
mais um marco na afirmação de
Portugal como ponte entre a Índia e a UE, alicerçada na velha relação
histórica bilateral.
Foi, como se disse, durante a presidência portuguesa
do Conselho da UE, a 28 de junho de 2000, que se realizou a primeira cimeira
UE-Índia, em Lisboa. E foi na presidência portuguesa do 2.º semestre de 2007
que se lançaram as negociações com para um acordo de comércio livre, que agora
se retoma. A este respeito, o Primeiro-Ministro português referiu.
“A
Índia é a maior democracia à escala global e nós temos de valorizar, tendo um
relacionamento cada vez mais estreito, designadamente pelo contributo que
poderemos dar em conjunto para componentes fundamentais dos processos de
transição climática e digital. Falo do desenvolvimento da inteligência
artificial ou da ciência de dados. Europa e Índia podem desenvolver uma aliança
estreita para o futuro.”
O facto de ter sido, uma vez mais, em Portugal que se
discutem as relações entre as duas partes permite-nos gozar dum canal de influência
na moderação do debate e como parte ativa na fixação da agenda. E o sucesso da cimeira firma o crédito de
Portugal no seio da UE como ponte e porta-voz dos 27 na relação com a Ásia e África.
Por isso, a cimeira enquadra-se na Nova Estratégia de Cooperação no
Indo-Pacífico, que a UE lançou a 19 de abril e que tentará injetar
estabilidade, segurança, prosperidade e desenvolvimento sustentável numa região
que é palco de grande concorrência geopolítica e revela muitas tensões. E Constantino
Xavier disse:
“Durante a sua presidência, Portugal tem tido um papel
pioneiro na revisão da política europeia para a Ásia, que nos últimos anos tem
pendido para a China, culminando no
polémico acordo de investimentos de 2020”.
Portugal cedo reconheceu a necessidade duma política
para a Ásia mais equilibrada, com a Índia e com o Japão, e que tal
diversificação contribui para uma Ásia mais multipolar e estável. Nesse
sentido, mais que uma posição mercantilista, a UE está a assumir um perfil mais estratégico na Ásia, focada sobretudo
nos grandes negócios da China. E, na Índia ou no resto da Ásia, tal
papel da UE é recebido de braços abertos, como alternativa para preservar uma
Ásia multipolar, menos exposta ao crescente poderio e centralidade da China.
Entre parêntesis, é de referir que, segundo o INE, 0,2% das nossas exportações, em
2020, tiveram como destino a Índia, sendo esta o 46.º cliente das exportações
portuguesas de bens; 0,9% do total da nossas importações vêm
da Índia, constituindo esta o 15.º mercado onde mais Portugal compra; e, segundo
o “Relatório de Imigração, Fronteiras e
Asilo” do SEF, de2019, vivem em Portugal 17.619 cidadãos de origem indiana, na esmagadora maioria homens (13.235).
Não há, pois, dúvida de que o fator China é propulsor da aproximação UE-Índia e revigorar
a parceria com a Índia é um pilar fundamental da estratégia Indo-Pacífico da
UE. De igual modo, a resposta da Índia ao desafio da China concentra-se no
fortalecimento de parcerias, dissociação económica e diversificação, o que inclui
o fortalecimento dos laços com os parceiros do grupo Quad (Austrália,
Japão e Estados Unidos) e com
o Sueste Asiático, mas também com a Europa. Com efeito, os assuntos da agenda UE-Índia – como a segurança marítima no
Oceano Índico, alternativas à Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), tecnologias emergentes, 5G
e Inteligência Artificial –, têm elementos de competição com a China.
A relação entre europeus e indianos tem potencial para
exercer um impacto geopolítico maior, pelo que UE e Índia procuram liderar esforços para proteger a ordem internacional
da crescente rivalidade sino-americana e coordenam posições comuns (na
luta contra as alterações climáticas, na regulação das novas tecnologias e no
desenvolvimento sustentável) visando
soluções globais, especialmente pela via do multilateralismo. Para dependerem
menos dos EUA ou da China, têm de aprofundar as suas relações e coordenar as políticas
com outras potências e blocos regionais. É este longo caminho que a presidência
portuguesa tem promovido e que a cimeira do Porto ajuda a trilhar.
***
A cimeira UE – Índia foi “um sucesso”,
concluiu o Primeiro-Ministro de Portugal, resumindo a primeira reunião entre os
líderes dos 27 com o chefe de Governo indiano Narendra
Modi, que participou à distância devido ao agravamento da epidemia no
país.
Aliás, o dia
8 foi trágico para a Índia, que ultrapassou, pela primeira vez a fasquia dos 4
mil mortos registados em 24 horas no quadro da covid-19, vindo a ser o segundo
país mais afetado do mundo pela pandemia, somando agora um total de quase 22
milhões de casos (mais 401.078 do que no dia 7), incluindo 238.270 óbitos (mais 4.197). Porém, os números reais da epidemia na Índia podem
ser superiores devido à dificuldade de monitorizar as infeções no país. Só os
EUA (580 mil) e o Brasil (419 mil) sofreram mais fatalidades associadas ao SARS-CoV-2
que a Índia.
A propagação
do SARS-CoV-2 pelo mundo voltou a ser um dos temas fortes debatidos pelos
líderes nas diversas reuniões realizadas no dia 8, no Porto.
O belga
Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, sublinhou que “a União Europeia
se mantém totalmente solidária com a Índia neste momento crítico” e revelou que
“já ativámos o mecanismo de ajuda e estamos prontos a disponibilizar mais apoio”.
Por seu
turno, o Primeiro-Ministro indiano agradeceu aos líderes europeus pelo “continuado
compromisso de reforçar a relação com a Índia” e, em particular, ao “amigo”
António Costa “pela iniciativa e por ter dado grande prioridade à Índia durante
a presidência portuguesa do Conselho da UE”. E declarou:
“A nossa colaboração é
essencial para travar a pandemia de covid-19 e garantir a sustentabilidade e a
recuperação inclusiva num mundo mais digital e verde. A nossa forte parceria é
essencial para alcançar a paz e a prosperidade para os nossos povos. Saudamos a
retoma das negociações para Acordos de Comércio e Investimento, assim como a
nossa nova Parceria de Conectividade.”.
O
Primeiro-Ministro português sublinhou a abertura das portas europeias à Índia e
frisou que “as negociações que estavam congeladas desde 2013 vão ser retomadas”
e que “as portas ficam abertas para acordos com a Índia ao nível comercial e
dos investimentos”.
A Presidente
da Comissão Europeia considerou ter sido “uma cimeira notável, porque se
alargou o alcance da relação” com a Índia de uma forma “excelente, histórica e
impressionante”.
As bases da
negociação futura com a Índia vão desenrolar-se a vários níveis, incluindo, para
lá do comércio, investimento e conectividade, respeito pelos direitos humanos,
multilateralismo, cooperação científica e tecnológica, migração e mobilidade,
reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, abertura do espaço
Indo-Pacífico e combate às alterações climáticas. E Ursula von der Leyen escreveu
nas redes sociais:
“Apesar de ter objetivos ambiciosos na
energia renovável, a Índia também deve comprometer-se a conseguir a
neutralidade climática e eliminar os combustíveis fósseis. O mundo precisa de que
a Índia assuma compromissos ambiciosos antes da COP26.”.
Enfim, segundo a presidente da Comissão, a UE alargou o alcance da
sua relação com a Índia, ao retomar as negociações sobre o acordo de comércio
livre com o país, suspensas desde 2013. UE
e Índia começaram a negociar um acordo de comércio livre em 2007, mas o
processo foi suspenso em 2013. A presidência portuguesa do Conselho da UE, em
curso até 30 de junho, colocou a cimeira UE-Índia nas prioridades.
Von der Leyen
agradeceu a António Costa por ter promovido a reunião com a Índia e, observando
que “ainda é cedo para detalhes”, adiantou que o acordo de comércio livre será “negociado
em paralelo com a proteção do investimento e das indicações geográficas”.
Esta
aproximação à Índia tem gerado críticas por parte de organizações da sociedade
civil, que pretendem que a UE a não abdique da defesa dos direitos humanos nas
negociações comerciais. Porém, Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, sublinhou,
na conferência de imprensa, que Índia e UE estão a “abrir um novo capítulo
importante” nas suas relações e assegurou que “os direitos humanos, a igualdade
de género e a igualdade de oportunidades estão no coração da relação com a
Índia”. Mais tarde, acrescentou outras dimensões da aproximação: segurança,
multilateralismo, cooperação internacional, alterações climáticas…
Sobre este
último ponto, Von der Leyen recordou que a Índia é o “4.º país emissor de gases
de efeitos de estufa”, referindo que as alterações climáticas foram abordadas
na reunião com Modi e vincando a ideia da Índia como “cumpridora dos objetivos”
a que se propõe.
UE e Índia,
que já tinham tentado negociar um acordo comercial, mas as negociações acabaram
por ficar bloqueadas em 2013 devido a desentendimentos entre as partes, estabeleceram
agora uma parceria de conectividade, que até agora só havia com o Japão.
A UE é o
maior parceiro comercial da Índia e o segundo maior destino das exportações
indianas, tendo o comércio entre os dois parceiros aumentado 72% na última
década. Hoje há cerca de 6.000 empresas europeias presentes na Índia,
responsáveis por 1,7 milhões de empregos diretos e 5 milhões indiretos.
A reunião de
líderes UE-Índia enquadra-se numa das prioridades da presidência portuguesa, “que
consiste em reforçar a autonomia estratégica de uma Europa aberta ao mundo”,
neste caso com a região do Indo-Pacífico em foco.
Além de ser
a maior democracia do mundo, a
Índia é uma das economias em crescimento mais rápido a nível global.
Antes da pandemia de covid-19, o PIB indiano aumentava cerca de 6% ao ano.
Agora, mais que nunca, pretende atrair investimento estrangeiro de modo a conseguir
aumentar a sua produção.
Apesar das
constantes negociações e de ter havido um aumento dos negócios entre Bruxelas e
Nova Deli, de 2010 a 2020, a UE não logrou celebrar um acordo livre, um trade agreement com a Índia. Agora, após ter
assinado recentemente acordos deste tipo com o Japão e com o Vietname, intensificou
as conversações com a Índia para a criação de um acordo amplo que proteja os
investimentos das empresas dos Estados-membros na Índia, oferecendo garantias na proteção da
propriedade industrial e intelectual, pois a Índia domina a área das TI (Tecnologias
de Informação) e I&D (Investigação e Desenvolvimento), tendo alcançado vários feitos na área espacial.
A cooperação
UE-Índia pode florir em vários campos. E, na área do ensino, o que está
previsto avançar é um tipo de Erasmus. Estudantes indianos poderão vir para a
Europa estudar noutras universidades, bem como os estudantes europeus poderão ir
à Índia estudar.
Neste
momento, a UE é um dos maiores investidores estrangeiros na Índia: só em 2018 terá ali investido à volta de
68 mil milhões de euros, notando-se aumento exponencial na exportação de
serviços de TI por parte da Índia. Em 2019, as trocas comerciais entre ambas as
partes foram avaliadas em 80
mil milhões de euros, com um excedente de cerca de dois mil milhões de euros a
favor da Índia, de acordo com dados do Parlamento Europeu.
Outro dos
temas discutido na cimeira foi o clima, com as partes a assumirem o compromisso
de se ajudarem a tornar a economia mais ecológica: economia
circular, geração de energia eólica, fotovoltaica, o hidrogénio, tudo esteve em
cima da mesa.
***
Será desta
feita que as relações estratégicas UE – Índia, com todos os seus ingredientes,
irão de vento em popa e os direitos humanos serão promovidos e respeitados naquele
país asiático? Ficar-nos-emos pelas rupias e pelos euros ou mesmo pelos dólares?
2021.05.10 – Louro de Carvalho
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