segunda-feira, 3 de maio de 2021

Permanecer em união com Cristo dá a vida em plenitude

 

A passagem do Evangelho acolhida na liturgia do 5.º domingo da Páscoa (Jo 15,1-8), que tem como pano de fundo a solene afirmação de Jesus – Eu sou a videira autêntica! – bem pode ser corporizada pela videira de ouro com ramos e cachos que, segundo Flávio Josefo, estava representada sobre a porta principal do Templo de Jerusalém.

A imagem bíblica da videira designava o povo escolhido e tantas vezes infiel (cf Os 10,1; Is 5,1-7; Jr 2,21; Ez 15,1-8; 19,10-14; Sl 80, 9-17). Ora, como Jesus inaugura um novo povo de Deus, assume-Se como “a verdadeira (no sentido de autêntica, em grego, alêthinê) videira” (egô eimi hê ámpelos hê alêthinê: Jo 15,1) (cf Sir 24,17-21), que forma com os discípulos uma unidade vital e não uma simples comunidade, como a de Israel, pois nela se vive a própria vida de Cristo (cf Ef 4,16; 1 Cor 12,27; Gl 2,20), em ordem a dar “fruto” para a vida eterna. Esta íntima comunhão exprime-se com o insistente apelo permanecei em Mim (meínate en emoí: Jo 15,4.5.6.7), podendo vislumbrar-se uma alusão à Eucaristia (cf Jo 6,56), sendo o melhor fruto desta videira o vinho eucarístico, que prefigura e antecipa o do banquete escatológico do Reino de Deus (cf Mc 14,25; 1 Cor 11,26). Porém, esta íntima e profunda união pressupõe a purificação, a “poda” (cf Jo 15,2: o verbo grego kathairéô tanto significa podar como purificar). O termo ámpelos traduzido por vide ou videira – de que fazem parte integrante os ramos (tà klêmata) –, tanto designa a árvore toda como a cepa ou o tronco. Permanecer em Cristo aparece com toda a radicalidade evangélica como uma questão de vida ou morte (o verbo “ménô” surge 7 vezes neste trecho): “sem Mim, nada podeis fazer (khôrìs emoû ou dýnasthe poieîn oudén: Jo 15,5). Fora da união com Cristo é-se ramo seco, que não pode dar fruto (Jo 15,4), servindo só para ser cortado, ser lançado fora, ser lançado ao fogo (Jo 15,5).

O trecho em referência – integrado no discurso de despedida de Jesus, que vai de Jo 13,1 a 17,26 – situa-nos em Jerusalém, na noite de quinta-feira, um dia antes da festa da Páscoa do ano 30. Jesus, reunido com os discípulos à volta da mesa, na ceia de despedida, está consciente de que os dirigentes judaicos decidiram dar-Lhe a morte e de que a cruz está iminente.

Os gestos e palavras de Jesus constituem as suas indicações testamentárias e as coordenadas para os discípulos continuarem no mundo a missão do Messias unidos a Ele. Nasce, pois, a comunidade da Nova Aliança, alicerçada no serviço (cf Jo 13,1-17) e no amor (cf Jo 13,33-35), que pratica as obras de Jesus animada pelo Espírito Santo (cf Jo 14,15-26).

Para definir a situação dos discípulos face a Jesus e face ao mundo, Ele usa a alegoria da videira, ramos e frutos, de profundas conotações veterotestamentárias (AT) e com um significado especial no universo religioso judaico, como ficou entredito.  

No AT e, sobretudo, nos profetas, a “videira” e a “vinha” eram símbolos de Israel, o Povo de Deus, que era apresentado como uma “videira” que Javé arrancou do Egito, que transplantou para a Terra Prometida e da qual sempre cuidou com amor; e como “a vinha” que Deus plantou com cepas escolhidas, que Ele cuidou e de que esperava abundantes frutos, mas que só Lhe deu frutos amargos e impróprios. Assim, a antiga “videira” ou “vinha” revelou-se uma verdadeira desilusão: nunca produziu os frutos que Deus esperava. Agora, Jesus apresenta-Se como a verdadeira “videira” plantada por Deus, sendo o mesmo Jesus quem produzirá os frutos que Deus espera. E desta verdadeira “videira” nasce agora um novo Povo de Deus, continuando Deus a ser o agricultor que escolhe as cepas, que as planta e que cuida da sua vinha: “Nisto será glorificado meu Pai, que deis muito fruto(en toútô edoxásthê ho patêr mou, hína karpòn polyn phérête: Jo 15,8). E esta união frutífera com Cristo é a garantia inabalável de que o Pai fará o que Lhe pedirmos (cf Jo 15,7) e é condição para nos tornarmos autênticos discípulos de Jesus (cf Jo 15,8).

Os discípulos são os “ramos” unidos à “videira”, Jesus e dela recebem vida. Os “ramos”, não têm vida própria, pelo não podem produzir frutos por si mesmos, e necessitam da seiva que lhes é comunicada por Jesus em regime de osmose. Por isso, são convidados a permanecer em Jesus. Como afirmava o Padre Manuel da Silva no Cacém, o verbo permanecer (ménô), que surge 7 vezes no trecho, é a sua palavra-chave, expressa a confirmação ou renovação duma atitude já anteriormente assumida e pressupõe que o discípulo aderiu a Jesus e que tal adesão adquire agora estatuto de solidez e constância. Mais: é um convite-apelo a que o discípulo mantenha a adesão a Jesus, a identificação e a comunhão com Ele. Se o discípulo mantiver a adesão, Jesus permanece no discípulo e continuará a oferecer-lhe a vida.

Estar unido a Jesus implica comer a sua carne e beber o seu sangue (cf Jo 6,56). Com efeito, a “carne” de Jesus é a sua vida e o “sangue” de Jesus é a sua entrega por amor até à morte. Por consequência, comer a carne e beber o sangue de Jesus é assimilar a existência de Jesus, feita serviço e entrega por amor até ao dom total. Mas a união com Jesus não é automática, antes depende da decisão livre e consciente do discípulo que tem de ser continuamente renovada.

Interromper a relação com Jesus significa cortar a relação com a fonte de vida e condenar-se à esterilidade. Quem assim procede é ramo seco e não corresponde à vida que a “videira” lhe dá.

Ora, a comunidade de Jesus não pode condenar-se à esterilidade, pois a sua missão é dar frutos. Por isso, Deus, o “agricultor”, age no sentido de que o discípulo, o “ramo”, se identifique cada vez mais com Jesus Cristo, a “videira”, e produza frutos de amor, doação e serviço aos irmãos. Para tanto, a ação de Deus urge a limpeza do ramo para que ele dê mais fruto, o que postula um processo de conversão contínua que o leve a recusar vias fechamento e abrir-se ao amor.

E, se, apesar do esforço de Deus e do seu contínuo apelo à conversão, o “ramo” se obstina em não produz frutos condicentes com a vida que lhe é comunicada, fica à margem da comunidade da salvação. É um “ramo” que não quer pertencer à “videira”.

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Na sequência de trechos proclamados em domingos anteriores, a passagem da 1.ª carta de João tomada com 2.ª leitura (1 Jo 3,18-24) situa-se no contexto da controvérsia levantada por seitas heréticas pré-gnósticas sobre pontos fundamentais da teologia cristã e na consequente intenção do autor em propiciar aos crentes uma síntese da vida cristã autêntica.

Questão essencial da Carta é a do amor ao próximo. Os pré-gnósticos sustentavam que o núcleo essencial da fé está na comunhão com Deus, mas, demasiado fixos no céu, desdenhavam o amor ao próximo e as realidades do mundo (cf 1Jo 2,9). Ora, o amor ao próximo é exigência central da experiência cristã. Com efeito, Deus é, na sua essência, amor; e ninguém está em comunhão com Ele se não se deixa contagiar e embeber pelo amor. Jesus demonstrou-o ao amar os homens até ao extremo e ao exigir que os discípulos O seguissem nesse caminho (cf 1Jo 3,16), sendo o amor aos irmãos que decide o acesso à vida. Enfim, só quem ama atinge a vida verdadeira (cf 1Jo 3,13-15); e a realização plena do homem depende da sua capacidade de amar os irmãos.

O versículo que antecede o trecho desta dominga levanta uma questão premente: “se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como pode o amor de Deus permanecer nele?” (hòs d´an ékhê tòn bíon toû kósmou kaì theôrê tòn adelphòn autoû khreían ékhonta kaì kleísê tà splànkhna autoû ap´autoû, pôs ê agápê toû Theoû ménei en autô?: 1Jo 3,17). E, a seguir, conclui que o amor aos irmãos não se manifesta em declaração solene de boa intenção, mas na partilha e serviço, e que é em atitudes concretas em prol dos irmãos que se revela a autenticidade da vivência cristã e se dá testemunho do desígnio de Deus (vd 1Jo 3,18).

Com o amor afetivo e efetivo a conduzir a nossa vida, estamos seguramente na rota da verdade; e com o coração aberto ao amor, ao serviço e à partilha, estamos tranquilos e em comunhão com Deus. A consciência pode acusar-nos dos erros passados e reprovar algumas opções, mas, se amarmos, sabemos que estamos perto de Deus (1Jo 3,19), pois “Deus é amor” (ho Theòs agápê estín: 1Jo 4,8). E o amor liberta-nos das dúvidas e inquietações, pois dá-nos a certeza de que estamos no caminho de Deus; e se Deus “é maior do que o nosso coração e conhece tudo” (1Jo 3,20), nada receamos. Viver no amor é viver em Deus e estar entregue à sua bondade e à misericórdia.

De consciência em paz e certos de que Deus nos ama, porque aceitamos o amor e vivemos no amor, dirigimos-Lhe a nossa oração sabendo que Ele nos escuta, pois atende a oração daquele que cumpre os seus mandamentos (1Jo 3,21-22).

Os últimos dois versículos sintetizam o trecho em causa: a exigência basilar da vida cristã é “crer (pisteúsômen) em Jesus” e amar (agapômen) os irmãos (1Jo 3,23). E “crer” implica aderir a Jesus e à sua Boa Nova e segui-Lo. Mas segui-Lo é fazer da vida dom total de amor aos irmãos. “Crer em Jesus” e cumprir o mandamento do amor são as duas faces do mesmo dinamismo cristão.

Quem observa os mandamentos, em especial o mandamento do amor, que tudo resume, vive em comunhão com Deus e possui algo da natureza divina. É o Espírito de Deus que dá ao crente e à comunidade crente a prerrogativa de produzir obras de amor (1Jo 3,24).

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O segmento textual assumido para a 1.ª leitura (At 9,26-31) relata a primeira visita de Paulo a Jerusalém, após a fuga de Damasco, onde a sua vida corria perigo, havendo correspondência perfeita com os dados que ele próprio fornece no início da Carta aos Gálatas (Gl 1,19-19). E agora a vida do recém-convertido (que não se cala) não está segura em Jerusalém (At 9,30).

Insere-se na secção dedicada ao relevante acontecimento na história do cristianismo (At 9,1-31): a vocação/conversão de Paulo, o ponto de partida para o caminho do cristianismo, dos limites do mundo judaico até ao coração do mundo greco-romano.

A primeira parte (cf At 9,1-9) apresenta os acontecimentos do caminho de Damasco e o encontro de Paulo com o Ressuscitado; a segunda (cf At 9,10-19a) descreve o encontro com a comunidade cristã de Damasco; a terceira (cf At 9,19b-25) refere a atividade apostólica de Paulo em Damasco; e a quarta (cf At 9,26-30) mostra a forma como Paulo, após deixar Damasco, onde esteve 3 anos a colaborar com a comunidade cristã foi recebido pelos cristãos de Jerusalém.

Após o tempo de colaboração em Damasco, a oposição dos judeus forçou Paulo a abandonar a cidade. E, como as portas da cidade estavam guardadas, os cristãos desceram-no pelas muralhas, dentro dum cesto (cf At 9,23-25), após o que se dirigiu para Jerusalém.

O trecho em causa é a quarta parte da secção dedicada a Paulo e refere-se à sua estadia em Jerusalém após a saída de Damasco e inclui, num versículo final, um sumário (à maneira lucana) da vida da Igreja, fazendo balanço da situação e preparando os temas nas secções seguintes.

A narração lucana mistura elementos de caráter histórico com elementos de caráter teológico.
A desconfiança da comunidade cristã de Jerusalém em relação a Paulo
(“todos o temiam, por não acreditarem que fosse discípulo” – At 9,26) mostra-nos uma comunidade cristã que tem dificuldade em lidar com o risco, que prefere a aceitar os desafios de Deus esconder-se atrás de procedimentos prudentes e perder oportunidades. Porém, como o comprova o exemplo de Paulo, a capacidade de correr riscos e acolher a novidade de Deus é fonte de enriquecimento para a comunidade. Por outro lado, o esforço de Paulo em integrar-se (“chegou a Jerusalém e procurava juntar-se aos discípulos” – At 9,26) evidencia a importância que dá à vida em comunidade, à partilha da fé. O cristianismo não é só um encontro pessoal com Jesus Cristo, mas comporta a experiência de partilha da fé e do amor com os irmãos. É só no diálogo e na partilha comunitária que a experiência da fé e do amor ganha sentido e se realiza verdadeiramente.

Barnabé – levita e cipriota, cujo nome de origem aramaica, “bar-nahmá, significa “filho da consolação”, o amigo de consolar (também se pode entender como “filho da profecia” ou profeta) – tem um papel muito significativo na integração de Paulo: não só acredita nele, como consegue que o resto da comunidade cristã o aceite (At 19,27a). Ao mesmo tempo é um exemplo do papel que um cristão tem na integração comunitária dos irmãos e mostra que é tarefa de cada crente questionar a comunidade e ajudá-la a descobrir o desafio de Deus.

Apresentando Paulo aos Apóstolos, concretamente a Pedro, junto de quem está 15 dias (cf Gl 1,18), desfaz o receio de que ele fosse um falso irmão, um espião. E havia de ser também Barnabé que, passados bastantes anos, após a retirada de Saulo para a sua terra natal (Tarso na Cilícia), o iria buscar para o apostolado em Antioquia da Síria (cf At 11,22-26), grande centro helenista, onde os cristãos tomam este nome e a fé se expande extraordinariamente. Dali sairão para a primeira grande viagem missionária. Por outro lado, é de sublinhar o entusiasmo com que Paulo dá testemunho de Jesus e a coragem com que enfrenta as dificuldades e oposições (cf At 9,27b-28). É uma atitude caraterística da vida apostólica de Paulo, consciente como está de que, chamado por Jesus, recebeu a missão de anunciar a salvação a todos os homens, pelo que nada nem ninguém será capaz de arrefecer o seu zelo no anúncio do Evangelho.

Fica também claro que a pregação cristã, suscitando o conflito com os poderes de morte e de opressão, interessados em perpetuar os mecanismos de escravidão, ou seja, a fidelidade ao Evangelho e a Jesus provoca sempre a oposição do mundo (At 9,29). Assim, opõem-se à pregação de Paulo, querendo dar-lhe a morte, os “helenistas” ou judeus provenientes da diáspora, de passagem para Jerusalém ou mesmo já retornados que falavam grego e nesta língua liam a Bíblia em sinagogas próprias. Isto mostra como o caminho do discípulo de Jesus é sempre um caminho marcado pela cruz, mas é sempre um caminho de vida.

O sumário final (At 9,31) põe em destaque um elemento bem presente no horizonte da catequese de Lucas: é o Espírito Santo que guia a Igreja na sua marcha pela História. É o Espírito que lhe dá estabilidade (“edificava-se”: oikodomouménê), que lhe alimenta o dinamismo (“caminhava no temor do Senhor”: poreuoménê en tô phóbô toû Kyríou) e que a faz crescer (“ia aumentando”: eplêthýneto). E é a certeza da presença e da assistência do Espírito Santo que fundamenta a nossa esperança.

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Fica para exemplo que é a união com Cristo e com os irmãos que nos torna discípulos, faz a comunidade e nos torna merecedores do dom de Deus e, por conseguinte, do atendimento da nossa oração por parte o Pai. E, porque Deus é amor, importa que adiramos a Cristo, o Filho, e amemos os irmãos. Por fim, precisamos de muitos como Barnabé, que integrem elementos na comunidade – ou acolhedores como Pedro –, e como Paulo, que se debatam pelo Evangelho.

2021.05.02 – Louro de Carvalho

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