segunda-feira, 10 de maio de 2021

Da Cimeira Índia-União Europeia no Porto

 

Foi em 2000, durante uma presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE), que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. No passado dia 8 de maio, no Porto (Palácio de Cristal), nova edição reatou as negociações comerciais entre as partes, paralisadas há 8 anos. Para a UE, o caminho para a Índia significa a busca de alternativa à dependência da China; e, para Portugal, a continuidade duma relação histórica com mais de 500 anos, podendo o nosso país desempenhar o papel de facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a UE.

A Índia é um país tão grande e diversificado. Em superfície, o seu mapa engole os 16 territórios menores da UE e, em termos populacionais, estima-se que, dentro de 5 anos, ultrapasse a China e se torne o país mais populoso do mundo. Por isso, António Costa rotulou, desde a primeira hora, esta cimeira como a joia da coroa” da presidência portuguesa do Conselho da UE, em política externa. E, segundo Constantino Xavier, investigador no Centro do Progresso Económico e Social de Nova Deli, tanto Portugal como a UE reconhecem a necessidade de aprofundar as relações com a Índia para dependerem menos da China, mas, ao invés desta, “a Índia tem sido um ator económico menos relevante e relutante em relação à liberalização do comércio e dos investimentos, com negociações que se arrastam desde 2007 e que foram interrompidas em 2013”. Assim, a cimeira teve que indicar um novo compromisso político para aprofundar a dimensão económica, reatando negociações.

A relação entre a UE e a Índia (duas das maiores economias do mundo) formalizou-se em 1994, com um Acordo de Cooperação bilateral, mas o objetivo maior dum acordo de livre comércio nunca se concretizou, por via das divergências, sobretudo nas tarifas alfandegárias a pagar pela indústria automóvel e na livre circulação de determinadas categorias profissionais.

A Índia ocupa o 10.º lugar no ranking dos parceiros comerciais da UE e esta ocupa o 2.º lugar na lista de destinos das exportações indianas. E, enquanto procura recuperar das consequências da pandemia, a Índia precisa de trabalhar mais com a UE na questão da distribuição equitativa de vacinas. A indiana Garima Mohan, investigadora no German Marshall Fund, diz:

A Índia tem procurado aprofundar o seu relacionamento com a Europa desde meados dos anos 2000, como parte de um impulso geral na política externa indiana para diversificar as suas parcerias em todo o mundo. A novidade é que a Índia começou a envolver-se, além de Berlim, Paris e Bruxelas, com outros estados europeus, incluindo Portugal, Espanha, países nórdicos, da Europa Central e Oriental também.”.

Tanto para Bruxelas como para Nova Deli, a cimeira serviu para tomada do pulso uma à outra. A Europa quer aferir a tangibilidade do interesse da Índia em cooperar mais com a UE e os setores em que a cooperação pode acelerar; a Índia quer aferir as intenções da UE no atinente a objetivos geopolíticos e geoeconómicos. Tinha, pois, Nova Deli a grande expectativa de a cimeira resultar no empurrão ao Acordo de Cooperação de 1994 e na alavancagem da iniciativa ‘Make In India(com o mote ‘Zero Defeitos e Zero Efeitos’), com a qual se posiciona como alternativa viável à ideia da China como fábrica do mundo. Por isso, a Índia procura parceiros que a confirmem como potência regional emergente, alicerçada na ideia de tailored-by-size diplomacy (diplomacia à medida).

O relançamento das negociações entre Europa e Índia é mais um marco na afirmação de Portugal como ponte entre a Índia e a UE, alicerçada na velha relação histórica bilateral.

Foi, como se disse, durante a presidência portuguesa do Conselho da UE, a 28 de junho de 2000, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. E foi na presidência portuguesa do 2.º semestre de 2007 que se lançaram as negociações com para um acordo de comércio livre, que agora se retoma. A este respeito, o Primeiro-Ministro português referiu.

A Índia é a maior democracia à escala global e nós temos de valorizar, tendo um relacionamento cada vez mais estreito, designadamente pelo contributo que poderemos dar em conjunto para componentes fundamentais dos processos de transição climática e digital. Falo do desenvolvimento da inteligência artificial ou da ciência de dados. Europa e Índia podem desenvolver uma aliança estreita para o futuro.

O facto de ter sido, uma vez mais, em Portugal que se discutem as relações entre as duas partes permite-nos gozar dum canal de influência na moderação do debate e como parte ativa na fixação da agenda. E o sucesso da cimeira firma o crédito de Portugal no seio da UE como ponte e porta-voz dos 27 na relação com a Ásia e África. Por isso, a cimeira enquadra-se na Nova Estratégia de Cooperação no Indo-Pacífico, que a UE lançou a 19 de abril e que tentará injetar estabilidade, segurança, prosperidade e desenvolvimento sustentável numa região que é palco de grande concorrência geopolítica e revela muitas tensões. E Constantino Xavier disse:

Durante a sua presidência, Portugal tem tido um papel pioneiro na revisão da política europeia para a Ásia, que nos últimos anos tem pendido para a China, culminando no polémico acordo de investimentos de 2020”.

Portugal cedo reconheceu a necessidade duma política para a Ásia mais equilibrada, com a Índia e com o Japão, e que tal diversificação contribui para uma Ásia mais multipolar e estável. Nesse sentido, mais que uma posição mercantilista, a UE está a assumir um perfil mais estratégico na Ásia, focada sobretudo nos grandes negócios da China. E, na Índia ou no resto da Ásia, tal papel da UE é recebido de braços abertos, como alternativa para preservar uma Ásia multipolar, menos exposta ao crescente poderio e centralidade da China.

Entre parêntesis, é de referir que, segundo o INE, 0,2% das nossas exportações, em 2020, tiveram como destino a Índia, sendo esta o 46.º cliente das exportações portuguesas de bens; 0,9% do total da nossas importações vêm da Índia, constituindo esta o 15.º mercado onde mais Portugal compra; e, segundo o “Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo” do SEF, de2019, vivem em Portugal 17.619 cidadãos de origem indiana, na esmagadora maioria homens (13.235).

Não há, pois, dúvida de que o fator China é propulsor da aproximação UE-Índia e revigorar a parceria com a Índia é um pilar fundamental da estratégia Indo-Pacífico da UE. De igual modo, a resposta da Índia ao desafio da China concentra-se no fortalecimento de parcerias, dissociação económica e diversificação, o que inclui o fortalecimento dos laços com os parceiros do grupo Quad (Austrália, Japão e Estados Unidos) e com o Sueste Asiático, mas também com a Europa. Com efeito, os assuntos da agenda UE-Índia – como a segurança marítima no Oceano Índico, alternativas à Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), tecnologias emergentes, 5G e Inteligência Artificial –, têm elementos de competição com a China.

A relação entre europeus e indianos tem potencial para exercer um impacto geopolítico maior, pelo que UE e Índia procuram liderar esforços para proteger a ordem internacional da crescente rivalidade sino-americana e coordenam posições comuns (na luta contra as alterações climáticas, na regulação das novas tecnologias e no desenvolvimento sustentável) visando soluções globais, especialmente pela via do multilateralismo. Para dependerem menos dos EUA ou da China, têm de aprofundar as suas relações e coordenar as políticas com outras potências e blocos regionais. É este longo caminho que a presidência portuguesa tem promovido e que a cimeira do Porto ajuda a trilhar.

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cimeira UE – Índia foi “um sucesso”, concluiu o Primeiro-Ministro de Portugal, resumindo a primeira reunião entre os líderes dos 27 com o chefe de Governo indiano Narendra Modi, que participou à distância devido ao agravamento da epidemia no país.

Aliás, o dia 8 foi trágico para a Índia, que ultrapassou, pela primeira vez a fasquia dos 4 mil mortos registados em 24 horas no quadro da covid-19, vindo a ser o segundo país mais afetado do mundo pela pandemia, somando agora um total de quase 22 milhões de casos (mais 401.078 do que no dia 7), incluindo 238.270 óbitos (mais 4.197). Porém, os números reais da epidemia na Índia podem ser superiores devido à dificuldade de monitorizar as infeções no país. Só os EUA (580 mil) e o Brasil (419 mil) sofreram mais fatalidades associadas ao SARS-CoV-2 que a Índia.

A propagação do SARS-CoV-2 pelo mundo voltou a ser um dos temas fortes debatidos pelos líderes nas diversas reuniões realizadas no dia 8, no Porto.

O belga Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, sublinhou que “a União Europeia se mantém totalmente solidária com a Índia neste momento crítico” e revelou que “já ativámos o mecanismo de ajuda e estamos prontos a disponibilizar mais apoio”.

Por seu turno, o Primeiro-Ministro indiano agradeceu aos líderes europeus pelo “continuado compromisso de reforçar a relação com a Índia” e, em particular, ao “amigo” António Costa “pela iniciativa e por ter dado grande prioridade à Índia durante a presidência portuguesa do Conselho da UE”. E declarou:

A nossa colaboração é essencial para travar a pandemia de covid-19 e garantir a sustentabilidade e a recuperação inclusiva num mundo mais digital e verde. A nossa forte parceria é essencial para alcançar a paz e a prosperidade para os nossos povos. Saudamos a retoma das negociações para Acordos de Comércio e Investimento, assim como a nossa nova Parceria de Conectividade.”.

O Primeiro-Ministro português sublinhou a abertura das portas europeias à Índia e frisou que “as negociações que estavam congeladas desde 2013 vão ser retomadas” e que “as portas ficam abertas para acordos com a Índia ao nível comercial e dos investimentos”.

A Presidente da Comissão Europeia considerou ter sido “uma cimeira notável, porque se alargou o alcance da relação” com a Índia de uma forma “excelente, histórica e impressionante”.

As bases da negociação futura com a Índia vão desenrolar-se a vários níveis, incluindo, para lá do comércio, investimento e conectividade, respeito pelos direitos humanos, multilateralismo, cooperação científica e tecnológica, migração e mobilidade, reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, abertura do espaço Indo-Pacífico e combate às alterações climáticas. E Ursula von der Leyen escreveu nas redes sociais:

Apesar de ter objetivos ambiciosos na energia renovável, a Índia também deve comprometer-se a conseguir a neutralidade climática e eliminar os combustíveis fósseis. O mundo precisa de que a Índia assuma compromissos ambiciosos antes da COP26.”.

Enfim, segundo a presidente da Comissão, a UE alargou o alcance da sua relação com a Índia, ao retomar as negociações sobre o acordo de comércio livre com o país, suspensas desde 2013. UE e Índia começaram a negociar um acordo de comércio livre em 2007, mas o processo foi suspenso em 2013. A presidência portuguesa do Conselho da UE, em curso até 30 de junho, colocou a cimeira UE-Índia nas prioridades.

Von der Leyen agradeceu a António Costa por ter promovido a reunião com a Índia e, observando que “ainda é cedo para detalhes”, adiantou que o acordo de comércio livre será “negociado em paralelo com a proteção do investimento e das indicações geográficas”.

Esta aproximação à Índia tem gerado críticas por parte de organizações da sociedade civil, que pretendem que a UE a não abdique da defesa dos direitos humanos nas negociações comerciais. Porém, Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, sublinhou, na conferência de imprensa, que Índia e UE estão a “abrir um novo capítulo importante” nas suas relações e assegurou que “os direitos humanos, a igualdade de género e a igualdade de oportunidades estão no coração da relação com a Índia”. Mais tarde, acrescentou outras dimensões da aproximação: segurança, multilateralismo, cooperação internacional, alterações climáticas…

Sobre este último ponto, Von der Leyen recordou que a Índia é o “4.º país emissor de gases de efeitos de estufa”, referindo que as alterações climáticas foram abordadas na reunião com Modi e vincando a ideia da Índia como “cumpridora dos objetivos” a que se propõe.

UE e Índia, que já tinham tentado negociar um acordo comercial, mas as negociações acabaram por ficar bloqueadas em 2013 devido a desentendimentos entre as partes, estabeleceram agora uma parceria de conectividade, que até agora só havia com o Japão.

A UE é o maior parceiro comercial da Índia e o segundo maior destino das exportações indianas, tendo o comércio entre os dois parceiros aumentado 72% na última década. Hoje há cerca de 6.000 empresas europeias presentes na Índia, responsáveis por 1,7 milhões de empregos diretos e 5 milhões indiretos.

A reunião de líderes UE-Índia enquadra-se numa das prioridades da presidência portuguesa, “que consiste em reforçar a autonomia estratégica de uma Europa aberta ao mundo”, neste caso com a região do Indo-Pacífico em foco.

Além de ser a maior democracia do mundo, a Índia é uma das economias em crescimento mais rápido a nível global. Antes da pandemia de covid-19, o PIB indiano aumentava cerca de 6% ao ano. Agora, mais que nunca, pretende atrair investimento estrangeiro de modo a conseguir aumentar a sua produção.

Apesar das constantes negociações e de ter havido um aumento dos negócios entre Bruxelas e Nova Deli, de 2010 a 2020, a UE não logrou celebrar um acordo livre, um trade agreement com a Índia. Agora, após ter assinado recentemente acordos deste tipo com o Japão e com o Vietname, intensificou as conversações com a Índia para a criação de um acordo amplo que proteja os investimentos das empresas dos Estados-membros na Índia, oferecendo garantias na proteção da propriedade industrial e intelectual, pois a Índia domina a área das TI (Tecnologias de Informação) e I&D (Investigação e Desenvolvimento), tendo alcançado vários feitos na área espacial.

A cooperação UE-Índia pode florir em vários campos. E, na área do ensino, o que está previsto avançar é um tipo de Erasmus. Estudantes indianos poderão vir para a Europa estudar noutras universidades, bem como os estudantes europeus poderão ir à Índia estudar.

Neste momento, a UE é um dos maiores investidores estrangeiros na Índia: só em 2018 terá ali investido à volta de 68 mil milhões de euros, notando-se aumento exponencial na exportação de serviços de TI por parte da Índia. Em 2019, as trocas comerciais entre ambas as partes foram avaliadas em 80 mil milhões de euros, com um excedente de cerca de dois mil milhões de euros a favor da Índia, de acordo com dados do Parlamento Europeu.

Outro dos temas discutido na cimeira foi o clima, com as partes a assumirem o compromisso de se ajudarem a tornar a economia mais ecológica: economia circular, geração de energia eólica, fotovoltaica, o hidrogénio, tudo esteve em cima da mesa.

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Será desta feita que as relações estratégicas UE – Índia, com todos os seus ingredientes, irão de vento em popa e os direitos humanos serão promovidos e respeitados naquele país asiático? Ficar-nos-emos pelas rupias e pelos euros ou mesmo pelos dólares?

2021.05.10 – Louro de Carvalho

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