segunda-feira, 10 de maio de 2021

A universalidade da salvação e do amor fraterno

 

A cena dos Atos dos Apóstolos que a 1.ª leitura (At 10,25-26.34-35.44-48) da Liturgia da Palavra do 6.º domingo da Páscoa relata integra uma secção (cf 9,32-11,18) cujo protagonista é Pedro e cujo tema central é a chegada do cristianismo aos pagãos. É em Cesareia, cidade da costa palestina onde residia habitualmente o procurador romano da Judeia. No centro está o centurião Cornélio, homem “piedoso e temente a Deus” (eusebês kaì phoboúmenos tòn Theón), que recebe visita de Pedro, o qual lhe anuncia Jesus, do que resulta a conversão de Cornélio e de toda a família.

O facto tem especial relevância no esquema lucano para explicar a expansão da Igreja. Cornélio é o primeiro pagão oficialmente admitido na comunidade. É certo que Filipe batizara um etíope (cf At 8,26-40), mas esse já era prosélito (ou simpatizante do judaísmo), enquanto de Cornélio não há qualquer indicação de simpatia pelo judaísmo. Por isso, esta conversão constitui viragem irreversível na proclamação do Evangelho, que se abre aos pagãos. Com efeito, os primeiros cristãos, oriundos do judaísmo, não tinham a clara noção de que a salvação fosse extensiva aos pagãos e, por conseguinte, que estes pudessem integrar a Igreja, pois o pagão era ser impuro em casa de quem o judeu não entrava para não se contaminar. Ora, Lucas quer que fique bem claro que Deus oferece a salvação a todos, incluindo obviamente os pagãos. Para o vincar, põe Deus a dirigir toda a trama. Assim, Deus pede, numa visão, a Cornélio que mande chamar Pedro (cf At 10,1-8), arrebata Pedro em êxtase e prepara-o para ir ao encontro de Cornélio (cf At 10,9-23). E ficamos a saber que Deus quer que a salvação chegue a todos e todas sem exceção, com uma feição integradora e inclusiva.

Descrita a receção de Pedro em casa de Cornélio, Pedro faz um discurso onde ressoa o kérigma primordial. E Pedro anuncia Jesus (At 10,38a), a sua ação (“andou de lugar em lugar fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele” – At 10,38b), morte (At 10,39b), ressurreição (At 10,40) e dimensão salvífica da sua ação (At 10,43b). É este o anúncio que Jesus confiou aos discípulos para o testemunharem a todo o mundo.

O trecho acentua o facto de a mensagem da salvação se destinar a todas as nações, sem distinção de pessoas, raças ou povos. Logo no início, Pedro reconhece que “Deus não faz aceção de pessoas, mas em qualquer nação, quem O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável” (ouk éstin prosôpolêmptês ho Theós, all’en pantì éthnei ho phoboúmenos autòn kaì ergazómenos dikaisosúnên dektòs autôi estin: At 9,34-35). Deve, pois, o anúncio sobre Jesus chegar a todos os confins da terra.

Após o anúncio que Pedro fez, vem a efusão do dom do Espírito “sobre quantos ouviam a Palavra” (At 10,44), sem distinção de judeus ou pagãos (At 10,45). E o resultado desta efusão tem as caraterísticas do Pentecostes: todos “falando línguas” (laloúntôn glôssais) e “glorificando a Deus” (megalynóntôn tòn Theón) (At 10,46). É a confirmação da universalidade da oferta da salvação. Pedro é o primeiro a tirar as devidas conclusões e batiza Cornélio e toda a família.

Os primeiros cristãos, marcados pela mentalidade judaica, consideravam a salvação como dom de Deus para os judeus, sendo que os pagãos só podiam aceder à salvação se se convertessem ao judaísmo aceitando a Lei de Moisés e a circuncisão. Porém, o Espírito Santo mostrou que a salvação não é monopólio de judeus ou de cristãos oriundos do judaísmo, mas dom e património de todos os homens e mulheres com o coração aberto a Deus.

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A 2.ª leitura (1Jo 4,7-10) tem como substrato a convicção pré-gnóstica de que o essencial da fé residia na vida de comunhão com Deus negligenciando as realidades do mundo, como se se pudesse descobrir “a luz” e estar próximo de Deus odiando o próximo (cf 1Jo 2,9). Ora, a 1.ª Carta de João considera o amor ao próximo como exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele se não se deixou contagiar e empapar pelo amor (disse Dom Rui Valério na festa da Senhora da Saúde em Lisboa).

O texto em referência insere-se na terceira parte da carta (cf 1Jo 4,7-5,12), estabelecendo como critério da vida cristã autêntica a relação entre o amor a Deus e o amor aos irmãos, dupla dimensão que faz a identidade dos cristãos.

Como pano de fundo na reflexão do autor da Carta está a convicção de que “Deus é amor” ((ho Theòs agápê estín: 1Jo 4,8)). Assim, se a caraterística mais marcante do ser de Deus é o amor, a atividade específica de Deus é amar. E a prova inquestionável de que Deus é amor é o envio do seu Filho Unigénito ao encontro dos homens, para os libertar do egoísmo, do sofrimento e da morte (1Jo 4,9). O Filho, cumprindo o plano do Pai, mostrou em gestos concretos, visíveis e palpáveis, o amor de Deus pelos homens, a começar pelos mais pobres, excluídos, descartados, marginalizados. Lutou até à morte para libertar os homens da escravidão; e ofereceu-se (oferta propiciatória – hilasmós) para mostrar que o caminho da vida é o caminho do dom, da entrega a Deus e aos irmãos, do amor que se dá completamente sem guardar nada para si. Mais: o amor, que “vem de Deus” (hê agápê ek toû Theoû:1Jo 4,8) derrama-se sobre o homem, mesmo quando trilha vias erradas e recusa Deus. O amor de Deus é incondicional, gratuito, desinteressado e nada exige em troca (1Jo 4,10). E, porque os crentes são filhos de Deus, é a vida de Deus que circula neles devendo transparecer nos seus gestos. Ora, se Deus é amor – total, incondicional, radical – o amor deve ser realidade sempre presente na vida dos filhos de Deus. Quem “conhece” (ginôskei) Deus (quem vive na relação íntima com Deus) manifesta em gestos concretos a vida de amor que lhe enche o coração (1Jo 4,8). “Quem nasceu de Deus” (ho agapôn ek toû Theoû gegénnêtai) deve, pois, amar os irmãos com o amor incondicional, desinteressado e gratuito que exprime o ser de Deus (1Jo 4,7). O amor aos irmãos não é algo de acessório ou secundário para o crente, mas essencial, obrigatório. Ser filho de Deus e viver em comunhão com Deus exige que o amor transpareça nos gestos de todos os dias e nas relações que estabelecemos uns com os outros.

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O Evangelho desta dominga (Jo 15,9-17) é a continuação imediata do da dominga anterior (Jo 15,1-8), e expõe a especificidade qualitativa do amor de Jesus, a finalidade com que Jesus falou destas coisas aos discípulos e o caráter qualitativo que há de enformar o amor do discípulo.

“Como me amou o Pai (êgápêsén me ho patêr), eu vos amei. Permanecei “no meu amor” (en agápê tê emê). Se guardardes os meus “mandamentos” (entolás), permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Disse-vos (lelálêka) estas coisas, para que a minha alegria (khará) esteja em vós, e a vossa alegria seja plenificada (plêrôthê).

É este o meu mandamento (entolê): que vos ameis uns aos outros como eu vos amei (hína agapâte allêlous kathôs êgápêsa). Ninguém tem maior amor do que aquele que dá (thêi) a sua vida (tên psychên autoû) pelos seus amigos. Vós sois meus amigos (phíloi), se fizerdes as coisas que eu vos mando (entéllomai). Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vo-las dei a conhecer (egnôrisa). Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (exeléxasthte) e vos constituí para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dê. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros. (hína agapâte allêlous).”.

As palavras mais repetidas são: “amar/amor”, “mandar/mandamento”, “Pai”, “permanecer”, “amigos”, “alegria”, “fruto”. Assim, a espinha dorsal da perícopa, que perpassa a raiz, o tronco e a seiva desta árvore vital, consiste na concatenação do amor: o Pai, que é a fonte originária do amor, comunica-o ao Filho, que o comunica, por seu turno, aos discípulos e amigos (Jo 15,9-10), ora irmãos, para que o vivam e, por contágio, o comuniquem a outros, fazendo-o frutificar (Jo 15,16). De igual modo se passa com a expressão prática do amor, os mandamentos. Jesus guarda os mandamentos do Pai (Jo 15,10), e entrega o seu mandamento aos discípulos: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei(Jo 15,12; cf 13,34), para que estes o guardem também (Jo 15,10.14).

Define-se com toda a clareza em que consiste o amor: dar, apostar, pôr a própria vida (tên psychên autoû) (Jo 15,13). Isto fica ilustrado com a recordação dos ditos de Jesus na lógica do Belo Pastor:

Por isto me ama o Pai: Eu ponho (títhêmi) a minha vida, para que de novo a receba (lábô). Ninguém ma retira (aírei); sou Eu que a ponho (títhêmi) por mim. Tenho autoridade para a pôr (theînai) e para a receber (labeîn) de novo. Este foi o mandamento (entolê) que recebi (élabon) do meu Pai (Jo 10,17-18).”.

Inequivocamente, amar é dar a própria vida. E este amor/mandamento novo, que leva a dar a própria vida, é tudo o que o Pai manda fazer.

Dom António Couto chama a atenção para o facto de o amor ser objeto de mandamento e vinca:

Prestando um pouco mais de atenção, acabamos por perceber que amar não é estar apaixonado. E estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone.” (in Mesa de Palavras).

Então pode já adiantar-se como caraterístico do amor: vem do Pai, que o comunica a Jesus, que o dá como mandamento aos discípulos para que o repliquem e todos deem muito fruto; a medida do amor de Jesus é o amor Pai e a medida do amor dos discípulos é o amor de Jesus; o amor enche de alegria, que nos torna pessoas realizadas – já não servos, mas amigos (proclamados na Ceia) e irmãos (proclamados na Ressurreição); a expressão prática do amor fraterno consiste nos mandamentos; e o amor vivido e testemunhado como Cristo quer não tem limites, mas abarca a todos, mesmo os inimigos ou os de outras paragens, tempos e culturas, pois é expressão da salvação universal dom e património de todos.

E o Bispo de Lamego tece interessante consideração ao dizer que “amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra”. Sublinha que agápê (amor)agôn (luta) têm a mesma raiz etimológica. Assim, paradoxalmente a luta do amor (agôn tês ágapês), que não é contra alguém, mas em prol de todos, faz feliz “matando”. Quanto mais se ama, se luta e se mata a amar, mais a pessoa se encontra. Por isso, o Mestre ensina:

“Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao invés, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24).

Neste aspeto, o amor (agápê) é agónico, pois requer luta (agôn), já que postula decisão a todo o instante. E, se não for agónico, é egoísta. No mundo bíblico, a origem do mal não está na paixão, no coração que bate forte, mas no coração duro, empedernido (Ez 36,26).

Assim, amar/observar os mandamentos no atinente a Deus e a todos os irmãos, segundo a bitola do Pai e de Jesus, é o que temos de fazer. Jesus ama-nos e tudo faz por nós. Por isso, manda que façamos como Ele faz, que amemos como Ele nos amou e ama (cf Jo 13,34; 15,12), plenificando e subvertendo a ordem antiga: “Ama o teu próximo como a ti mesmo(Lv 19,18). Para isso, dá-nos a conhecer tudo o que ouviu do Pai (Jo 15,15), habilitando-nos assim a rezar ao Pai (Jo 15,16).

A relação do Pai com Jesus é o modelo da relação de Jesus com os discípulos e há de ser o modelo da relação dos discípulos com Jesus e entre si. O Pai amou Jesus e demonstrou-Lhe sempre o seu amor e Jesus correspondeu ao amor do Pai, fazendo-Lhe a vontade. De igual modo, Jesus amou os discípulos e demonstrou-lhes sempre o seu amor; e os discípulos devem corresponder ao amor de Jesus, cumprindo os seus mandamentos, amando-se uns aos outros e difundindo esse amor fraterno ilimitado.

A vontade (os mandamentos) do Pai que Jesus cumpriu com total fidelidade e obediência, na ótica joânica, reporta-se ao cumprimento do desígnio de salvação de Deus para os homens e confiado a Jesus. Jesus cumpriu fielmente e ofereceu aos homens a salvação, libertou-os da opressão da Lei, lutou contra as estruturas que os escravizavam e os aprisionavam nas trevas e ensinou-os a viver no amor, que se faz serviço, doação, entrega até às últimas consequências. Apresentou-lhes, assim, a rota da liberdade e da vida plena. Daqui nasceu o Homem Novo, livre do egoísmo e do pecado, capaz de estabelecer novas relações com os outros homens e com Deus.

Os discípulos, que são o fruto da obra de Jesus, formam a comunidade de homens livres, que acolhem e assimilam o desígnio salvador que o Pai lhes revelou em Jesus. Eles nasceram do amor do Pai, amor que se fez e faz presente na ação, gestos e palavras de Jesus. Agora, nascidos da ação de Jesus, estão vinculados Ele e, cumprindo os “mandamentos” de Jesus como Ele cumpriu os “mandamentos” do Pai, devem, com e como Jesus, ser testemunhas da salvação de Deus e levar a libertação aos irmãos. E, para que o seu testemunho seja credível e eficaz, eles devem amar-se uns aos outros com amor que é serviço humilde, doação total, entrega radical. Desse amor nasce a comunidade do Reino, a comunidade do mundo novo, que testemunha, pelo amor, a salvação de Deus, pois esse amor desinteressado, gratuito, total, tem a marca de Jesus.

Esta comunidade de homens novos, que ama sem medida e aceita fazer da própria vida dom total aos irmãos, é a comunidade dos amigos de Jesus, santos ou cristãos. E a relação de Jesus com os membros dessa comunidade não é a relação de “senhor” e “servos”, mas a relação de “amigos”, pois o amor colocou Jesus e os discípulos ao mesmo nível e fê-los irmãos. Jesus é o centro deste grupo de irmãos, mas não se posiciona acima do grupo.

E estes “amigos” cooperam todos, voluntariamente e cheios de alegria e entusiasmo numa tarefa comum, têm a mesma missão (testemunhar, pelo amor, a salvação de Deus) e são todos responsáveis pela concretização da missão. Entre si, há total comunicação e confiança (o servo não conhece os planos do senhor, ao passo que o amigo partilha com o outro amigo os seus planos). Aos seus “amigos” Jesus revela o Pai, não por enunciados sobre o ser de Deus, mas mostrando, com a sua pessoa e ação, que o Pai é amor sem limites e trabalha em prol do homem. E os discípulos, ora amigos e irmãos, são os eleitos de Jesus, aqueles que Ele escolheu (não foram eles que O escolheram), chamou e enviou ao mundo a dar fruto. Porém, isto não significa que Jesus chame uns e rejeite outros, mas que a iniciativa não é dos discípulos e que a sua integração na comunidade do Reino é apenas a resposta ao desafio lançado por Jesus. É dom da gratuitidade de Deus e, por isso, não pode ser iniciativa dos homens nem ser aprisionada ou apropriada por eles, mas aberta a todo o outro, quem quer que seja ele.

2021.05.09 – Louro de Carvalho

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